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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 61 anos de idade e 35 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Fixo e mudo

Lá em casa, o telefone tocava e todos corriam para atender, esqueciam o rádio e a TV

Telefone de discar (Foto: Pxhere - Imagem de domínio público)

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- É com H e Y.

- Não entendi.

- Hygor, com H primeiro, e depois Y, o resto você sabe.

- Diferente, né?

- Meu pai quis com H e minha mãe, pra não ficar pra trás, lascou o Y. Estou dizendo o meu nome para o senhor anotar o contato: é Hygor Sapateiro.

- ...(Digito no meu celular)

- Aí quando eu te ligar, o número já aparece identificado.

O jovem sapateiro me conta que quando ele, ou a mãe, liga para avisar o cliente que o salto está trocado ou a sola renovada, a ligação não é atendida porque o número é desconhecido.

Medo de golpe, preguiça de ouvir ofertas desinteressantes, risco de clonagem, seja lá o que for ninguém atende mais os telefonemas. Mesmo amigo, filha e namorada respondem com uma econômica mensagem de texto: “reunião”, “chamo depois”, “OCUPADA”.

Se a ligação partir de telefone fixo, como o da sapataria de Hygor e da mãe, a dona Yoná, a rejeição aumenta.

Não era assim. Há algumas décadas, no Rio de Janeiro, ter um conhecido na Telerj, ou mesmo na concorrente, a Cetel, significava prestígio. Linha telefônica era disputa de anos.

Quando comprei meu primeiro imóvel, a entrada custou duas linhas. Presente do meu pai, foi resultado de muito trabalho, dinheiro guardado, até que uma chance apareceu e ele comprou à vista, uma nota em cima da outra.

Bem antes disso, era comum ele parar a Vemaguetti no posto Texaco, comigo e meus dois irmãos no banco traseiro, e pedir: “posso usar o aparelho enquanto você enche o tanque e vê o óleo?”

Seria como hoje pedir para usar o banheiro. E pode ter certeza, no século passado, era mais fácil emprestar a privada que o telefone.

Em muitas lojas a gente via telefones com cadeado. Grandes empresas contratavam telefonistas. Profissionais ágeis, de voz límpida, que impediam interurbanos indesejáveis e controlavam o tempo das ligações.

O século XX corria e o telefone pesado e de disco, com o fio bem enroladinho, se transformava. Chegaram cores, modelos, formatos.

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Capa do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luís Cosme Pinto(Photo: Reprodução)

Um dia surgiram as teclas, em outro o aparelho sem fio. A pessoa falava e circulava pela casa com a antena levantada. Pura tecnologia.

A novidade seguinte chamava-se Bina, o identificador de chamadas. De uma ligação para outra, acabaram os trotes, as surpresas, as brincadeiras de disfarçar a voz.

O que não terminava eram os recados. Minha avó, com seu cinzento 256-5446, da Ericsson, recebia os recados para todos os seis netos. Os amigos ligavam e diziam a que horas iam aparecer na praia, a namorada de um marcava o cinema, a amiga da outra combinava o trabalho em grupo da escola.

Com letra desenhada, num bloco exclusivo para as anotações, Lili escrevia tudo e brincava: “minha casa é a agência dos netos.”

Atender a ligação também era uma questão. As crianças corriam para tirar o fone do gancho. Os adultos se estressavam: “vai que é algo importante?” Na minha casa, em Vila Isabel, meu pai pigarreava e então falava alto e firme: “Pronto!”. Minha mãe: “Aqui é a residência do Edgar e da Therezinha”; e eu aprendi com a secretária da escola Equador: “268-4173. Deseja falar com quem?”.

Em quase toda esquina havia pelo menos um orelhão; nas comunidades mais afastadas era a única forma de contato. A fila enorme só não era pior que a linha cruzada.

Nos anos 1990 eu era repórter e antes de saber a notícia do dia recebia uma cartela com 10 fichas telefônicas. A gente tinha que ligar da rua e informar se a reportagem estava dando certo. Às vezes, no endereço da gravação, o entrevistado avisava: “o chefe de reportagem ligou aqui e quer falar contigo.”

Claro, havia os dissabores. Pelo telefone podia chegar a demissão, a notícia de morte de amigo ou parente e, de repente, o fim do namoro. A gente se assustava, a voz do outro lado se despedia. Gelada. Era a última vez.

Aí a gente telefonava para algum amigo e desabafava durante meia hora. Telefone na alegria e na tristeza. Que nem casamento.

O telefone tomou o lugar do telegrama, que substituiu a carta, que aposentou o pombo-correio e o menino de recados.

Agora quem manda é o celular. Dependemos dele para trabalhar, nos informar, pagar e receber, de vez em quando, até telefonar. Ou ler uma crônica, história miúda, dessas que nos mandam por aplicativo e que bem podia ser conversa fiada em telefone fixo. Mas quem tem tempo de ouvir tudo isso?

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

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