Foro de São Paulo e a direita espanhola: qual a relação?
"É importante compreendermos como chegamos ao ponto de espanhóis estarem ajudando a espalhar uma teoria conspiratória no Brasil", escreve Francine Oliveira
No domingo, 10 de outubro, a Record exibiu uma entrevista com a ativista espanhola Cristina Seguí, ex-aeromoça e jornalista. Em sua fala, Seguí cita uma teoria da conspiração já conhecida entre quem acompanha a extrema-direita, referente ao Foro de São Paulo.
O “renascimento” dessa narrativa conspiratória não é um acontecimento isolado e, na medida em que as eleições se aproximam em diversos países – inclusive no Brasil, onde o ex-presidente Lula tem despontado nas pesquisas –, elas tendem a reaparecer, assumindo um formato “multinacional”.
Na Espanha e em Portugal, a fama de Seguí envolve a propagação de fake news. Com a pandemia do novo coronavírus, ela se destacou por mensagens antivacina, minimização da gravidade da doença e todo aquele discurso sobre os governos estarem usando o vírus para minar liberdades individuais.
Deixando Seguí um pouco de lado, é importante compreendermos como chegamos ao ponto de espanhóis estarem ajudando a espalhar uma teoria conspiratória no Brasil. Sabemos que Eduardo Bolsonaro tem uma relação de proximidade com o partido espanhol Vox, no entanto, antes de tratarmos disso, é necessário voltar um pouco no tempo.
Em artigos passados, eu mencionei uma fundação espanhola chamada HazteOir. Esse grupo ultracatólico e ultraconservador realiza campanhas desde 2001, com especial foco na mobilização online.
Em maio de 2012, a HazteOir foi responsável pela organização do VI Congresso Mundial de Famílias, que ocorreu em Madrid. Na ata final do evento, são citados quatro países da América Latina em que a atuação ultraconservadora deveria se centrar, por serem populosos e deterem influência estratégica nas demais nações: Brasil, México, Colômbia e Argentina.
A agenda da HazteOir destaca-se por pautas anti-aborto (à qual denominam “pró-vida”), anti-gênero e contrária aos direitos LGBT+. E no caso dos países latino-americanos, foi debatido, no Congresso, como grande parte de suas populações seriam contrárias à descriminalização do aborto e com tendências mais conservadoras.
Um dos palestrantes foi o advogado argentino Jorge Scala – sobre quem já tratei em artigo anterior e que, sem surpresa alguma, é um grande apoiador de Javier Milei. Em sua fala, Scala detalhou como deveria ser a atuação em cada um dos países a fim de implementar políticas públicas da agenda ultraconservadora
No ano de 2013, a HazteOir criou a plataforma CitizenGo, visando justamente à internacionalização. A plataforma, focada em criação e divulgação de petições online, é mantida principalmente através de doações e, segundo vazamento do WikiLeaks, não apenas conta com o auxílio de brasileiros como também financia ativistas aqui e no México.
Embora a filial brasileira, em Belo Horizonte, apenas tenha sido instalada em 2016, Ignacio Arsuaga Rato, fundador da HazteOir e da CitizenGo, esteve no Brasil em novembro de 2013 para ministrar um workshop sobre como construir um movimento social bem-sucedido.
O vazamento do WikiLeaks também mostrou que a HazteOir auxiliou no financiamento do partido Vox e, de fato, Rato é amigo íntimo de Santiago Abascal, principal figura do partido. Pois bem, aqui vale a pena saber que Cristina Seguí foi uma das co-fundadoras do Vox. Ela deixou o partido por não concordar com suas estratégias de aproximação com o Partido Popular na Espanha, mas continua sendo elogiosa da figura de Abascal.
Quando o Vox foi apresentado à Espanha, em janeiro de 2014, a HazteOir exibiu o evento ao vivo em seu canal oficial no YouTube. Além disso, diversos membros do grupo têm cargos importantes no partido até hoje e as relações de troca permanecem constantes.
Sobre a atuação da CitizenGo no Brasil, trataremos em outra ocasião. Para nosso raciocínio, basta entendermos que a plataforma oferece ferramentas para criação e propagação de fake news e teorias conspiratórias na forma de petições online que são bastante compartilhadas por figuras políticas como Bia Kicis e Carla Zambelli.
Sabemos que as articulações de Eduardo Bolsonaro com a extrema-direita internacional são anteriores à presidência do pai, mas as eleições de 2018 certamente aumentaram sua influência e lhe conferiram a legitimidade como deputado federal mais votado na história do Brasil.
[Pausa para uma digressão: a imensa rejeição de Jair Bolsonaro como presidente afeta seus filhos, mas, ainda assim, os números anteriores de Eduardo podem indicar que ele continue a ser eleito em pleitos futuros. Ademais, ele tem a vantagem de não ter sido mencionado diretamente nas investigações sobre os esquemas de rachadinhas, fator que pode ser usado por seus apoiadores como “comprovação” de que ele ainda não foi corrompido pela corrupção. Inegavelmente bem articulado, ele é o poster boy perfeito para dar continuidade ao bolsonarismo.]
No dia 26 de outubro de 2020, Eduardo anunciou, em sua conta no Twitter, o nascimento do Foro de Madrid, que definiu, em suas próprias palavras, como “contraponto ao Foro de São Paulo”. O documento fundador, a Carta de Madrid, foi assinado por várias figuras da direita conservadora europeia e latino-americana, dentre eles o próprio Eduardo e a deputada Bia Kicis.
A iniciativa do projeto partiu da Fundación Disenso, criada pelo Vox e presidida por Santiago Abascal. A carta, disponibilizada na página oficial da fundação, fala em uma aliança com o objetivo de “frear o comunismo na Iberoesfera”.
No mês seguinte à oficialização do Foro de Madrid, Eduardo Bolsonaro participou de um encontro virtual promovido pela Fundación Disenso, que contou com a participação também de María Corina Machado, ex-deputada venezuelana e líder da oposição a Maduro, e Arturo Murillo, que foi ministro no governo de Jeanine Añez na Bolívia. O tema da mesa redonda? Ele mesmo, o Foro de São Paulo.
Os participantes trataram da necessidade de união dos representantes da direita em escala internacional e de como a desunião teria levado à ascensão da esquerda nos países latino-americanos.
Em sua fala, Eduardo apontou uma suposta dominação das instituições culturais pela esquerda e de como seria preciso conquistar espaços nas universidades, a fim de formar “uma nova geração intelectual” que não seja receptiva ao “Marxismo cultural” – sim, todas as teorias conspiratórias estão ligadas. Eduardo reforçou a ideia de que estariam em meio a uma guerra cultural.
Santiago Abascal, por sua vez, logo ao abrir o debate, alegou que os presentes e seus apoiadores são democratas lutando “contra terroristas, narcoprodutores”. Seu discurso reproduz a noção de que seria uma batalha “do bem contra o mal”, ficando evidente que o “mal” seriam as esquerdas – na verdade, isso também inclui a direita moderada que se opõe às práticas extremistas.
Mais recentemente, em setembro deste ano, Eduardo Bolsonaro e Abascal estiveram juntos em Lisboa, no encerramento da campanha do partido Chega para as eleições autárquicas de 26 de setembro. O partido é representante da extrema-direita populista em Portugal e, na ocasião do encontro, seu fundador, André Ventura, assinou a Carta de Madrid.
Retornando aos últimos dias, percebemos, então, que a “denúncia” de Seguí está dentro de um contexto bem mais amplo e nada novo. A deixa para a entrevista transmitida no domingo, 10 de outubro, pelo Domingo Espetacular, foi a prisão, em setembro, de Hugo Carvajal, ex-chefe da Inteligência venezuelana durante a gestão de Hugo Chávez.
Carvajal era procurado desde novembro de 2019, ao fugir da casa em que vivia, em Madrid, antes da autorização para que fosse extraditado para os Estados Unidos. Ele é suspeito de ligação com o narcotráfico, e de ter participado de atividades em conjunto com o grupo guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Sem entrar em pormenores, a notícia é o pretexto ideal para que a história do Foro de São Paulo venha à tona, com direito a muitas menções ao Lula e ao PT. Não à toa, tão logo a entrevista de Seguí foi veiculada na Record, Eduardo Bolsonaro a compartilhou, fazendo elogios à jornalista espanhola.
Com as restrições impostas pelo WhatsApp em reação às campanhas eleitorais brasileiras em 2018, os esforços pela coordenação de redes de fake news que possam se espalhar de outras formas – e, agora, com o auxílio também do Telegram – serão maiores. Podendo contar o auxílio de canais como a Record, o bolsonarismo continuará a se agarrar ao antipetismo e a seu primo importado, o anticomunismo, até o último segundo e além.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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