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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, herói da pátria

"Entre Marília e a pátria"

Capa do livro "Frei Joaquim do Amor Divino Caneca" (Foto: CEPE/Divulgação)

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Frei Caneca

Entre Marília e a pátria
Coloquei meu coração:
A pátria roubou-me todo;
Marília que chore em vão.

Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer....”

O livro “Frei Joaquim do Amor Divino Caneca” tem um sério e grave defeito. As suas 728 páginas impedem que a gente anuncie logo ao mundo que o livro chegou, que ele está em nossas mãos. Nos 200 anos, no Bicentenário da Confederação do Equador, para a edição do livro, a CEPE teve a sábia medida de entregar a sua organização e introdução ao historiador mais erudito do Brasil, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello Autor de tantas obras sobre a história do domínio holandês, como a fundamental  "O negócio do Brasil", onde ele esclarece como se deu, de fato, a disputa luso-neerlandesa sobre a região do atual nordeste brasileiro, acabando com o oba-oba da fundação da nacionalidade em Guararapes, a edição do bicentenário da Confederação do Equador não poderia estar em melhores mãos.

Irmão de um dos poetas fundamentais da língua portuguesa, do genial João Cabral de Melo Neto, Evaldo Cabral escreve uma introdução ao personagem maior da Confederação do Equador, que nos dá o contexto da sua luta. Pois não bastaria dizer que Frei Caneca era um intelectual, escritor, agitador político, pensador raro, homem de esquerda e republicano amado demais pelo povo de Pernambuco. Havia que situá-lo na introdução, e aí entra o historiador com as armas da crítica:

“A Confederação do Equador teve a mesma sorte d República de 1817. A menos no desfecho militar que tiveram, é notável o paralelismo entre ambas. Do 2 de julho por diante, a história da Confederação torna-se a narrativa de uma derrota. Como a reação do seu pai (Dom João  VI) em 17, a de Dom Pedro I foi imediata: além de suspender as garantias constitucionais na província, ele a puniu territorialmente, amputando-lhe a comarca do São Francisco, que constituía a margem esquerda do São Francisco, hoje incorporada ao território da Bahia, da mesma forma como Dom João VI  havia castigado Pernambuco, mediante o desmembramento de Alagoas.”

E recupera adiante, para todos nós leitores, em que consistia a excelência do escritor e agitador Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Como neste passo:

“Sem dúvida  - escreve Frei Caneca - estarás lá dizendo contigo: ‘É possível que brasileiros, que homens reputados por patriotas, e que se mostravam tão interessados pelo bem do seu país, sejam agora os primeiros verdugos de seus compatriotas, os opressores de sua mesma nação, os tiranos de sua pátria?’. Não é possível, como é o que estão nossos olhos vendo e nossas orelhas ouvindo”. No texto “Sobre os projetos despóticos do ministério do Rio de Janeiro”, em julho de 1823.

E este brado do ardor de Frei Caneca, que o próprio Marx teria assinado com muito prazer: “Que liberdade é a nossa, se temos a língua ESCRAVA!”.

Para nossa felicidade, são recuperadas de Frei Caneca as edições do Typhis Pernambucano. Esse foi um jornal jamais visto em outro lugar do mundo. Fundado e editado por Frei Caneca, no contexto da Confederação do Equador, era semanal, de todas as quintas-feiras. O seu primeiro número circulou em 25 de dezembro de 1823, encerrando-se a sua publicação em agosto de 1824. Olhem só o nível da altura, da escrita e do valor político do jornal redigido por Frei Caneca:

“Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos; quando, pelo furor das ondas, ela ora se sobe às nuvens, ora se submerge nos abismos; quando levada pelo furor dos euripos, feita o ludibrio dos mares, ela ameaça naufrágio e morte, todo cidadão é marinheiro; um dever sustentar o timão, outro por a cara ao astrolábio, ferrar o pano outro, outro alijar ao mar os fardos que a sobrecarregam e afundam, cada um prestar a diligência ao seu alcance, e sacrificar-se pelos cidadãos em perigo.

Firme neste princípio, eu levanto a voz do fundo da minha pequenez e te falo oh Pernambuco, pátria da liberdade, asilo da honra e alcance da virtude! (...) tu me deste o berço, tu ateaste no meu meu coração a chama celeste da liberdade, contigo ou descerei aos abismos da perdição e deshonra, ou a par da tua glória voarei à eternidade” (Abertura de O Typhis Pernambucano em seu primeiro número) 

Em outra edição do jornal: 

“Não é preciso ser um gênio em penetração para conhecer o espírito do povo da cidade de Olinda, capital da província de Pernambuco, a respeito do negócio da liberdade do Brasil” (Typhis Pernambucano, 17.06.1824))  

Então chegamos às páginas do cinismo, do aparato processual da sua condenação. Aqui, a sentença, já decidida, se faz com retórica abusiva e odiosa. Para toda a história, também se acha registrado para sempre no livro “Frei Joaquim do Amor Divino Caneca”.  O que hoje para o Frei Caneca é honra, nos dias da sua morte foi uma infâmia: 

“Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, como escritor de papéis incendiários” (Do processo sumaríssimo da Comissão Militar em Pernambuco, 26 de julho de 1824). 

“Achando-se a integridade deste Império ameaçada pela desastrosa rebeldia e facção de alguns habitantes de Pernambuco..” . E mais: 

“Disse que sabe, por ser público, que ele primeiro réu era escritor de papéis, que continham uma doutrina incendiária, a qual também propagava em seus discursos” (Do processo sumaríssimo da Comissão Militar em Pernambuco). 

E por fim o seu destino de morte: 

“e por isso incurso na pena de morte natural estabelecida no §9; na qual simplesmente o condenaram, sendo primeiro exautorado (despojado do cargo e autoridade) das ordens e honras eclesiásticas; e esta sentença mandaram se execute como nela se contém” (Recife em comissão militar no palácio do governo, em 23 de dezembro de 1824). 

“Certifico que o réu frei Joaquim do Amor Divino Caneca foi conduzido ao lugar da forca das Cinco Pontas, e aí pelas nove horas da manhã padeceu morte natural, em cumprimento da sentença da comissão militar, que o julgou, depois de ser desautorado das ordens na igreja do Terço, na forma dos sagrados cânones; e sendo atado a uma das hastes da referida forca, foi fuzilado de ordem do exmo. senhor general e mais membros da dita comissão, visto não poder ser enforcado pela desobediência dos carrascos

Recife de Pernambuco, 13 de janeiro de 1825”. 

Observem que está registrado em documento oficial da infâmia. Frei Caneca “foi fuzilado de ordem do exmo. senhor general e mais membros da dita comissão, visto não poder ser enforcado pela desobediência dos carrascos” 

Esclareça-se também o eufemismo trágico, bárbaro, dos costumes do Império, a chamada “Morte natural”. Morte natural não era a morte causada por doença ou por falência orgânica devido a idade avançada de uma pessoa. Não. Morte natural era a morte por enforcamento, determinada por sentença judicial. Mas tudo muito legal. Assim, morria-se naturalmente sem fôlego, pescoço amarrado ao nó da corda, tendo o corpo deslocado por força e crueldade. Mas nem a ironia daquele tempo puderam aplicar ao herói Frei Caneca. Os carrascos se negaram a obedecer às ordens militares! Então ele foi fuzilado. Porque havia de ser morto por morte natural de qualquer maneira.  

Aos 45 anos de idade ele deixou os pernambucanos no Recife. Alto, digno, honrado, eterno:

“Entre Marília e a pátria
Coloquei meu coração:
A pátria roubou-me todo;
Marília que chore em vão.

Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer....”

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