Golpe continuado incluiu plano de sequestro e morte do presidente
"Polícia Federal amanheceu na porta de cinco conspiradores de altíssima periculosidade", escreve Denise Assis
Hoje, quando vem à tona o detalhamento da conspiração do golpe que seria impetrado contra o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito naquele ano de 2022, é preciso percorrer os passos dessa história. A Polícia Federal amanheceu na porta de cinco conspiradores de altíssima periculosidade, mas faltam generais nesse rol de investigados. E estamos esperando o momento em que eles serão levados para prestar contas do plano bárbaro que engendraram.
Por enquanto, foram presos: o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, que comandava a 3ª Companhia de Forças Especiais em Manaus, destituído do cargo em fevereiro deste ano; o general e ex-ministro interino da Secretaria-Geral, Mário Fernandes; o secretário-executivo da PR e major reformado Rafael Martins de Oliveira, ex-assessor do deputado Eduardo Pazuello; e um membro das Forças Especiais do Exército. Ele negociou com o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, o pagamento de R$ 100 mil para custear a ida de manifestantes a Brasília. Por fim, o major Rodrigo Bezerra de Azevedo e o policial federal Wladimir Matos Soares.
Primeiro, é importante deixar claro que, ao contrário da tentativa feita pelo desastrado e covarde Jair Bolsonaro em setembro de 2021 — que não se preparou para o "day after" e, quando viu que teria sucesso com a ajuda do bloqueio de rodovias por caminhoneiros, trancou-se no closet de Michelle, até a chegada de Michel Temer. Bolsonaro se deu conta de que não sabia o que fazer com o poder. Michel o resgatou do vexame — porque de golpe ele entende. Já no de 2022, havia plano para os desdobramentos.
Tanto Hélio Ferreira Lima — com estatura de ministro e livre trânsito no Palácio —, como o general Walter Braga Netto, e o colega Augusto Heleno, experiente em conspiração, pois ajudou o general Silvio Frota na tentativa de golpear o ditador Ernesto Geisel (1974/1979), pensaram em tudo. Principalmente em reeditar o “Comando Supremo da Revolução”, instituído no "day after" de 1964, quando, no primeiro dia dos anos de terror que se seguiriam, já prepararam listas e mais listas de cassados e perseguidos.
Só na Petrobras foram afastados mais de três mil funcionários (sem remuneração, a bem do serviço público). Na Marinha, 4.700; no Exército, em torno de sete mil. No Congresso, Darcy Ribeiro e o deputado do PTB, Almino Afonso, puxavam uma lista interminável de deputados e autoridades, todos cassados. Em 2022, Braga Netto e Heleno não fariam diferente. Pelo plano, teriam poder absoluto sobre nossas vidas.
O autodenominado Comando Supremo da Revolução (o golpe de 1964) foi um triunvirato governamental composto pelos três ministros militares, dois dias depois da derrubada do presidente João Goulart: Artur da Costa e Silva, ministro do Exército; Augusto Rademaker Grünewald, ministro da Marinha; e Francisco de Assis Correia de Melo, ministro da Aeronáutica.
Dessa vez, as peças-chave seriam os "Kids Pretos", para executar a tocaia que sequestraria e mataria o presidente Lula, o vice Alckmin, impedindo a linha sucessória, e o ministro e árbitro do pleito de 2022, no TSE, na eleição de 30 de outubro, Alexandre de Moraes.
A grande dúvida era se desfechavam o plano antes ou depois da eleição ocorrida e dos fatos consumados. Mário Fernandes tinha pressa. Numa reunião convocada no dia 22 de julho daquele ano, de forma ilegal, pois usaram o “próprio” do Planalto, um espaço público, portanto, para conspirar, ele conclamou ansioso: “Daqui a pouco nós estamos nas vésperas do primeiro turno. E aí, com a própria pressão internacional, a liberdade de ação do senhor e do governo vai ser bem menor. A população vai começar a acreditar: 'Não, tá tranquilo, o governo não tomou a medida mais radical, tá tranquilo'. Então, eu acho que realmente nós temos que ter um prazo para que isso aconteça (...)."
As conversas e conchavos prosseguiram, até que a eleição chegou e o “golpe” só rolava no WhatsApp, como protestou um dos oficiais, em conversas trocadas com Mauro Cid: “Seremos leões de Zap”, debochou. Era preciso ação, e ela não tardou a chegar. No dia 30 de outubro, data do segundo turno da eleição, Silvinei Vasques, o diretor da Polícia Rodoviária Federal indicado por Flávio Bolsonaro, colocou a tropa na rua e desencadeou um plano, amparado pelo ministro da Justiça, Anderson Torres, para impedir o acesso dos eleitores nas áreas de maior concentração de adeptos de Lula. Onde as pesquisas apontavam 75% de adesão ao então candidato petista, lá estava uma patrulha para impedi-los de chegar às urnas. Mas, a despeito das “inspeções” ilegais, eles chegaram e deram a vitória a Lula.
No dia 31 de outubro, com o resultado favorável a Lula — vitória, inclusive, reconhecida pelos EUA desde o primeiro minuto —, também com o apoio da PRF, os "Kids Pretos" ocuparam as principais rodovias, levando a reboque grupos de adeptos fanáticos de Bolsonaro, impedindo o ir e vir da população. Nem ambulâncias com parturientes passavam. Vasques deu ordem para que não se mexessem para coibir as barricadas.
Os protestos resvalaram para as portas dos quartéis e não só foram tolerados, como incentivados e apoiados com banheiros químicos, fogões industriais, carne a rodo para os acampados e até sala de massagem para relaxamento. E luz e água, é claro. Aos que estranharam e buscaram explicações junto aos comandos militares, eles responderam com uma carta timbrada, no dia 11 de novembro de 2022. Assinavam a missiva: o comandante da Marinha, almirante Garnier; da Aeronáutica, Batista Júnior; e do Exército, Marcio Freire Gomes. Na carta, os três comandos defendiam os acampamentos e a “liberdade de expressão” dos que ali arquitetavam a conspiração contra a posse de Lula.
Revisão e “pitacos”
Enquanto isso, Anderson Torres, Bolsonaro, Mário Fernandes, Braga Netto e Heleno revisavam e alteravam — com “pitacos” de Freire Gomes, como está descrito nos documentos —, uma minuta de golpe, um roteiro para o desenrolar dos acontecimentos. Em seu depoimento à Polícia Federal, o comandante do Exército nega que tenha apoiado as ideias golpistas. Ele pode ter revisto sua posição a partir das advertências do Comando Sul dos EUA, de que não estavam de acordo e tampouco apoiariam o golpe no Brasil. O que ele não pode negar é que viu, leu e revisou a minuta.
Não só. Depois da carta dos três comandos ter sido veiculada na sociedade, os adeptos do complô continuaram com a conspiração no playground do apartamento do general Braga Netto, onde foi elaborada outra carta. Dessa vez, para mobilizar as fileiras da reserva e da ativa, com 220 assinaturas de oficiais, com patentes de generais, coronéis, brigadeiros, almirantes. Recentemente, três “patos” foram indiciados por tê-la escrito, com o aval para punição do comandante Tomás Paiva. Apesar de ter uma versão na íntegra, com as 220 assinaturas, publicada na mesma semana de sua circulação, no 247, o general Paiva ainda pediu “investigação” da existência da carta, talvez para protelar a punição.
A diplomação do presidente Lula estava programada para o dia 15 de dezembro. Porém, chegaram ao ministro Alexandre de Moraes notícias de que estavam planejando algo para impedir a cerimônia. Alexandre de Moraes resolveu antecipar a diplomação para o dia 12, quebrando o plano — que era o de sequestrá-lo e matá-lo nesse dia —, conforme agora se soube. É possível que Moraes não soubesse da extensão do plano, mas, ao antecipar a diplomação, desmobilizou o golpe e salvou a própria pele, além da democracia, nosso bem maior.
Naquela noite, Brasília assistiu a um quadro de horror. De acordo com uma fonte da PF que deu um depoimento à Revista Fórum, sob anonimato, por ordem do general Heleno, "Kids Pretos" espalharam botijões de gás por vários pontos da capital, tacaram fogo em ônibus e carros de particulares, fecharam as rodovias e forçaram a prisão do indígena cacique Sererê, que fazia parte do plano. Por não terem autonomia, os indígenas não podem permanecer presos. Um personagem perfeito para simular uma “injustiça”, Sererê forçou a própria prisão fazendo agito no aeroporto de Brasília. Foi a desculpa para os “protestos” na cidade. Na imagem colhida no celular de George Washington, o autor do atentado ao aeroporto, pela Polícia Civil do DF, tem-se ideia de como o cacique foi usado:
Sequestro e morte do presidente
Ainda assim, a tropa não se mobilizou para a ação do golpe. O plano, no entanto, seguia seu curso, prevendo: sequestro e morte do presidente — já eleito, Luiz Inácio Lula da Silva —, do seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), na época na condição de presidente do TSE, responsável pela lisura da eleição. O plano incluía envenenamento, no caso de sobrevivência de algum deles, ao ataque. Essa mensagem, divulgada na primeira leva de depoimentos do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, nos dá bem a dimensão do quanto mais violento esse golpe seria:
A posse do presidente Lula se aproximava e os golpistas não agiam, para desespero do general Braga Netto, que chegou a classificar os que não aderiam de “c...ões”. No dia 22 de dezembro, eles se reuniram no playground do general candidato a vice derrotado, onde foi elaborada a minuta de uma carta apelando para o golpe, assinada por 220 oficiais. No dia seguinte, Braga Netto apareceu, ao lado de Bolsonaro, pedindo que tivessem fé, pois algo iria acontecer por aqueles dias. Nada aconteceu. Faltava adesão. Meio Alto Comando estava fora do golpe, o que os levou a serem chamados nas redes sociais de “melancias”: verdes por fora, mas vermelhinhos por dentro.
Não se pode afirmar se o algo que Braga Netto prometeu foi o atentado à bomba no aeroporto de Brasília, mas certo é que, na véspera de Natal, depois que o deputado general Girão (RN) pediu que os fanáticos colocassem os seus sapatinhos na janela, porque teriam uma boa surpresa na noite natalina, o motorista de um caminhão estacionado próximo à pista do aeroporto de Brasília denunciou à Polícia Civil-DF que em seu caminhão haviam instalado um artefato. Sorte é que não explodiu. A bomba foi colocada por George Washington, que recebeu instruções e o material para confeccioná-la no acampamento em frente ao Comando Central do Exército, de um "Kid Preto".
No intervalo até a posse do presidente eleito, como bem lembrou o deputado Rogério Correia, Marcio Gomes Freire designou para o batalhão dos "Kids Pretos", em Goiânia, o coronel Mauro Cid, que garantiria o ataque a Brasília. (Lula soube, não aceitou e pediu que isso fosse desfeito). O ministro da Defesa, José Múcio, tentou impedir que Mauro Cid fosse destituído. Quase queima na largada o seu cargo. O país teria saído no lucro.
A posse transcorreu em segurança e em clima de euforia, sob gritos de mais de um milhão: “sem anistia”! Uma semana depois, ainda saboreando o clima de alegria e tranquilidade da posse, o presidente Lula foi surpreendido pelas cenas de terrorismo, vandalismo, do golpe de Estado do dia 8 de janeiro. Desnecessário descrevê-las, exceto para acrescentar que a atuação dos "Kids Pretos" para abrir caminho aos vândalos, nas cenas do golpe, foi fundamental. Sem dúvida, o imobilismo da Polícia do governador Ibaneis Rocha, que mandou abrir a Praça dos Três Poderes aos golpistas, foi estratégico. Escadas eram improvisadas com os gradis para facilitar a entrada no segundo andar dos palácios. Granadas escondidas no gramado da Praça eram lançadas por gente treinada, com luvas de rede metálica, para evitar queimaduras. O resto está por ser apurado, mas já é história. E como dói.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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