Governo Zelensky estaria empenhado em constranger Lula
'Não convém aos interesses do Brasil ceder às pressões para abandonar a sua neutralidade', escreve o colunista Marcelo Zero sobre a ocupação russa na Ucrânia
A posição do governo brasileiro sobre o grave conflito na Ucrânia é, a um só tempo, legalista, equilibrada e cuidadosa.
O Brasil condenou, por diversas vezes, a intervenção militar, mas se recusa a aderir às sanções implementadas sem o aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e a participar de qualquer “esforço de guerra”. Em sentido oposto, o Brasil tem realizado, dentro de seus limites, esforços para contribuir com uma solução negociada que conduza à paz.
Essa não é uma posição isolada do nosso país. Na realidade, essa é a posição da maioria dos países do mundo. Deve-se levar em consideração que o conflito da Ucrânia afeta a economia mundial, principalmente nas áreas de energia e alimentos, e tem potencial de escalar para uma guerra de grandes proporções entre potências nucleares.
Trata-se, portanto, de um conflito muito perigoso para toda a humanidade, que precisa acabar no mais breve prazo possível.
Dessa forma, não convém aos interesses do Brasil (e do planeta) ceder às pressões para abandonar a sua neutralidade e se empenhar em um “esforço de guerra”, que vem se provando, aliás, absolutamente inútil.
Não há solução militar para o conflito na Ucrânia. A solução terá de vir mediante negociações realistas.
Mas parece que o governo Zelensky não entende e não aceita tal posição brasileira.
Há alguns dias, foi apresentado, pela oposição, na Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, um requerimento para convidar o presidente Zelensky a comparecer àquela comissão, “a fim de debater a dificuldade que a Ucrânia tem enfrentado em estabelecer relações diplomáticas com o nosso país, demonstrada pela demora do governo brasileiro em convidar o Chanceler ucraniano Dmytro Kuleba para visitar o Brasil.”
Na Justificação apresentada, afirma-se que “recentemente, o embaixador da Ucrânia no Brasil, Andrii Melnyk, afirmou que aguarda há cerca de seis meses que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpra um acordo estabelecido no ano passado e convide o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba para visitar o Brasil, já tendo feito diversos contatos com o Ministério de relações exteriores. A visita do Chanceler é o primeiro passo para que o presidente Volodymyr Zelensky visite nosso país. Em contrapartida, o chanceler russo Sergei Lavrov em menos de 1 ano já foi recebido 2 vezes pelo governo.”
Se depreende, do texto apresentado, que o governo Zelensky estaria insatisfeito com o demora do convite e o requerimento seria uma espécie de resposta a tal insatisfação. Parece que há também certa disposição para forçar, via constrangimento político interno, um convite para que o presidente Zelensky seja recebido logo no Brasil.
Bom, em primeiro lugar, parece-nos que o requerimento apresentado é flagrantemente inconstitucional.
Segundo a Constituição Federal, artigo 84, VII, é competência privativa do Presidente da República manter relações com outros países. Por óbvio, convites para visitas ao país dirigidos a chanceleres estrangeiros ou a chefes de Estado só poderiam partir do Poder Executivo.
Não cabe ao Congresso Nacional e a quaisquer de suas comissões a iniciativa de fazer convites para que chefes de Estado venham visitar oficialmente o Brasil. A inadequação inconstitucional da iniciativa salta aos olhos.
Em segundo, não há assimetrias nos contatos diplomáticos entre Brasil/Rússia e Brasil/Ucrânia. Lembre-se que Lula não se reuniu com Putin, até agora, por motivos conhecidos. Não obstante, nosso presidente já se reuniu com Zelensky em setembro do ano passado, em Nova Iorque. Houve outra possibilidade de reunião em Hiroshima, na reunião do G7, em maio daquele ano. Lula reservou vários horários na agenda para o encontro bilateral, mas o presidente Zelensky preferiu “esnobar” nosso presidente. Lula ficou esperando e Zelensky simplesmente resolveu não aparecer.
Em terceiro, a propositura apresentada parece ter como finalidade, infelizmente, atender a interesses de governo estrangeiro e a causar constrangimentos ao governo do Brasil.
A oposição brasileira tem todo o direito, é claro, de criticar o governo e utilizar de todos os meios constitucionais, legais e democráticos para cumprir seu papel.
Tal não se aplica, porém, a governos estrangeiros e aos seus chefes de missões diplomáticas acreditados no país. Parece de todo improvável que o convite inusitado tenha sido feito sem o conhecimento e a anuência de alguma autoridade ucraniana. Fazer convite desse quilate sem alguma consulta diplomática prévia seria algo inédito.
Caso essa hipótese seja verdadeira, teria ocorrido violação de regras internacionais. Nesse sentido, cumpre observar que a iniciativa violaria frontalmente a “Convenção Viena sobre Relações Diplomáticas”. Com efeito, tal convenção estipula, em seu artigo 41, que:
Artigo 41
1. Sem prejuízo de seus privilégios e imunidades, todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditado. Têm também o dever de não se imiscuir nos assuntos internos do referido Estado. (grifo nosso) 2. Todos os assuntos oficiais que o Estado acreditante confiar à Missão para serem tratados com o Estado acreditado, deverão sê-lo com o Ministério das Relações Exteriores, ou por seu intermédio, ou com outro Ministério em que se tenha convindo. (grifo nosso)
O parágrafo 2, acima citado, é especialmente relevante. Ele dita claramente que os assuntos bilaterais devem ser encaminhados exclusivamente pelos canais diplomáticos previstos e acordados.
Se utilizar da oposição interna para manifestar insatisfação fora dos canais oficiais e tentar constranger politicamente o governo do Brasil pode ser interpretado como provocação que viola regras bem estabelecidas do Direito Internacional Público e os mecanismos usuais da diplomacia.
O Brasil deseja manter boas relações com a Ucrânia. Também deseja que o conflito no território ucraniano chegue logo ao fim. Mas o governo de Zelensky tem de respeitar a posição de neutralidade e em prol da paz do Brasil. Do mesmo modo, Kiev tem de respeitar a agenda diplomática oficial do país, estabelecida soberanamente.
Política externa é coisa séria e muito delicada. Não é com provocações e se imiscuindo nos assuntos internos do país que as relações bilaterais Brasil-Ucrânia irão evoluir.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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