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    Jorge Luiz Souto Maior

    Professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores)

    20 artigos

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    Hora da verdade, da justiça, da responsabilização e da memória

    "A reconstituição da ordem democrática requer a aplicação de todas as sanções penais, civis e políticas aos ilícitos praticados", escreve Jorge Luiz Souto Maior

    (Foto: Reuters/Bruno Kelly)

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    Por Jorge Luiz Souto Maior 

    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    Em 18 de julho deste ano, o atual presidente (candidato derrotado nas eleições) reuniu-se com representantes diplomáticos internacionais e, sem qualquer elemento de prova, desferiu mais um ataque às urnas eletrônicas. Essa foi apenas mais uma das inúmeras atitudes e falas do atual presidente da República afrontando as instituições e o patrimônio público nacionais e, sobretudo, desconsiderando a inteligência e as vidas humanas.

    Nenhuma reação jurídica e política efetiva se produziu como resposta a tais atos, de modo que foram se intensificando e se agravando a cada dia. Passadas as eleições, o presidente dobrou a aposta e não só reincidiu na conduta, primeiro, omitindo-se com relação ao reconhecimento da derrota e, depois, chegando mesmo a estimular a realização de atos antidemocráticos, ainda que tenha se manifestado pedindo a cessação dos bloqueios nas rodovias, mas apenas para a preservação do “direito de ir e vir”.

    Ocorre que independentemente de se atingirem ou não outras esferas da ordem jurídica, incluindo a que fora referida, qualquer manifestação que preconize um golpe de estado não se integra ao rol da liberdade de expressão, isto porque se configura juridicamente como um ato criminoso, notadamente quando se alimenta de outros crimes, como a violência física,[1] a xenofobia (com ofensas às pessoas nascidas no nordeste brasileiro[2]), o racismo[3] e apologias ao ódio[4] e ao nazismo[5].

    As agressões à ordem jurídica cometidas pelos ditos “manifestantes”, ou como se intitulam, “defensores da pátria”, estão muito além, por conseguinte, da obstrução de vias públicas.

    A verdade é que delitos têm sido expressa ou implicitamente estimulados pelo presidente da República, renovando, pois, seu completo desrespeito à ordem democrática, como já havia feito, aliás, de forma renitente, com relação às vidas humanas, seja quando desacreditou as medidas de prevenção e controle da pandemia, seja quando estimulou o armamento de parte da população, consentiu com a destruição do meio ambiente e conduziu uma política econômica voltada aos interesses de uma elite empresarial e do capital especulativo, o que fez o país retornar ao mapa da fome, potencializando o sofrimento de milhões de brasileiros e brasileiras.

    A negligência presidencial, marcada pelo desdenho com relação às medidas de prevenção, incluindo a vacinação, certamente contribuiu para que se chegasse à triste marca de quase 700 mil mortes por COVID-19 no Brasil (ou até mais, considerando as subnotificações). Em um país, com nem mesmo 3% da população global, se chegou a 11% do total de óbitos resultantes da pandemia.

    E cumpre ressaltar que a negligência em questão foi bem além da omissão, vez que se desenvolveu no período, concretamente, uma política deliberada de desencorajamento à imunização e desobediência às políticas de isolamento social e utilização de máscaras.

    Este conjunto de elementos desenham os contornos de uma agenda genocida implementada no país. Também nesse particular é de se ter em conta que a pandemia vitimou de forma mais contundente não só idosos e pessoas com déficit de imunidade, mas também de forma desigual e mais pronunciada a população negra e pobre do país, o que pronunciou o genocídio imemorial denunciado desde Abdias do Nascimento contra negros e negras brasileiras.

    Assim, para que se tenha êxito no necessário processo de revalorização de uma vida em sociedade marcada pela solidariedade e o respeito à condição humana, é fundamental que os ilícitos praticados neste período não restem esquecidos e impunes.

    Quanto aos atos praticados por ocasião das eleições, cumpre lembrar do uso abusivo e com evidente desvio de finalidade de contingentes da Polícia Rodoviária Federal e mesmo do Exército para dificultar o voto de milhares de eleitores, sobretudo no nordeste, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, contrastando com a total ausência das mesmas operações policiais em regiões com predominância de eleitores do atual presidente e, sobretudo, com a postura de conivência e até de apoio explícito da mesma PRF.

    Lembre-se, ainda, do assédio eleitoral, que chegou ao absurdo número de mais de 3.000 casos denunciados. É de suma importância, pois, que se prossiga na análise das denúncias e suas respectivas demandas, para que, comprovados os fatos, sejam reparados todos os danos morais e materiais experimentados pelas empregadas(os) assediadas(os), de modo, inclusive, a restituir-lhes o emprego, com a necessária proteção contra a dispensa arbitrária.

    Vale perceber que é exatamente a certeza da impunidade que faz com que parte do setor empresarial, de onde partiram os assédios e até mesmo, segundo as procuradorias-gerais de alguns Estados, o financiamento de atos antidemocráticos,[6] não tenha o menor receio em já pronunciar para assediar o presidente eleito, exigindo que deste que se mantenha em vigor a “reforma” trabalhista,[7] a qual, como se sabe, foi a principal causa e efeito do golpe de 2016. Reduzindo direitos, abalando a atuação sindical e obstruindo o acesso à justiça, a “reforma” trabalhista visou, unicamente, ampliar as possibilidades de lucro de parte do setor empresarial, por meio do rebaixamento dos limites civilizatórios para a exploração do trabalho.

    Concretamente, os que utilizaram a máquina pública para a “compra” de votos ou interferir de alguma forma na liberdade do voto e todos aqueles (empresas privadas e públicas, ou mesmo políticos) que cometeram qualquer tipo de assédio eleitoral devem ser responsabilizados por suas condutas, sendo certo que o término do processo eleitoral (e mesmo o resultado das eleições contrário aos seus evidentes interesses) não apaga os delitos cometidos.

    A reconstituição da ordem democrática e da autoridade do Estado de Direito requer a efetiva aplicação de todas as sanções penais, civis, trabalhistas, eleitorais e políticas aos ilícitos praticados durante a pandemia e as eleições, isto porque, embora se tenha a sensação de que a pandemia foi superada, esta nova realidade, de fato, não foi oportunizada a milhares de pessoas e, ainda que se tenha por certo que o novo presidente foi democraticamente eleito, a enorme quantidade de ilícitos eleitorais verificados, conforme acima enunciado, explicitaram o quanto nossa democracia ainda precisa evoluir para se afastar do tempo dos “donos do poder”.

    Aos que estão por aí (hoje e já há algum tempo) atentando abertamente contra a vida, os direitos fundamentais e a ordem democrática o destino não pode ser o do mero retorno para a casa, como se nada tivesse ocorrido.

    Enfim, para uma efetiva reconstrução social, cultural, política, econômica e humana, será preciso passar o Brasil a limpo e, para tanto, é essencial, rompendo-se o despudorado sigilo de 100 anos, que se instaure uma Comissão da Verdade, Justiça e Memória do período do atual governo (com necessária participação popular), de modo a apurar, registrar, documentar e responsabilizar todas as condutas praticadas (nos âmbitos públicos e privados) que se constituam como delitos contra a ordem democrática, os Direitos Humanos e o meio ambiente.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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