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    Ronald Rocha

    Ronald Rocha é sociólogo. Diretor do Instituto Sérgio Miranda (Isem).

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    Importante, mas insuficiente

    "Torna-se indispensável sintetizar os temas e reivindicações mais gerais do campo democrático, que podem unificar os setores oposicionistas, sem qualquer ordem ou prioridade", escreve o sociólogo Ronald Rocha

    (Foto: Luiz Rocha / Midia NINJA)

    Por Ronald Rocha 

    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    No dia sete, junho, pela manhã e à tarde, as praças e ruas – que haviam ficado, por alguns dias, indevida e provisoriamente cativas das hordas ultradireitistas – retornaram legitimamente às mãos de quem devem pertencer. A posse de facto – pois a expressão de jure suscitaria uma longa e complexa discussão acerca do conteúdo imanente ao Estado e à coisa pública na formação econômico-social capitalista, muito além do escopo destes breves apontamentos – já foi sublinhada nas palavras de Castro Alves, mediante infinitas citações de O povo ao poder. Vale a pena relembrá-las mais uma vez: “A praça! A praça é do povo / Como o céu é do condor / É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor.” Como nunca, os versos do poeta permanecem atuais, mas se amalgamam com dilemas políticos e táticos, como se percebeu durante a semana.

    Domingo passado, mobilizaram-se militantes partidários e ativistas populares nas principais capitais brasileiras. Em que pesem as discrepâncias verificadas nas bandeiras de luta, bem como a carência de comandos e finalidades previamente unificados, salvo exceções, os protestos “antifascistas” se concentraram, em sua dimensão de positividade, no lema “democracia”. Como as polêmicas demonstraram nos anos 1980, a exaltação do “valor universal” remete a uma genericidade abstrata que, sem os demais e fundamentais níveis da realidade como totalidade, vela, deforma e transmuta o conceito em seus próprios ser social e nexos concretos, sonegando-lhe a particularidade histórica de classe. Foi assim, por meio de uma revisão inspirada nas correntes neokantianas, que o liberalismo acabou hegemonizando a II Internacional em simbiose com suas veleidades socialistas.

    O noumenon – recuperado pelo filósofo de Königsberg com base no célebre noumena que Platão fincara no “puro pensar”, como “realidade superior” – se localiza em uma esfera misteriosa: uma essência que jamais aparece aos sentidos e que, portanto, alude a uma condição de objeto apriorístico, inatingível pela experiência. O problema não reside no critério de reconhecer a objetividade, que também o marxismo acolhe como princípio materialista, mas na postulação de uma “coisa em si” – Ding an sich – imune à subjetividade humana e à ciência, hostil, pois, a qualquer tipo de qualificação. Algo que admite a menção categorial, mas seria incognoscível, isto é, que se afirmaria de modo natural e que os sujeitos poderiam tão somente representar.

    Tal enfoque passa bem ao largo da percepção crítica indispensável à política revolucionária. Como está integralmente substantivada quando residente na sociabilidade própria do capital, a “democracia” vive confortavelmente na legislação em vigor, na cimeira do melhor direito constitucional burguês, na doutrina liberal sobre o Estado, no cotidiano da mídia monopolista-financeira e no discurso de partidos à direita ou à esquerda, que reforçam e reproduzem o senso comum. Todavia, tende a entrar em crise ou até fenece, conforme a correlação de forças, nos períodos marcados pela débil presença proletária nos embates, pelas situações de guerra externa, pelos conflitos intestinos agudos, pelos processos contrarrevolucionários e, notadamente, por regimes fascistas plenamente configurados. Ademais, adota um conteúdo convenientemente plástico.

    Em seu nome o golpe de 1964 e o seu regime decorrente foram, com sinais contrários: primeiramente, operados pelas Forças Armadas; posteriormente, combatidos pela oposição; a seguir, abdicados relutantemente pela transição conciliadora; depois, negados institucionalmente pela Constituinte; após, nomeados nos contenciosos dos anos “pacíficos”; na sequência, incensados pela reação bolsonariana; e, agora, repudiados pelas frases antônimas das manifestações. Chega-se ao ponto: nesta conjuntura, em que há um processo autogolpista em marcha batida, que deve ser barrado e derrotado pelos resistentes vinculados a diferentes ideologias e doutrinas sociais, a categoria “democracia” traduziu, espontânea e concretamente, no campo das forças, movimentos e instituições populares, inclusive por muitas pessoas identificadas com as ideias socialistas e setores avançados, as intenções jacobinas ou social-liberais de salvar os direitos e o regime político, desenhados constitucionalmente.

    Virou, pois, o apelido referente a um nome ignorado pela vulgata: o regime político. Registre-se que hoje, os seus angustiados evocantes vêm oscilando entre reivindicar o seu retorno, pois a enxergam como algo já destruído, e defender a sua manutenção, pois sabem que antes parca do que morta. No fundo, são juízos que se contraditam na seara da confusão entre governo e regime, ainda mais profunda em uma nação complexa. No Brasil a forma do Estado é uma República Federativa que possui três segmentos-entes autônomos – a saber, União, estados-membros e municípios – e que, ademais, se mistura com a célebre partição montesquiana dos “poderes”: Legislativo, Executivo e Judiciário. Durma-se com tal barulho. Em suma, é preciso entender a utilidade que o pragmatismo vê na fórmula rasa.

    Importa mais é que, na luta de classes viva em curso, a balbúrdia conceitual decantou a palavra difusa e imprecisa que permite a urgente aproximação entre os defensores da frente ampla – entre os quais um grande número de marxistas – com as múltiplas oposições influenciadas pela doutrina liberal, vez que o epicentro atual impregnado na luta de classes fluiu rumo à questão democrática. Eis porque tem sido necessário e possível promover consensos em prol da unidade prática, mesmo que fazendo concessões políticas, sem abrir mão das convicções teóricas. Tal é o motivo pelo qual se pode afirmar, sem qualquer dúvida razoável: os protestos havidos no primeiro dia semanal significaram uma vitória dos movimentos populares na batalha em defesa das liberdades coletivas e individuais, que não devem ser vistas com indiferença.

    Embora sem uma participação expressiva, sem o protagonismo de quem produz, sem uma direção consequente, sem um centro conhecido que se responsabilizasse nacionalmente pela convocação e sem uma plataforma unitária de reivindicações – imprescindíveis para se colocar um fim no Governo Bolsonaro e nas suas políticas, inclusive para obter conquistas parciais –, o ato retirou das milícias protofascistas o domínio exclusivo das cidades. Concomitantemente, reiniciou a luta extraparlamentar real, traduzindo assim, mesmo que ainda limitadamente, mas com admirável coragem, os graves problemas econômico-sociais e contradições que assolam o País, agravados multilateralmente pelas medidas ultraconservadoras ditadas pelo Palácio do Planalto. Expressou, assim, os anseios das maiorias.

    Motivos sobram. O Brasil agora ocupa o núcleo da pandemia mundial junto com a sociedade norte-americana sob a política trumpista, compondo a vexatória dupla que vem merecendo a repulsa planetária. O rumo da curva interna, que transparece o rol dos atingidos pela Covid-19, se aproxima do pico – julho, agosto, setembro? –, mas de maneira diferenciada nos vários estados e municípios, conforme as condições locais e os distintos critérios adotados. A responsabilidade única é do Governo Bolsonaro e de seus representados – a fração mais reacionária da oligarquia monopolista-financeiro –, que sabotam sistematicamente as orientações dos especialistas e das instituições indispensáveis à política sanitária, bem como estimulam, intencional e publicamente, a universalização da moléstia como solução para os males pandêmicos, chegando às raias do genocídio.

    Ao mesmo tempo, segue a crise combinada – recessiva, sanitária, institucional e também de governo – e se agravam os problemas sociais, impelindo as camadas médias e, sobretudo, as classes “de baixo” a extravasarem suas carências e angústias como podem, no conteúdo e na forma, uns se recolhendo, outros se arriscando para sobreviver na selva do mercado burguês. Nesse quadro, a indignação e os pronunciamentos populares se voltam, especialmente, contra o grupelho que ocupa o Governo Federal e a horda que o sustenta, notadamente contra o processo de autogolpe direcionado à liquidação do regime democrático vigente para reimplantar o regime policial-militar miticamente referenciado no golpe de 1964, mas repaginado como autocracia pessoal.

    Em face de um impasse tão sério, sem perspectiva de superação em curto prazo, e com tamanhas necessidades, os medos e preocupações vão cedendo lugar, paulatinamente, às iniciativas políticas de oposição, tanto mais quando há certeza de que os limites objetivos impostos pela Covid-19 se dissiparão em uma data muito aquém das calendas gregas. Logo, é certo que o embate precisa e deve continuar e se aprofundar. No entanto, precisa ocorrer de modo superiormente organizado e com muito mais amplitude. O apelo espontaneísta e a estreiteza – ir às ruas de qualquer modo, anarquicamente, sem articulação com as entidades representativas e com poucos participantes, ignorando a situação concreta – causariam sérios danos às mobilizações.

    A experiência mostra que tais equívocos desorganizam verticalmente os movimentos, refletem horizontalmente a fragmentação da sociedade alienada real, inibem a integração ampla dos interessados, estimulam formas de ação aventureiras, favorecem a operação de agentes provocadores infiltrados e desnaturam o papel das instituições populares insubstituíveis, como as centrais sindicais, as frentes que agregam forças e os partidos políticos à esquerda. Isso quer dizer que os pioneiros sociais devem ficar recuados, passivos, prostrados? Com certeza, não! As situações configuradas logo após a implantação do regime ditatorial-militar e nos seus estertores – respectivamente, 1964 a 1968 e na passagem dos anos 1970 aos 1980 – mostram que não só é possível, mas necessário, mesmo em certas condições de opressão extrema, incorporar condutas ousadas, sob a pena de ultrapassagem.

    No atual período há, internacionalmente, uma fase de contrarrevolução em que, salvo exceções, o proletariado e os povos se deparam com enormes obstáculos. As sucessivas marés de protestos, não raro pujantes como agora ocorre nos USA contra o racismo e o “sistema”, são impulsionadas, mundialmente, pelas contradições intensificadas na Fase Depressiva da Quarta Onda Longa. Todavia, transcorrem sem plataforma clara, sem objetivo definido e sem organização consequente. Vão e vêm no seu difuso modalismo, sem tonalidade, sem modulação e sem resolução possíveis no interior de uma lógica intrínseca, pois jamais erguem suas vistas para fora da realidade que as impele, nem dialogam com as forças que podem ferir de morte suas causas, muito menos atentam para os instrumentos orgânicos imprescindíveis às transformações radicais e até mesmo a reformas substanciais no interior da ordem.

    Também ficou evidente que no Brasil – como na Rússia entre 1905 e 1912, com maior tacão de 1907 a 1910 sob as violências de Stolypin — a reação bolsonariana impõe à luta socialista uma defensiva estratégica imune a datações proféticas e a desejos subjetivistas, por mais generosas e moralmente justificáveis que sejam. Entretanto, é certo que a tática – que se relaciona em aporia criativa com a realidade predominante, seja na esfera estratégica, seja nas fragilidades atuais – precisa comportar um espírito combativo e de iniciativa. No caso das manifestações públicas, há que serem bem planejadas e adotarem formas inovadoras, respeitando por enquanto as normas de segurança dos participantes com máscaras protetoras e distanciamento padrão até o ponto certeiro de inflexão.

    A intenção principal é – além das características imanentes aos atos em si – acumular o máximo de forças para mobilizar milhões assim que as condições objetivas e subjetivas o permitirem, inclusive o fim do afastamento social. Portanto, a orientação política de sair às ruas tem que reconhecer a situação de pandemia e amplificar o contraste com a conduta padronizada pelas hordas bolsonaristas, que tentam justificar-se por meio do negacionismo e do “contágio em rebanho”. Todavia, o decisivo, além de reocupar os lugares públicos, é colocar em primeiro plano a mobilização das massas operárias e populares, inclusive da juventude, única meta plenamente compatível com a frente ampla, completando-a como força motriz e dirigente, vez que a esquerda precisa nucleá-la como polo mais dinâmico.

    Tal objetivo, que só contradiz os interesses do mundo laboral e das classes populares na cabeça de inveterados metafísicos, apenas pode realizar-se integralmente na dobra da conjuntura. Para tanto, é preciso levantar bandeiras claras e unitárias, definidas por articulações diretas e amplas entre as entidades representativas do campo democrático, combinadas com ações partidárias mais avançadas e com alianças nos ambientes institucionais, envolvendo parlamentares de vários níveis, prefeitos e governadores, ministros e outros membros do Judiciário, militares legalistas e assim por diante, inclusive nas eleições municipais. Alguns chamarão tal política de conciliação, como assim também chegou a ser taxada em certos guetos nos momentos em que os comunistas se aliaram a forças burguesas: na Espanha, para defender a República dos ataques perpetrados pela coligação nazifascista internacional; na China para vencer as tropas japonesas invasoras; na II Guerra Mundial para derrotar o nazifascismo; no Vietnã, para combater a ocupação imperialista; dentre outros.

    Caso as cumeeiras falhem ou continuem vacilando na sua competência de fazer valer a Constituição e demais leis, os episódios mais dramáticos da luta poderão chegar pelo chão. Isso aconteceria em face da omissão nas instituições públicas, sobretudo as autoridades judiciais e de segurança, que têm o dever de barrar pela coerção as criminosas falanges armadas e suas constantes ameaças contra os partidos, as personalidades oposicionistas, os manifestantes, os congressistas, o Supremo e, ao fim e ao cabo, as instituições do regime democrático. Se ou quando forem obrigadas, as multidões não terão alternativas senão defenderem diretamente, com métodos tipicamente plebeus, não apenas os direitos fundamentais, mas também a si próprias.

    Por fim, perante as miríades palavras de ordem, mediante as quais os incontáveis agrupamentos e indivíduos, com toda legitimidade, exercitam suas preferências particulares na vã expectativa de todos enquadrarem com dois ou três vocábulos mágicos, acreditando piamente que o verbo é demiurgo do real, torna-se indispensável sintetizar os temas e reivindicações mais gerais, do campo democrático, que podem unificar os setores oposicionistas, sem qualquer ordem ou prioridade. Primeiro, a formação da frente ampla para barrar o autogolpismo e salvar o regime democrático. Segundo, a mobilização de grandes massas para vencer o protofascismo e suas milícias. Terceiro, a luta permanente para colocar um fim no Governo Bolsonaro e nas suas políticas reacionárias.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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