Inclusão e inovação
A interculturalidade se apresenta desde os primeiros passos da criação do MITS como um tipo de bilinguismo necessário ao trânsito entre dois mundos
Por Paulo Silveira e José Mendes Fonteles Filho (Babi)
Frequentemente a palavra inclusão é ligada aos desassistidos, jamais se imagina que o processo de inclusão possa estar ligado a um grupo de pessoas altivas, orgulhosas de sua cultura, que pretende, antes de mais nada, organizá-la e fortalecê-la buscando subsídios na cultura dominante.
Pois preparem-se para se surpreenderem.
A partir de agora vocês terão acesso ao processo de criação do “Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior – MITS” criado por iniciativa do Povo Tremembé, em 2006, uma pequena comunidade indígena que vive na cidade de Almofala, na costa do Estado do Ceará, processo esse iniciado nos anos 90, quando surgiu um modelo próprio de educação diferenciada que foi introduzido na comunidade por uma de suas integrantes.
De 2006 a 2008, o MITS funcionou de modo inteiramente autônomo: docentes voluntários vinham de diversos lugares e instituições de ensino superior (IES) ministrar aulas e orientar e/ou acompanhar as atividades curriculares, desenvolvidas no cenário da aldeia, as condições materiais eram providas pela comunidade indígena, seus amigos/as e parceiros/as e o curso não estava subordinado ao reconhecimento e gestão de nenhuma IES.
A partir de 2008, com a aprovação do financiamento do MIT com recursos financeiros federais, através do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais – PROLIND/MEC, e após ter sido submetido à apreciação do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPE da UFC, o MITS foi instituído como curso de graduação, tendo sido o primeiro do gênero, como já dito, na Região.
A interculturalidade se apresenta desde os primeiros passos da criação do MITS como um tipo de bilinguismo necessário ao trânsito entre dois mundos: o mundo da comunidade Tremembé de Almofada e o mundo da sociedade que os envolve.
No início dos anos 90, surge a Escola Alegria do Mar, a primeira escola diferenciada Tremembé, organizada por Raimundinha Marques, filha do Cacique João Venança. Nela, a jovem professora, com então 18 anos, ensinava as crianças a lerem, escrever e contar – saberes comuns às escolas “de branco” – mas também a cantar as músicas e a dançar Torém, uma dança tradicional do povo Tremembé, compondo, portanto, uma matriz curricular intercultural.
A construção do MITS proporcionou aos Tremembé a apropriação de saberes que não faziam parte às suas tradições e práticas culturais, circunscritos até então às agências oficiais e operadores da educação formal e acadêmica.
Como exemplos temos os saberes relativos à legislação educacional, ao financiamento da educação, incluindo acesso e gestão dos recursos financeiros, gestão escolar, entre outros. E ainda, de modo mais específico, os saberes próprios da prática docente, dito pedagógicos – os relativos às didáticas, metodologias de planejamento, de ensino e de avaliação – complementados com os estudos de psicologia, antropologia e outros conhecimentos agregados à formação docente nos tempos atuais.
Não obstante, mesmo se tratando de saberes que não pertenciam ao “mundo Tremembé”, até então, eles foram incorporados de forma contextualizada, numa perspectiva epistemológica mais próxima dos princípios teórico-metodológicos dos estudos de fenomenologia. Dessa forma, a disciplina de psicologia da educação, por exemplo, buscou-se investigar, junto aos professores Tremembé em formação e sua comunidade, as concepções e as práticas da tradição deles próprios relativas aos processos de desenvolvimento da aprendizagem, articulando-as com as teorias e conceitos da tradição da cultura dominante, dita “científica”.
A interculturalidade também se fez presente no arco de metodologias empregado nas diversas atividades acadêmicas, com destaque na didática empregada, que considerou os modos, as estratégias e dispositivos próprios da experiência de ensino-aprendizagem Tremembé, baseada, de maneira generalizada, na observação e acompanhamento dos que já detêm os conhecimentos e habilidades relativos aos saberes da tradição, e agregando a essa experiência recursos e métodos praticados na universidade.
Assim se sucedeu na execução da disciplina Saberes Tremembé do Mar, do Céu e da Terra, desde o início do planejamento do trabalho, o que implicou em termos aulas desenvolvidas em pleno mar, algumas das quais no período da noite e mesmo de madrugada, por favorecer o conhecimento da navegação orientada pelos astros e a percepção das mudanças de marés e dos ventos.
O plano previa ainda a realização da noite cultural, comum a todas as disciplinas, e que nesta teve como conteúdo a realização de um manjar tradicional Tremembé, peixe assado na brasa com grolado, acompanhado de cantoria de violão, Dança do Caçador e Torém.
Como trabalho de produção intelectual da disciplina, foi proposto a pesquisa, em grupos, sobre os temas em estudo junto à comunidade e a confecção de subsídios didáticos baseados nessas pesquisas, a serem utilizados nas escolas Tremembé.
A configuração do corpo docente do MITS, por conseguinte, também expressa a interculturalidade, a inclusão e a inovação presente em todos os aspectos do curso, como sugerido acima, como necessidade de execução das disciplinas e demais atividades propostas na matriz curricular. Tomando ainda como referência a disciplina supracitada, o docente responsável – e não somente “colaborador” – foi o cacique João Venança, cujo nome – como os dos demais docentes de todas as disciplinas, incluindo as disciplinas dos “saberes exógenos”, como mencionado – foi aprovado para tal função em assembleia da comunidade, que o considerou apto para lecioná-la, portanto, possuindo as competências teóricas e as habilidades didáticas necessárias para tal. Essa indicação foi submetida aos trâmites burocráticos, tendo recebido parecer favorável da Procuradoria Jurídica da UFC. Dessa forma, foi possível remunerar o docente cacique, como o foi aos demais docentes, ressaltando-se ainda que o valor hora-aula foi o mesmo de qualquer docente que possuísse título de doutor. Considero este um dos aspectos mais sublimes e mais expressivos da inovação implementada pelo MITS na UFC, que sinaliza reconhecimento e respeito aos saberes não acadêmicos do Povo Tremembé. Aí também se apresenta, a meu ver, uma forte expressão de inclusão e interculturalidade.
Os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) também carregam consigo as marcas da inovação do MITS, em vários aspectos. O primeiro, pelo objetivo final alcançado, a produção de subsídios didáticos específicos para as escolas Tremembé, até então inexistentes, e uma necessidade premente e inadiável. Ainda, pelas modalidades possíveis, previstas no PPP do curso (UFC, 2013: 37): além da clássica monografia, projetos de intervenção na comunidade, produção técnica ou artística, tendo sido a opção de 14 dos 16 TCCs por aquele tipo de produção. Os outros 2 trabalhos foram 1 CD de canções originais, autorais, produzidas na disciplina “Artes II: Canto”, e 1 videodocumentário sobre o mangue e sua importância na vida do Povo Tremembé de Almofala. O TCC inovou ainda quanto à autoria, podendo ser realizado individualmente ou em grupo. Dos 16 TCCs, apenas 2 foram produzidos por um único autor. Os demais, em duplas, trios ou quartetos inclusive, rompendo a lógica da produção individualista de TCCs, ainda presente na tradição acadêmica. No entanto, como reza a tradição ainda em voga, os TCCs Tremembé foram submetidos a bancas constituídas de especialistas nas temáticas abordadas, a maioria possuindo titulação de doutor, com a participação de docentes Tremembé que ministraram disciplinas no curso, como o Cacique João Venança, o Pajé Luis Caboco ou o Tuxaua Augustinho Tucum. A publicação dos TCCs, pouco tempo depois, através da Imprensa Universitária da UFC, e que originou a Coleção Magistério Pé no Chão, junto à publicação pelo MEC de outros trabalhos de pesquisas realizadas pelos alunos, citado anteriormente, constituem a maior coleção autoral indígena já publicada no Brasil, até agora.
O Estágio supervisionado do MITS, denominado de Estágio Curricular Orientado em Educação Escolar Básica Tremembé, também expressa inovação, como proposto no PPP do curso:
(...) montado numa metodologia de solução coletiva dos problemas surgidos na Escola Indígena Tremembé. Os cursistas estagiários replanejam suas atividades docentes com foco na luta do povo realizando projetos comunitários com objetivos no ensino aprendizagem dos alunos indígenas Tremembé” (UFC, 2013: 35)
Assim, portanto, este Estágio, como os demais componentes curriculares do MITS, a todo momento afirmam uma conexão indissociável entre a vida da comunidade indígena em suas circunstâncias, seus dramas e suas lutas no contexto atual, e as necessidades específicas que se apresentam nas ações cotidianas do aluno-professor Tremembé, na escola.
Porque, como é sabido, os alunos do MITS são todos professores e/ou gestores de suas escolas. Significa dizer que eles já estão naturalmente inseridos no Estágio, mas com uma diferença: as atividades de orientação, realizadas in loco, em cada escola, em semana posterior à semana de aulas de disciplinas, objetivavam potencializar as competências, habilidades e saberes técnicos dos professores para a identificação, planejamento e solução dos desafios que emergiam nas diversas situações de ensino-aprendizagem em suas escolas. E sempre considerando o objetivo maior da Educação Diferenciada Tremembé (EDITE), sintetizado na máxima da professora Raimundinha Marques: “A escola Tremembé nasce da luta e reforça a luta”.
A forma de ingresso no curso é também uma inovação e contribui para uma melhor compreensão do Estágio. Um dos critérios era que o candidato já estivesse em pleno exercício da docência ou gestão de uma das 6 escolas Tremembé. Porque, como dito por eles mesmos, é a prática cotidiana em uma escola indígena – e sua inserção na luta – que, efetivamente, forma o professor Tremembé. Os estudos acadêmicos apenas complementam, formalizam e contribuem para a sistematização dos saberes e habilidades imprescindíveis ao magistério em uma escola Tremembé.
Considerando, como dito anteriormente, que a EDITE é um desdobramento da luta maior, que é principalmente a luta pela terra, tudo que envolve a formação dos professores Tremembé foi e continua sendo exaustivamente discutido e apropriado por toda a comunidade. Ainda me emociono, após esses quase 20 anos de acompanhamento dessa bela e exitosa história de criação de um modelo de educação escolar, ao lembrar das assembleias, reuniões e tantos outros eventos organizados no processo de criação da EDITE, e de como uma comunidade ágrafa, em sua imensa maioria, passou, aos poucos, a se apropriar de um conhecimento até então reservado à elite dos operadores da educação formal. Pois cada elemento constitutivo do PPP do MITS e de sua execução foram sendo decididos com a participação efetiva de toda comunidade: matriz curricular, metodologias, avaliação, financiamento, gestão etc.
Assim, a própria linguagem do texto do PPP do MITS, não obstante buscar atender às formalidades das agências estatais de educação (UFC e MEC, principalmente), está atravessada de contribuições diretas da comunidade Tremembé, sendo marcada pela clareza e simplicidade da compreensão e expressão de idéias, conceitos e diretrizes propostos ao longo do processo e nos diversos espaços de sua construção.
Ainda em relação à seleção dos candidatos ao MITS, a comunidade Tremembé deteve o poder de indicação, formalizada por meio de aprovação de uma carta de intenções do(a) candidato(a), sendo esta aprovação considerada um outro critério fundamental de seleção. Outro critério foi o de o candidato ter feito o Curso de Magistério Indígena Tremembé – Nível Médio (MIT), ocorrido entre os anos 2001 a 2003, que dá início ao processo de formação específica dos professores e do qual o MITS é uma continuidade.
Ainda sobre a interculturalidade, a inclusão e a inovação presentes na matriz curricular, quero ressaltar a construção da proposta do ementário de disciplinas, realizada durante os Seminários Magistério Indígena Tremembé Superior – SEMITS. Os conteúdos de cada ementa emergiram dos temas de interesse dos professores em formação, da comunidade indígena e dos demais parceiros e apoiadores presente aos SEMITS. A condução dos trabalhos, sempre executada pelos próprios professores Tremembé, e suas estratégias de diálogo permanente e tomada de decisões coletivas, possibilitou que as propostas da comunidade indígena e dos professores em formação pudessem ser recebidas com uma escuta sensível por parte de agentes não-tremembé, como eu, participantes de todo o processo de construção dessa matriz, bem como de sua operacionalização e execução no curso.
Sobre este aspecto, da construção das ementas das disciplinas, vale ressaltar que estas somente alcançavam sua forma plena e definitiva após a incorporação, se fosse o caso, das sugestões feitas pelos alunos/alunas e demais lideranças e parceiros presentes ao primeiro momento da semana de aulas: a apresentação, discussão e aprovação da proposta de plano de ensino feita pelo docente responsável pela disciplina, de acordo com o PPP:
Em coerência com os princípios metodológicos norteadores do MITS, as ementas das disciplinas, foram, em geral, construídas a partir de proposições iniciais elaboradas durante os SEMITS, pelos cursistas, lideranças, docentes, representantes dos parceiros e demais envolvidos no processo de construção do MITS. Por ocasião da realização da disciplina, o docente “negocia” sua proposta de programa e plano de ensino com a Coordenação Ampliada, cursistas e comunidade presente à etapa. Assim, a ementa inicial é enriquecida com as contribuições dos presentes. Somente, então, ganha sua forma consolidada. (UFC, 2013: 38)
O desafio permanente a cada passo do processo, desse diálogo entre os dois mundos – era, por assim dizer, o de “traduzir uma parte na outra parte, que é uma questão de vida e morte”, como diz o poeta, de modo a garantir que aquele curso de formação de professores pudesse ser também a expressão da cultura e dos objetivos políticos dos Tremembé no campo da educação formal, que emergiu em sua história recente como um desdobramento da luta por afirmação étnica e, principalmente, pela demarcação de suas terras. O resultado desse esforço de tradução tem sua expressão no PPP do curso e em sua execução. Por exemplo, ao lado de saberes próprios à docência, como já mencionados, encontramos na matriz curricular do MITS disciplinas que comportam saberes “exclusivos” do mundo Tremembé, como a de Saberes Tremembé do mar, do céu e da terra – já mencionada – ou a de Torém: ciência, filosofia e espiritualidade Tremembé, entre outras.
Assim, a interculturalidade não pode ser reduzida àquela perspectiva clássica dos estudos culturalistas, que recorta e abstrai a cultura de sua realidade primordial, que são as relações de poder experimentadas pelos sujeitos e suas coletividades em relação com os outros. Neste caso, o contexto político das relações entre os Tremembé e a chamada sociedade envolvente. Portanto, a interculturalidade vivenciada no campo da educação diferenciada Tremembé, e de modo particular no MITS, é, antes do mais, a expressão de relações políticas postas em curso com os demais sujeitos e agências que atuam nesse campo.
Neste sentido, o dispositivo de gestão implementado no MITS é também uma expressão desta experiência singular de interculturalidade, inclusão e inovação. Vejamos.
O Curso era gerido por uma Coordenação Ampliada que tinha a seguinte composição: 1 coordenador representante da IES que abrigava o Curso (a UFC); 1 coordenador indígena, que era aluno do Curso e representava o segmento discente na Coordenação; 1 coordenador(a) pedagógico(a), já aposentado(a), portanto desvinculado(a) de quaisquer instituições, e que durante muito tempo desenvolveu suas atividades voluntariamente; 1 representante dos parceiros e apoiadores; 12 alunos do Curso, que representavam, de par em par, as 6 escolas Tremembé (sendo que um deles era também o coordenador indígena) e 4 lideranças representantes da Comunidade Tremembé, entre as quais o Cacique. Esta coordenação era a instância de tomada de decisões mais imediatas, cotidianas, relativas à gestão acadêmica e administrativo-financeira do curso.
Em relação ao Núcleo Docente Estruturante – NDE, que se constitui elemento obrigatório, há algum tempo, na construção e gestão acadêmica de um curso de nível superior, a experiência do MITS está marcada pelas categorias-chaves da análise objeto deste texto. Na prática, os SEMITS, realizados com expressiva participação da comunidade Tremembé, além dos parceiros e apoiadores, sempre foram o espaço mais importante de estudo, discussão e tomada de decisões, como já assinalado, tendo sido registrados por meio de atas assinadas por todos os presentes, além dos relatórios diários feitos sobre as atividades realizadas a cada dia do seminário. Contudo, por ocasião da vinda da Comissão do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa - INEP/MEC, que procedeu a avaliação e reconhecimento do MITS, conhecendo os limites dos instrumentos e critérios em voga em relação a uma experiência tão inusitada como a nossa, procuramos buscar atender a algumas formalidades burocráticas.
Em decisão tomada com a comunidade Tremembé, sugerimos os nomes de 9 docentes que pudessem representar as diversas áreas de conhecimento presentes na matriz curricular, bem como as IES parceiras do curso, os apoiadores voluntários e a própria comunidade Tremembé, propositora primeira do MITS. Foram, então, sugeridos os nomes do coordenador geral e mais 3 docentes da UFC, 3 docentes das outras IES (UECE, UNB e UFPI), a coordenadora pedagógica e o cacique, nomeados por meio de portaria do Pró-Reitor de Graduação.
São muitos os aspectos que poderíamos ainda relatar, os quais atestam que o MITS é uma experiência de formação de professores no Brasil marcada pela interculturalidade, inclusão e inovação, conforme definimos acima. Muito resta ainda por fazer, em se tratando de aprofundamento teórico do modo como esses conceitos foram ganhando forma no MITS. Reservo-me para espaços oportunos, adiante. Até a colação de grau da primeira turma do MITS, me reservei o direito de mais observar e registrar a riqueza e originalidade do processo, do que sua divulgação ou publicação de análises e sistematizações teóricas. Por vezes, bem sei, estive ausente dos reconhecidos fóruns de discussão e difusão de experiências como a do MITS, seja em nível nacional ou internacional. Esta ausência se deu, em parte, pela quantidade de trabalho que empreguei no que me competia, na consecução dos objetivos do MITS, que me impediu de priorizar tal intento. De outro modo, também por estar em acordo com o poeta Ednardo, cantor cearense, quando nos lembra em uma de suas canções, que “primeiro é preciso viver, que é pra depois poetar”. Ou ainda, plagiando Hegel sobre a produção da Filosofia, porque a coruja de Minerva só alça voo após o entardecer.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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