Lula, o professor
O linguista Gustavo Conte afirma: "Lula é um gerador nato de riqueza e soberania. Antes mesmo das redes sociais, ele sintetizou e vocalizou a voz de milhões em seu discurso, na forma e no conteúdo. Sua palavra reverbera não porque ele tem seguidores, mas porque sua voz é forjada no tecido mesmo da coletividade social em todo o seu espectro polifônico"
O mundo inteiro resiste à chegada da real democratização dos sentidos, dos gestos e das práticas coletivas, viabilizado por um conjunto de plataformas que faz entrelaçar pessoas reais. Velharias institucionais, ferozmente politizadas e excludentes, como o poder judiciário, a igreja e a imprensa, vão sendo mantidos à fórceps, em suas estruturas viciadas, em que a covardia é o parâmetro moral mais evidente.
As instituições têm pânico ao novo e à soberania intelectual porque estão ainda baseadas em conceitos fortemente hierarquizados que, por sua vez, ignoram, subestimam e criminalizam a interação digital.
Eles vivem no século 19, gostam de frases em latim, de gramáticas, de dicionários e de filósofos europeus, de preferência mortos. Estigmatizam a cultura oriental e árabe e assoviam quando o assunto resvala no genocídio em curso do continente africano.
O mundo sangra, como já sangrou antes.
O instituto da concessão de prêmios honorários é também um corolário desse atraso cognitivo, com sua excessiva formalidade e sua lógica classista. A estética da premiação se arrasta como herança colonial, ração das vaidades, recompensa das domesticações.
A condescendência com que prêmios são rifados para aplacar a dor da falta de reconhecimento são prática risível do nosso tempo, infelizmente ainda pouco clara aos que se lambuzam em convenções para degustar restos de festa no coquetel tóxico da aceitação social.
O desdobramento óbvio desta prática heteronormativa é a estética da competição, que esmaga o pensamento político sobretudo do segmento autointitulado democrático. Militâncias a rodo acham uma ofensa pertencer à oposição e usam – com imenso orgulho – o verbo “perder” para significar um resultado eleitoral.
O texto jornalístico e as redes sociais
Esse período de transição entre o que morre e o que nasce também repercute na dimensão da produção textual. O formato consagrado do texto jornalístico, com suas decrépitas convenções seculares, chega a assustar pelo acanhamento estilístico.
Jornalistas gostam de seguir regras e têm orgulho disso. O trabalho de domesticação histórica nessa área do trabalho semi-braçal realmente foi bem feito, tenho de admitir.
No mundo da produção textual institucionalizada, a rigor, temos também o pânico ao novo, a fobia ao diferente e a execração da clarividência. A concepção semântica que por ali grassa faz ruborizar qualquer pesquisador iniciante no campo dos estudos da linguagem.
Desconhecem desdobramentos metonímicos, uso retórico do tempo verbal e protocolos persuasivos de encadeamento anafórico, nomes sofisticados para práticas absolutamente banais do faber discursivo, dominadas com facilidade por qualquer aluno do ensino médio.
Pior do que isso, esses processos de confecção textual estão presentes, mas como na justiça brasileira, eles são seletivos. Entender que ‘Academia Sueca” é desdobramento metonímico de ‘Prêmio Nobel’ pode ser ‘barrado’, enquanto aceitar ‘Paulo Guedes’ como referência de ‘ministério da economia’ é chancelado tranquilamente, sem uma gota de vaselina.
O gênero “artigo de opinião” também padece desses mesmos males e ocupa um momento técnico bastante limitador, ainda que haja, no meio deste imenso cativeiro, faíscas soberanas de encorajamento intelectual.
Há ainda o efeito colateral da massificação do sentido e do texto, via redes sociais. Sujeitos fragilizados pelas transversalidades do tempo e do esquecimento buscam ‘temas quentes’ e ‘polêmicos’ pela única e exclusiva razão do ‘alcance’ e da famigerada ‘monetização’. Não se trata de relevância, mas de efeito viral.
Isso tudo, diga-se, no circuito autodesignado “progressista”. Trata-se, miseravelmente, do mesmo protocolo observável nas hostes bolsonarianas e na comunicação de guerra de Steve Bannon: joga-se para a plateia, como o faz Luciano Huck, explorando a miséria humana, num espetáculo degradante de contemplação ‘freak’, cafona e vulgar.
Existem até aplicativos que oferecem as palavras mais “quentes” do momento, levando esse subjornalismo a entrar na ciranda do algoritmo ao mesmo tempo em que, hipocritamente, o critica.
A linguagem não é um compêndio de regras
Tudo isso é transitório e apenas desvela o sintoma máximo do colapso de sentidos que se alastra pelo mundo do comentário: a morte de uma linguagem.
Nessa transição, usa-se recursos obsoletos para reger textos-autópsia e roça-se métodos falsamente inovadores para mergulhar fundo na mediocridade da repetição incessante do mesmo.
É pilotar uma Ferrari como se fosse um fusca – com o perdão da analogia pequeno-burguesa.
Permita-me humildemente dizer: o usuário de rede, como sói acontecer com espécimes humanos, gosta de significado, não do significante – ou: o que nos torna humanos é o sentido, não sua forma bruta (que, isolada, é apenas um rastro formal e opaco).
Admitamos: a lalia jornalística se assustou com a pletora enunciativa das redes sociais. Um textão anônimo de Facebook é muito mais amplo, complexo e necessário do que um artigo bem comportado alçado ao panteão do colunismo de vitrine.
Toda essa injunção história do velho contra o novo é, a despeito de ser traumática e enfumaçada, saborosa. Pesquisadores da linguagem e do sujeito deitam e rolam com distúrbios, sintomas, cegueiras e autoindungências – por isso, gostamos de ver até a polida cena degradada da interpretação e confecção de texto, confinadas no mundinho do certo/errado.
O movimento de manada está muito mais associado àqueles que gozam de posições institucionais e estudo formal (os gloriosos ‘funcionários do mês’) do que à massa que busca sua significação histórica ‘sentindo’ os fenômenos sociais e tecnológicos que os cercam.
Essa institucionalidade pesada e obsoleta, que ainda perdura nas democracias, nos credos, nas corporações, na justiça e na imprensa, busca a todo custo negar o ‘novo’ (um ‘novo’ específico, sem dúvida) e taxá-lo como ameaça.
Percebe-se, a contento, que o mundo da normatização trata, concretamente, da perpetuação de poderes, não de seu estilhaçamento democrático, que dá voz à uma extensão social muito mais ampla e virtuosa (porque verdadeiramente coletiva e espontânea).
Um tutorial de youtuber sobre qualquer produto disponível no mercado, por exemplo, tem uma qualidade crítica e técnica infinitamente melhor do que qualquer manual de instrução – além da dimensão do afeto interlocutório, componente imprescindível a todo e qualquer processo de significação digno de atenção.
Essa é a dimensão da diferença entre um texto institucionalizado, ardendo a regras do ‘bom jornalismo’, e um mero tuíte que deflagra um fenômeno de sentido muito mais denso e corrosivo, não importando se para o bem ou para o mal.
Resta mencionar um exemplo político dessa convivência sempre turbulenta entre novo e velho e suas respectivas denegações. O movimento político que reveste o Brasil nesta janela histórica de 20 anos é exatamente decorrente desse fenômeno.
O efeito-Lula
A elite financeira brasileira, normativizada e severamente limitada nas suas formulações teóricas de turno, viu-se encurralada por um metalúrgico que ensinou um país inteiro a pensar com a própria cabeça.
Essa elite viu um trabalhador, sem o estudo formal, tornar-se o maior realizador de políticas para a ampliação do... Estudo formal (pode parecer paradoxal, mas não é).
Essa elite viu um torneiro-mecânico abrir uma fenda sutil na estrutura das democracias capitalistas e introduzir um elemento novo na discussão macroeconômica: o ser humano.
Essa elite viu um sindicalista ser o responsável pela maior expansão econômica de um país continental, associada à inclusão social e distribuição de renda – sem afetar os lucros dos bancos e dos grandes empresários.
Ora, diriam uns, por que esse ‘gênio’ da macroeconomia e inclusão social não taxou, então, esses ganhos estratosféricos do empresariado? Porque ele é mais gênio do que essa significação rasteira de ‘genialidade’, oriunda da semântica prejudicada de nossa elite, intelectualmente inerte de tão bem alimentada.
A resposta é: se se erodisse um milímetro o lucro desses empresários subdesenvolvidos, todo o processo de inclusão social, distribuição de renda e acúmulo soberano de capital estaria comprometido (eles são vingativos, como a história recente confirmou).
A genialidade de Lula atende pelo nome de ‘pacifismo’. Sem a domesticação do estudo formal, ele pôde ousar e impor uma lógica espontânea, intuitiva e consistente de orquestração gerencial (lembrando que a intuição não acontece se seu portador não estiver conectado às realidades sociais de turno).
Lula sempre foi e continua sendo o ‘novo’, a possibilidade real de se produzir sínteses virtuosas de maneira incessante, sobretudo por ele não ser um ente político que perambula dentro da caixinha infame do bom comportamento elitista.
No primeiro segundo que a tradução corrente das novas tecnologias de comunicação e produção de texto chegarem ao conhecimento de Lula, ele formulará uma nova política de inclusão, desta vez, não mais meramente social, mas sim ‘operacional’, para que cidadãos-usuários de rede usem todo o seu potencial para gerar riqueza e soberania.
Lula é um gerador nato de riqueza e soberania. Antes mesmo das redes sociais, ele sintetizou e vocalizou a voz de milhões em seu discurso, na forma e no conteúdo. Sua palavra reverbera não porque ele tem seguidores, mas porque sua voz é forjada no tecido mesmo da coletividade social em todo o seu espectro polifônico.
Por isso Lula viaja o país sem parar, por isso Lula conversa com todos sem cessar, por isso Lula resistiu a todos os golpes que lhe tentaram impingir.
Por isso, ele é o preso político mais importante do planeta e da história: porque essa prisão significa a resistência a novas práticas políticas que varrem os nichos autoproclamados e privilegiados de poder e, ainda, instalam o protagonismo insinuante e afetuoso do povo soberano.
Lula mostrou ao mundo o que, de fato, é democracia, em um momento, talvez, em que o próprio mundo não estivesse preparado para receber essa lição – o Brasil, nem se fala.
É por isso que o processo de libertação de Lula é o processo de libertação de todos nós, dessas amarras que nos empurram de volta para um passado violento, excludente e individualista.
Lula nos deu a liberdade em um momento em que não estávamos preparados para ela. Agora, ele nos oferece a possibilidade de liberdade plena, uma vez que poderemos nos libertar em conjunto: ele de uma pena injusta e nós, de um aprisionamento atávico, estrutural, classista e intelectual.
Não há parâmetros para a monumentalidade subscrita na biografia de Lula. Ela transborda humanidade por todos os poros, por todas as reentrâncias, por todas as imperfeições.
Lula é o maior professor da história deste país. Ele nos ensinou a ser gente.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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