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    Flávio Ricardo Vassoler

    Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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    Maradona e o elogio do próprio naufrágio

    Quem conhece minimamente a história de violência do capitalismo sabe que a livre concorrência, desde sempre destinada aos inimigos, é regida pela mão da Camorra

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    Os (neo)liberais dizem que uma mão, invisível como Deus, rege as relações de mercado. Ora, quem conhece minimamente a história de violência do capitalismo - isto é, a história da violência como capitalismo - bem sabe que a livre concorrência, desde sempre destinada aos inimigos, é regida pela mão da Camorra, cujos capos napolitanos deram as boas-vindas a Maradona, em meados dos anos 1980, com os primeiros gramas de cocaína que o gênio argentino cheirou. 

    Nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, disputada no México, o maior jogador da história do futebol, apenas superado pelo nosso rei Pelé, foi alçado à condição de Deus pelos argentinos: o primeiro gol da partida histórica contra a Inglaterra foi marcado pelo camisa 10 baixote, que, para superar o gigantismo do goleiro inglês, fez uso não do cocuruto, mas do punho cerrado e matreiro ("la mano de Dios"), para cabecear/manusear a bola rumo às redes britânicas e vingar a derrota argentina na Guerra das Malvinas, vencida pela Inglaterra 4 anos antes. 

    Após falecer há pouco mais de um ano, em 25 de novembro de 2020, aos meros 60 anos, consta que Maradona, saindo em selfies com arcanjos e querubins, teria se mostrado misericordioso para com a divindade:

    – Se Deus quiser, eu Lhe devolverei, prontamente, a Sua mão. 

    Se fosse pintor, Maradona seria holandês e se chamaria Vincent Van Gogh. Em seu autorretrato, Vincent Maradona teria não a orelha direita amputada, mas o nariz cocainômano. 

    Se fosse escritor, Maradona seria russo e se chamaria Fiódor Dostoiévski. Em sua novela Memórias do meio-campo, Fiódor Maradona, cirrótico como o homem do subsolo, ecoaria a dor da personagem dostoievskiana como o elogio do próprio naufrágio: "Se me dói o fígado, que me doa ainda mais!". 

    Edson Arantes do Nascimento sempre falou do rei Pelé na terceira pessoa. "Para vocês, o Pelé fica, e o Edson passa. Para mim, o Pelé precisa passar, pois é como Edson que eu vou envelhecer". Mortal como todos e cada um de nós, Edson sabia que só se sobrevive à imortalidade do próprio reinado se for possível encontrar providenciais escadas de incêndio em meio ao edifício em chamas da glória. 

    Cercado e acossado pelo incêndio da glória, Maradona resolveu proceder à imitação do escorpião, que, à iminência de ser incinerado, arremete o ferrão contra o próprio corpo. 

    Nunca vou me esquecer das feições diabólicas de Maradona após marcar um gol antológico na goleada de 4 a 0 contra a Grécia, em jogo válido pela fase de grupos da Copa do Mundo de 1994, disputada nos Estados Unidos. Maradona estava possuído, seu rosto era a encarnação da vontade de poder nietzcheana.

    Quando, na sequência do torneio, Maradona foi pego pela teia de aranha do exame antidoping, assim falou Nietzsche sobre o Zaratustra argentino: "Porque tudo o que é forte nesta vida, um dia, vem a fenecer... E tanto melhor se o maestro, ao fim e ao cabo, for o regente do próprio naufrágio".

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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