Meias verdades e certezas perigosas
Que os gastos sejam controlados e qualificados no contexto de um projeto de desenvolvimento humano, social e econômico
"Não há fatos, apenas versões" (Nietzche)
Introdução.
Às vezes eu imagino Milton Santos, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr. e Celso Furtado - grandes pensadores do Brasil, cujas reflexões inspiram até hoje as políticas públicas de governos que procuram romper o círculo da pobreza e do subdesenvolvimento -, recebendo uma mensagem de WhatsApp com um desses “memes” que circulam nas redes. Como será que eles reagiriam?
A extrema-direita, em êxtase, vem fazendo circular meme informando que as contas públicas fecharam 2023 com “um rombo” (déficit) de 234 bilhões de reais; trata-se, evidentemente, de informação verdadeira, contudo, fora de contexto e que não informa que o governo anterior deixou 255 bilhões de reais em “restos a pagar” (dívidas vencidas em 2022 e não pagas até 31 de dezembro daquele ano), além dos precatórios não pagos, que representam mais 90 bilhões de rombo; esquecem de dizer que todos os indicadores macroeconômicos estão “muito bem obrigado”.
Os memes, e seus divulgadores, dão de ombros para a verdade, para eles o desemprego em queda; a inflação na meta; Selic em queda; dólar estável com viés de queda; bolsa de valores com viés de alta; reservas cambiais sendo recompostas, histórico dos governos Lula 1 e 2 de redução da relação dívida x PIB, além da reorganização de toda a institucionalidade, não importam, o que importa é dizer que “Lula [é] ladrão, [e que] seu lugar é na prisão”, apesar de tudo que foi revelado nos últimos dois ou três anos.
Sobre o “rombo”.
A notícia sobre o “rombo” é meia-verdade, pois, apesar de partir de elemento de verdade, exclui outros tantos e busca enganar, iludir, culpar ou deturpar a verdade e induz a uma falsa conclusão, completamente desconectada dos detalhes da política pública. A meia-verdade produz perigosas certezas e ódio, porque alimenta crenças e medos.
Primeiramente é bom que lembremos que o termo “déficit primário” é filho do “Consenso de Washington” e irmão das políticas de privatização, de liberalização e de austeridade fiscal (gostaria que algum economista neoliberal me explicasse por que o déficit tem o sobrenome “primário” e porque o pagamento dos juros da dívida não faz parte do seu cálculo).
De 1997 para cá o país pagou quase 9 trilhões de reais de juros, contudo, ao longo do mesmo período não se viu ponderação de que talvez o montante de recursos para despesas com juros fosse elevado demais e, quem sabe, fosse necessário contingenciar seus valores, renegociar prazos de pagamento ou mesmo estabelecer um teto para esse tipo de gastos, na lógica liberal isso é uma heresia.
O teto de gastos serve para gastar menos com saúde, educação, segurança e infraestrutura, mas os juros podem ser ilimitados? É isso?
Por isso não me emociono com quem defende acabar com a “gastança” e em liminar os dispêndios “ineficientes”, pois o que defendem é, na verdade, a redução dos gastos “primários”, ou seja: contenção dos gastos com saúde, assistência social, educação, previdência social, salários de funcionários públicos, segurança pública, infraestrutura e investimentos públicos de forma geral.
Não se ouve uma única palavra de preocupação a respeito dos 600 ou 700 bilhões de reais que o Estado brasileiro paga de juros anualmente.
Evidentemente gerar déficits é ruim, mas tem-se que pensar de forma mais ampla sobre o tema. O país tem de buscar a geração de “superávit primário”, isto é, se arrecadar mais do que gastar, mas não pode ser apenas para pagar os juros da dívida, pois há um povo que precisa de emprego, trabalho, saúde, educação, previdência e um país que precisa de desenvolvimento; apenas com recursos será possivel combater a criminalidade, o tráfego de drogas e aparelhar as policias para combater a corrupção; apenas com recursos o Estado recuperará os territórios ocupados pela criminalidade, pelas milicias e pelo trafego de drogas.
Ou seja, o gasto qualificado e responsável é fundamental, mas as pessoas e o desenvolvimento econômico e social devem estar no centro de atenção dos governos e não os bancos. Por que uma família pode esperar décadas para receber o valor de uma desapropriação, mas os bancos não podem submeter-se a uma regra que limite percentual dos juros contratados?
A versão neoliberal se tornou tão hegemônica que obscurece a reflexão necessária.
A dívida pública, resultado de déficits é um problema grave?
O pensamento hegemônico e acrítico busca iludir os incautos com o poderoso espantalho da “necessidade de controlar os gastos públicos”, deixando em segundo plano outra verdade, qual seja: o Estado precisa ter capacidade de investimento para atender a necessidade das pessoas, se não for assim o Estado não serve para nada; todo o investimento que levou o país ao desenvolvimento válido e sustentável foi, historicamente, realizado pelo Estado.
Não sou especialista em segurança pública, mas penso que o aumento da criminalidade coincide com o crescimento da lógica liberal, com o Estado Mínimo; no estado de São Paulo, por exemplo, a lógica liberal dos tucanos que governaram de 1995 a 2022, liberais fanáticos, sucateou a polícia civil e militar sob todos os aspectos (material e humano).
Nos últimos quarenta e poucos anos de neoliberalismo, o mercado buscou manter o Estado com baixa capacidade de investimento para: “vender” educação privada; “vender” saúde privada; “vender” segurança privada; lucrar em áreas cujo investimento foi 100% público, como saneamento, Gás e Óleo, geração de energia, telefonia etc.
Fragilizar o Estado é um projeto ideológico.
Essa é a razão da ofensiva das meias-verdades: cercear a capacidade de gastos do Estado. A lógica da “sustentabilidade da dúvida” ganhou a opinião pública com a generalização da “economia da dona de casa”, colonizou mentes e impôs uma autolimitação à União, sempre com nomes elegantes como: “Lei de Responsabilidade Fiscal”, “austeridade”, ou fofinho como “dever de casa”; depois tivemos o finado, e de triste memória, “teto de gastos”, uma invencionice pós-golpe de 2016 e agora o surge o tal “arcabouço fiscal”, outra invencionice que também limita os gastos da União.
O que estou propondo? Que os gastos sejam controlados e qualificados no contexto de um projeto de desenvolvimento humano, social e econômico e que paremos de tratar privilégios de classe como direitos adquiridos; não há direitos adquiridos enquanto uma pessoa passe fome no país.
Essas são as reflexões.
e.t. Mil vivas para José Dirceu de Oliveira e Silva, herói da democracia, herói da pátria. #VivaZeDirceu
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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