Miguel, 36
“Tá lá o corpo estendido no chão / Em vez de rosto, uma foto de um gol / Em vez de reza, uma praga de alguém / E um silêncio servindo de amém”
“Tá lá o corpo estendido no chão Em vez de rosto, uma foto de um gol Em vez de reza, uma praga de alguém E um silêncio servindo de amém”
Trecho de “De Frente pro Crime”, João Bosco e Aldir Blanc
Tá lá o corpo encolhido no meio do caminho.
Eu mesmo fiz a foto. Tentei seguir os profissionais, que pescam no acaso a fina composição da imagem. O cenário de fundo é um caminhão enfeitado com a palavra BRASIL, em maiúsculas. O enquadramento preserva o BRASIL, a pessoa e a paisagem.
Esta é a primeira cena que vejo ao pisar na calçada. Manhã gelada e o corpo imóvel em sono ou sonho profundo. A imagem diz mais, o piso irregular em seu geométrico desenho paulista, a coberta colorida, o papelão dobrado qual colchão, o dia que já começou. Impossível não tentar adivinhar quem se protege sob a combinação de lilás, rosa e branco.
Olhe de novo a foto e observe que igual “gato-escondido-com-rabo-de-fora” surge um cobertor colorido, proteção e forro da cama de pedra.
Jovem, velho; preto, branca? Quem e como será esse brasileiro ou imigrante?
Estridentes carrinhos de supermercado contornam o obstáculo, o casal de namorados desvia desenlaçando as mãos que se pegam no passo seguinte; no sentido oposto, o ciclista tira uma fina e o vira-lata fareja.
Buzina, sirene, gritos de bom dia. Do comércio, portas que sobem; da sibipiruna, folhas que descem. O sol promete e enfim cumpre, a multidão cresce, acelera, quer ganhar o dia, pagar o boleto, estudar. Tudo se mexe, só a estátua de carne, osso e sangue não sai do lugar.
Já contei a vocês – e peço desculpas por repetir - que o bairro em que vivo, a Vila Buarque, tem uma enorme população de rua. Talvez pelo apoio de igrejas, ONGs e voluntários, nossos vizinhos sem-teto encontram aqui algum apoio. Têm a chance de receber comida, roupas e, às vezes, atenção. É pouco mas é muito para quem perdeu tudo, ou quase.
O que mais assusta, nessa e em tantas outras vilas, é uma sensação de normalidade. Passamos a aceitar que pessoas não tenham casa e vivam na rua. Uma, duas, dez, 30 mil. 30 mil, apenas em São Paulo, denunciou uma antiga contagem oficial.
Ninguém fez passeata, ninguém pediu CPI, ninguém chamou a polícia.
Um ministro do Supremo, homem que manda prender, soltar e, se for o caso, prender de novo, botou a toga e assinou embaixo, com firma reconhecida. “Em 120 dias exijo um plano nacional de assistência à população de rua.” Vibrei com a notícia que foi manchete de primeira página e ao mesmo tempo me perguntei: porque esperar quatro meses, não dá pra agir em um mês, uma semana? O tempo passou e nem com a ordem suprema a população de rua ganhou acolhimento.
Mazelas de um país desigual. Como explicar que políticos e juízes com seus super-salários recebam auxílio-moradia onde milhões de pessoas não têm onde morar? E o auxílio não é um auxílio! Paga o aluguel de mansão ou duplex, com troco pra jardim e piscina. Esfregam na nossa cara o auxílio-paletó. É roupa de domingo pra barnabé de burra cheia desfilar em terra de descamisado. Junte-se ao abuso as dezenas de assessores, verbas, carros blindados com seus bancos de couro e tanques insaciáveis.
É o que chamam de Corrupção Estrutural. Os poderosos se organizam de tal maneira e com tantos privilégios que a vantagem imoral se enraíza e aumenta como erva daninha.
Se o Brasil é cada vez mais o paraíso do agro, o grande exportador de comida por que mandamos milhões de famintos se alimentar no lixo?
Sempre vale a pena ouvir a sabedoria de grandes brasileiros.
Frei Betto exclamou: “a fome é urgente!” Betinho alertou: “a fome é pra ontem!” Chico seguiu a toada dos Betos e pediu no samba Feijoada Completa: “vamos botar água no feijão.” Que lindo seria matar a fome de outros Betos, Betas, Chicos e Chicas.
*
De volta à terça feira gelada na Vila Buarque. O corpo se mexe sem pressa e então a coberta se levanta, braços se esticam, pés descalços se esfregam. O homem se espreguiça bocejando e olha pro novo dia.
É Miguel, um paulistano de 36 anos que se perdeu em sua própria cidade.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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