No Chile, não era paz, era silêncio. E no Brasil?
"É triste ver o fascismo mostrando a cara com tanta sinceridade no Chile e no Brasil, mas, e ao menos nas ruas de Santiago, o que se sente é que a reação está à flor da pele e que o povo não vai mais ficar calado até que ocorra uma transformação efetivamente profunda", afirma a jurista Carol Proner
Acabo de voltar de Santiago, de um evento que debateu as crises democráticas no Brasil, no Chile, na AL etc. e, ao final, nos convidaram para ir às manifestações que acontecem todas as sextas-feiras desde o histórico 28 de outubro de 2019.
Foi uma experiência impressionante, bela e triste ao mesmo tempo. Já são mais de 23 mortos, 9 mil presos com registros arbitrários de desacato e atos incendiários e mais de 200 pessoas que perderam a visão por disparo de “perdigones” balas feitas de aço (e não de borracha) disparadas pela polícia.
Os carros lanza-agua, que se parecem com tanques, lançam jatos com uma composição química que, dizem, leva soda cáustica. O gás lacrimogênio é mais forte que o de outros lugares, mais apimentado e sufocante, como infelizmente pude comprovar.
A avenida principal parece uma galeria enfeitada de memoriais em homenagem aos mortos e desaparecidos dos últimos três meses.
Na semana passada, morreu mais um garoto afogado pelos jatos d’água e sufocado pelo gás. Algumas das fotos registram os objetos usados para reprimir e o lugar em que Mauricio Fredes foi encurralado.
Eu soube de coisas surpreendentes na logística dos protestos, como o papel fundamental dos jovens “de la primera línea”, que fazem um cordão de isolamento para impedir o avanço da polícia e permitir que as manifestações possam acontecer. E também os pica-piedras, que, com picaretas, quebram parte das calçadas de petit-pavê para poder munir a linha de frente no contra-ataque, ou os “lazer led” que são vendidos nas calçadas, junto às máscaras, os óculos de proteção e os estilingues para bolas de gude.
Os lazeres são usados para distrair a mira do policial e evitar que acertem os olhos dos resistentes. Já se sabe que os carabineiros têm preferência pelo olho esquerdo. Claro, os que vão na frente são os mais preparados, os da periferia, acostumados à truculência diária.
Graças a esse sacrifício anônimo é que pode existir a belíssima manifestação do Marco Zero, uma festa linda e com ar triunfal na Praça Itália, rebatizada “Plaza de la Dignidad”. Não há como não sorrir estando aí. Lembrei de um amigo que falou do orgulho de nossas derrotas, nossos fracassos, como dizia Darcy Ribeiro, e é bonito estar do lado certo, mesmo quando acuados e atacados. Mas é também triste e irônico que, com uma aprovação minúscula, de apenas 6%, o Presidente Piñera segue aprovando seus duros planos e a polícia segue reprimindo cruelmente. Inclusive parte da reprovação é porque consideram que reprime pouco.
A juventude promete que não sairá das ruas “hasta que cambie el sistema” e gritam, usando o símbolo do “negro mata-paco”- o cachorro que teria incorporado o espírito de um estudante - que o Chile não estava inerte durante esses anos, “que no era paz, era silencio”.
Enquanto isso, no Parlamento, tentam negociar uma nova Constituição no embate entre poder constituinte originário ou uma composição mista parlamentar para definir o novo pacto de futuro que, como poderíamos imaginar, inclui formas de anistia e esquecimento para os atuais excessos das “forças da ordem”. Esse é um pouco do que vi e ouvi nas ruas de Santiago nesses dois intensos dias, e o que debatemos no excelente evento que tivemos no ex Senado, com gente de toda a América Latina.
Enquanto estávamos debatendo dentro do prédio histórico, havia militantes assumidamente pinochetistas aos berros nos portões, protestando contra o progresismo, contra as abuelas de la Plaza de Mayo e os defensores de direitos humanos “de corruptos”, nos diziam, contra Baltasar Garzón e contra o Grupo de Puebla, contra Evo, Lula, contra as esquerdas.
É triste ver o fascismo mostrando a cara com tanta sinceridade no Chile e no Brasil, mas, e ao menos nas ruas de Santiago, o que se sente é que a reação está à flor da pele e que o povo não vai mais ficar calado até que ocorra uma transformação efetivamente profunda. Por aqui, por enquanto..., bom, talvez esse seja o nosso tempo do silêncio.
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