Nossa memória em risco
"O que está acontecendo no IPHAN mostra que Jair Messias não mede nem medirá esforços em seu afã destruidor", escreve o jornalista Eric Nepomuceno
Sim, sim, a tensão internacional está em nível elevadíssimo. Mas, ainda assim, é preciso registrar o que acontece por aqui.
Sabemos – ou deveríamos saber – que seja qual for o setor deste país que se olhe, o que se vê é pura destruição.
O que está acontecendo no IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mostra que Jair Messias não mede nem medirá esforços em seu afã destruidor – no caso, de parte fundamental da nossa memória coletiva.
Larissa Peixoto, de quem no meio cultural ninguém jamais tinha ouvido falar, preside o IPHAN. E é dela uma frase reveladora: “Há aqueles que supervalorizam o patrimônio cultural”. E quem seriam esses “aqueles”? Os integrantes do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, instância máxima do próprio IPHAN e que regula a proteção do nosso acervo cultural.
Eles detectaram e comprovaram que a senhora Peixoto é uma cumpridora fiel e rigorosa da promessa feita por Jair Messias: destruir tudo que foi erguido ao longo de décadas. E pediram a ela uma reunião para debater o desmonte que está sendo levado a cabo.
A resposta da presidenta do IPHAN, além de prepotente e grosseira, é assustadora. No pedido de reunião, os integrantes do Conselho Consultivo enumeram ações recentes que comprometem a preservação do nosso patrimônio, a começar pela drástica redução no orçamento a partir da chegada de Jair Messias e passando, como não poderia deixar de ser, por iniciativas absurdas como a ideia de vender para a iniciativa privada o Palácio Capanema e a brusca retirada de apoio a peças e objetos de religiões afro-brasileiras.
Para a senhora Peixoto, o que dizem os conselheiros foi desmedido e desrespeitoso. O que ela faz à frente do IPHAN é respeitoso com o país? Que Jair Messias tenha confessado não ter a mais mínima ideia do que era o IPHAN, e depois ter despejado críticas violentíssimas e deboches preocupantes contra a instituição é algo que demonstre respeito?
Quem conhece a importância e a atuação do IPHAN assegura que nunca antes, nem mesmo durante a ditadura (1964-1985), houve um desmantelamento tão severo. E isso vai de anulações de tombamentos à aprovação apressada de licenciamento ambiental em áreas que sob proteção do IPHAN, além, claro, de espalhar bolsonaristas em cargos-chave. De patrimônio um bolsonarista entende, mas apenas do pessoal e familiar – e material. Patrimônio cultural é, além de balela, coisa de comunista, claro.
Outro detalhe na área cultural – seria risível se não fosse mais uma tenebrosa prova da situação – surgiu no “Portal do Bicentenário” da secretaria Especial de Cultura, ocupada pelo canastrinho Mário Frias (nada de canastrão: tudo nele, a começar pela dignidade, é ínfimo).
Numa releitura inédita da nossa história, o texto diz que em 1.500 a “recepção” aos portugueses foi amistosa. Que seu contato com os povos originários, ou seja, os nossos indígenas, foi cálido e gentil, numa atmosfera pacífica.
Quer dizer: nenhum indígena foi morto, nenhum foi a primeira mão de obra escrava da nossa história, nenhum palmo de terra deles foi invadido e arrasado, nenhuma indígena foi violada, e os portugueses não trouxeram enfermidades assassinas que não existiam aqui (tuberculose, gripe, doenças venéreas).
Por uma questão elementar de justiça, é preciso reconhecer coerência entre todas essas aberrações.
Afinal, num governo que tem à frente da Fundação Palmares, cuja missão é preservar, pesquisar e divulgar a cultura afro-brasileira, um negro que nega o racismo, e um secretário de Cultura semianalfabeto e totalmente ignorante, o que esperar de quem deveria zelar pelo nosso patrimônio?
Pobre, pobre país...
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