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    Jorge Luiz Souto Maior

    Professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores)

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    Nota sobre o sistema de cotas no Brasil

    Uma política de inserção de negras e negros em um país marcado pela escravização

    Sala de aula na UnB, primeira universidade federal a adotar sistema de cotas raciais (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    Nem adianta insistir no tema do racismo estrutural, explicitando, inclusive, que a questão do racismo no Brasil tem raízes históricas e está até hoje presente como elemento estruturante de um modelo de sociedade integrado ao contexto de capitalismo dependente.

    Nem mesmo cabe falar do quanto o convívio histórico com a escravização nos legou uma forma de naturalizar as violências raciais, sendo a mais proeminente delas a da negação, isto é, a de negar haver uma questão racial em determinados atos e palavras.

    Muito menos valeria trazer à tona o pacto narcísico da branquidade, como diria Cida Bento, que se estabelece entre as pessoas brancas, negando a questão racial ou mesmo impedindo práticas de correção, para, assim, conseguirem manter intactos os seus privilégios.

    Vou falar apenas de uma situação concreta, sem interpretações sociológicas ou maiores digressões de cunho cultural. O fato concreto é que, em 2014, por meio da aprovação da Lei n. 12.990, negros e negras conquistaram o direito a cotas de 20% nos concursos públicos federais.

    Nos termos da lei em questão, 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, ficam reservadas às negras e negros.

    É importante perceber que o número de negras e negros aprovados não corresponderá, restritamente, a 20% total de não cotistas, pois o que se prevê, na lei, é que as candidatas negras e os candidatos negros também concorrem, de forma concomitante, às vagas de “ampla concorrência” (art. 3º), sendo que a aprovação de negras e negros na ampla concorrência não será computada “para efeito do preenchimento das vagas reservadas” (§ 1º, do art. 3º).

    Assim, de forma bem objetiva, que ao se preencherem as vagas que foram “oferecidas”, 20% delas, no mínimo, devem ser ocupadas por negras e negros. Simples, não?

    Deveria ser, não fosse o fato de que se está falando de uma política de inserção de negras e negros em um país marcado pela escravização. Superando a lógica de reparação histórica integrada à lei em questão, os editais dos concursos têm se pautado pelo critério meritório, o que só serve para reproduzir toda lógica de exclusão até hoje experimentada pelo povo negro.

    Ao fixarem uma “nota de corte” aplicável a todos os inscritos no concurso o critério da “reserva das vagas” é quebrado, fazendo prevalecer os privilégios da população branca. E vale reparar que qualquer nota, dita como mínima, ainda é uma “nota de corte” e ainda que se a entenda necessária para por algum aspecto, não poderá esta ser a mesma para “cotistas” e “não cotistas”, sob pena de se eliminar, em concreto, a reserva de vagas.

    No II Concurso Nacional para Ingresso na Magistratura do Trabalho foi exatamente isto o que se verificou. Nos termos do item 10.21.3 do Edital do concurso, restou previsto que seriam “classificados” para a segunda fase os(as) 1.500 (mil e quinhentos) candidatos(as) que obtivessem “as maiores notas e todos(as) os(as) empatados(as) na última posição de classificação”.

    E a mesma cláusula previa que: “Além desses, serão convocados(as) os(as) candidatos(as) que concorrem às vagas destinadas às pessoas com deficiência e às pessoas negras, desde que tenham obtido a nota mínima exigida para todos(as) os(as) outros(as) candidatos(as).” O Edital, portanto, não fixou qualquer cota para pessoas negras e negros. Apenas disse que todas as pessoas autodeclaradas negras passariam à segunda fase caso atingissem as exigências mínimas meritórias, não estando submetidas, portanto, ao patamar de uma eventual nota de corte superior na “ampla concorrência”.

    O requisito meritório restou assim consignado no Edital: “10.21.3 Será considerado(a) habilitado(a) na Prova Objetiva Seletiva o(a) candidato(a) que obtiver o mínimo de 12 (doze) acertos no primeiro bloco de questões, 9 (nove) acertos no segundo bloco de questões e 9 (nove) acertos no terceiro bloco de questões e, satisfeita essa condição, alcançar, também, no mínimo, 60 (sessenta) acertos do total das questões dos 3 (três) blocos.”

    A fórmula trazida para a quantificação dos aprovados pode parecer uma vantagem, pois os candidatos negros e negras não estariam submetidos sequer ao número máximo de 1.500 para aprovação na primeira fase ou a qualquer outro limite, pois “todas” que atingisse a nota mínima seriam chamadas.

    No entanto, a correção da desigualdade histórica requer concretude, ou seja, não se satisfaz com preceitos abstratos que, na aparência, satisfazem as “exigências” da lei. De fato, não se pode conceber o sistema de cotas como um obstáculo a ser ultrapassado, como um incômodo a que se submetem os organizadores de um certame público. Há de se ter a vontade de que, por este sistema, se promova uma forma, ainda que singela da correção das violências sofridas pelo povo negro.

    Sendo assim, a fórmula criada não pode, em hipótese alguma, se satisfazer em si mesma a partir de uma lógica formal e que ainda se apoia no critério de mérito, que é um dos mecanismos de maior violência e de opressão imposto ao povo negro, desde a Lei de Terras, de 1850, até os nossos dias.

    No caso concreto, considerando a dificuldade da prova, sequer o número máximo de 1.500 aprovados na concorrência ampla foi atingido – o que há havia ocorrido no I Concurso, vale destacar, sendo, portanto, ao menos, presumível.

    Considerando os termos da lei de cotas, se eram 1.500 vagas para a Ampla Concorrência, deveriam ser fixadas 300 vagas para as cotas raciais e 90 para Pessoas com Deficiência, sem considerar aqueles, dentre estes, que fossem aprovados na Ampla Concorrência. Lembre-se que nos termos do próprio Edital o número de aprovação para candidatos negros e negras, além de PCDs, seria ilimitado e considerado para além do limite de 1.500. No entanto, nenhuma pessoa negra e nenhuma PCD foram aprovadas pelo critério de cotas.

    Foram aprovados, no total, 1430 candidatos, todos na ampla concorrência, estando entre estes 191 candidatos autodeclarados negras e negros (12,8% do total de aprovados), 45 pessoas com deficiência e uma negra com deficiência (3,14 do total de aprovados).

    Ocorre que as negras e negros e PCDs foram aprovados pela aplicação das mesmas condições a que foram submetidos todos os demais candidatos; ou seja, foram aprovados dentro do contexto da “ampla concorrência”. O critério de sua aprovação foi apenas o meritório.

    Isto quer dizer que, concretamente, as cotas não foram aplicadas. Matematicamente, a aprovação por cotas foi de 0%, mas a lei prevê que seja, no mínimo, 20%, para negros e negras e de 5%, para PCDs. Mesmo que não se queira levar a análise para o campo da tradição escravista, não se pode deixar de pensar a respeito quando se depara com algum argumento que tenta justificar que 0% de aprovados por cota foi a devida aplicação de uma lei que fixa um percentual de, no mínimo, 20%.

    Bem verdade que o CNJ, em decisão de 2022, aprovou Resolução que assegura a candidatos negros o direito de passarem para a 2º fase bastando atingir a nota 6,0, não lhes podendo ser imposta cláusula de barreira e nota de corte. Então, se poderá dizer, em defesa da higidez do Concurso, que as negras e negros que não foram aprovados não atingiram a nota mínima 6,0.

    Mas a normativa do CNJ é, obviamente, uma proteção para os cotistas, dentro de um contexto em que seu direito à cota de 20% foi negado por lhes ter sido imposta nota de corte superior à nota mínima 6,0. Assim, ao se eliminar a nota de corte ou cláusula de barreira, a intenção foi a de garantir que a Lei de Cotas atingisse o seu objetivo concreto de uma promoção assertiva de inclusão. Portanto, dito de outro modo, o que se deve extrair da Resolução do CNJ é a fixação de uma disparidade na nota de corte entre cotistas e não cotistas, como forma de garantir o respeito ao percentual previsto em lei.

    No caso do II Concurso Nacional para a Magistratura do Trabalho (e que também se deu no I Concurso), a dificuldade de resolução da prova impediu que a nota mínima 6,0 e os demais critérios meritórios fossem atingidos por um total de pessoas correspondente ao número de vagas oferecidas (1.500), devendo ficar bem nítido que número máximo para aprovação em cada fase do concurso segue o mesmo critério de vagas oferecidas.

    Como consequência, o que se estabeleceu foi uma nota de corte, equivalente à nota mínima, aplicável a todos candidatos, independente de serem cotistas ou não. Em suma, deixando-se todos submetidos ao mesmo patamar, foi eliminada a “correção” da desigualdade pretendida pela lei.

    Concretamente, só foram aprovados os negros e negras que seriam aprovados na ampla concorrência. E o mesmo se deu com as pessoas com deficiência, a quem, também direitos conquistados foram negados. Mas o que se pretende pelo sistema de cotas é que sejam aprovadas, em um percentual mínimo, pessoas que, pelo critério meritocrático, dadas as próprias razões históricas da exclusão, não seriam aprovadas.

    Dadas as características do concurso, as vagas reservadas a negras e negros deveriam ser submetidas a critérios distintos, incluindo a nota mínima, para se preservar, inclusive, o direito à ampla concorrência. Isto é o óbvio e o necessário. Do contrário, como, inclusive foi possível verificar, a reserva de vagas se deu apenas formalmente, pois, dada a dificuldade a todos imposta, a nota de mínima pode ser transformada em nota de corte, atraindo todos, independe de condição especial, para a mesma concorrência.

    Veja-se que no Enem, por exemplo, há uma reserva percentual de vagas para cotas e estas vagas atendem a critérios específicos, de modo a serem, concretamente, preenchidas.

    No caso do concurso público, pode-se até vislumbrar a necessidade de uma nota mínima, mas se a nota de corte corresponder à nota mínima, isto deve repercutir no certame específico das vagas por cotas, para o efeito de garantir a proporcionalidade mínima de aprovação, podendo-se, inclusive, caso necessário, como no caso de provas que se apresentam em um nível de dificuldade artificial e propositalmente bastante elevado, até mesmo eliminar a nota mínima, para que se efetive, em concreto, o processo de inclusão. No sistema de cotas, a política de inclusão se sobrepõe ao critério de mérito, até porque, as notas em provas não avaliam a competência para o cargo, sendo, meramente, a reprodução da lógica produtivista e meritória, notoriamente excludente.

    O sistema de cotas veio para quebrar esta lógica e constituir em real via de ingresso de negras e negros e PCDs em postos dos quais foram historicamente excluídos. Não à toa, apenas 15,9% dos magistrados(as) trabalhistas no Brasil são negros e negras. E olha que este percentual é o maior dentre todos os demais ramos do Judiciário.

    Seguindo-se os critérios em questão, fixados no Edital, foram aprovados(as) 19 candidatos(as) negros(as) e 3 PCDs, correspondendo, respectivamente, a 8,5% e 1,3% do total dos 223 aprovados(as). E esta aprovação, é bom que se diga, não foi pelo sistema de cotas, pois os 19 negros e negras e os 3 PCDs obtiveram notas que lhes permitiram integrar a lista da Ampla Concorrência. Ou seja, a aprovação por cotas foi de 0%.

    E, do ponto de vista concreto, se considerarmos que o percentual de negros e negras na magistratura do trabalho é de 19% e que, já sob o império da lei de cotas, a aprovação no concurso referido foi de 8,5% (sendo 0% pelo sistema de cotas), em vez de se ter avançado na política de inclusão e no projeto de correção das desigualdades, o que se efetivou foi um autêntico retrocesso, malgrado o “Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, apresentado pela presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber”, no dia 25/11/22, com o propósito de se estabelecer o engajamento formal e solidário dos Tribunais com a transformação do cenário de desigualdade racial, com a promoção de ações de equidade, inclusão, combate e prevenção ao racismo.

    O fato é que, mesmo diante dos termos inequívocos da lei, não se está cumprindo o mínimo necessário para a correção dessa realidade. A realidade de uma sociedade em que negras e negros são: 54% da população; 19% entre juízes e juízas do trabalho; e 84% das pessoas resgatadas em condições análogas à escravidão.

    Nos tempos em que se luta contra o racismo e se promovem eventos para denunciar e enfrentar as violências raciais, inclusive no âmbito da própria Justiça do Trabalho, não se pode negar a negras e negros a concretude de seu direito à reparação histórica.

    Um ato vale mais do que mil palavras. E o que nós, população branca e privilegiada, devemos à população negra não é uma romantização de seu sofrimento, e sim, ao menos, respeito às suas lutas e às suas conquistas. No caso: a reserva de, no mínimo, 20% de vagas oferecidas em um concurso público.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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