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    Jorge Luiz Souto Maior

    Professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores)

    20 artigos

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    O direito de greve

    Quem faz a história? Os que fazem greve ou aqueles que se mantêm alheios, vivendo sua vida “normal” em paralelo às mobilizações sociais?

    (Foto: Reprodução)

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    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    Na última sessão da Congregação da Faculdade de Direito a greve dos estudantes foi o ponto central das manifestações, cuja análise é bastante útil para que se possa entender como se constrói, no plano da argumentação, um consenso contra a greve e o direito de greve.

    Para quem tem a função de ministrar aulas de Direito do Trabalho este é um esforço necessário, ainda mais quando a greve envolve estudantes de direito e professores(as) da área jurídica.

    A lição fundamental: ordem liberal x direitos sociais

    Comecemos pela principal lição que se deve extrair do ocorrido: como tinham razão os autores que, no momento de proliferação da legislação operária, falavam da necessidade de, a partir deste fato, se conceber uma mudança das concepções teóricas do Direito como um todo e não a mera abertura para a constituição de um novo ramo do Direito.

    Estava-se, segundo advertiam, passando da ordem liberal, fincada na liberdade contratual baseada em uma pressuposta igualdade formal, para uma ordem direcionada pelos novos direitos sociais, pautados pela coletivização das relações, pela solidariedade e pela união de esforços para constituição de uma sociedade que fosse justa, integrativa e garantidora de uma subsistência digna para todas as pessoas.

    Essa legislação trabalhista e seus objetivos não poderiam conviver que os postulados individualistas e meritórios da ordem liberal, os quais, inclusive, já tinham dado mostras de sua falência, conforme, inclusive, os enormes conflitos sociais e políticos, além do elevado grau degradação humana constatado, com maior intensidade e abrangência, durante todo o século XIX e início do século XX.

    Falava-se, então, da formação de um “novo direito civil” ou, até mesmo, da necessidade de visualização do direito como um direito social. Não se reivindicava, pois, um direito novo, um “direito do trabalho”.

    No Brasil, foram defensores dessa ideia autores como Evaristo de Moraes (1905), Sampaio Doria (FDUSP-1922), Pedro Xisto (FDUFPE-1923), Clóvis Beviláqua (1937), Albertino Moreira (FDUSP-1938), Orlando Gomes (1941), Cesarino Jr. (1943) e Alberto Moniz da Rocha Barros (FDUSP-1953).

    Mas, como se sabe, o direito civil se manteve vigente e reproduzindo a lógica liberal, impondo-se a formação de um novo ramo do direito que abarcasse o ideário necessário para conferir efetividade à legislação operária.

    Foi esta, pois, a origem do Direito do Trabalho e seus institutos. Ocorre que, como diziam os autores citados, o risco que se corria, com a criação de um novo Direito de índole social em paralelo ao Direito Civil, era o de que se mantivesse o predomínio dos mecanismos institucionais e dos métodos valorativos reprodutores dos interesses imediatos da classe dominante e, assim, se promovessem invasões sobre o campo trabalhista, de modo a fragilizar o compromisso que, naquele período histórico, havia se firmado em torno do reconhecimento das desigualdades; da limitação da liberdade em relações entre desiguais; da necessidade de intervenção estatal para correção das desigualdades; da instrumentalização e reforço da mobilização política da classe trabalhadora; de modo a criar condições mínimas para o diálogo social entre capital e trabalho; da democratização das relações de trabalho; da promoção da solidariedade; da busca incessante da justiça social; da necessária visualização do processo de coletivização dos conflitos; e da implementação de uma efetiva política de distribuição da riqueza socialmente produzida, o que exigia a completa superação de uma ordem jurídica voltada à preservação do “status quo”.

    Era, pois, imperativo, conceber uma teoria jurídica de conteúdo progressista e que, portanto, se assumisse como efetivo instrumento para promover a construção de outra realidade social.

    Pois bem, ao se ouvirem os argumentos que professores e professoras ligados à racionalidade jurídica liberal lançaram contra o direito de greve, que é, vale repisar, um dos princípios institutos do Direito do Trabalho, fica evidenciado que os autores citados tinham plena razão.

    De forma reduzida, o que se assistiu foi uma série de invasões da racionalidade jurídica liberal, individualista e reacionária, sobre o campo do Direito do Trabalho e, mais diretamente, sobre o direito de greve. O que se viu foi uma tentativa de desconstrução do direito de greve pelos outros ramos do direito.

    É nesta linha, inclusive, que se devem ouvir os preâmbulos das manifestações em que o interlocutor fazia questão de dizer que não era contra a greve, mas que, considerados os princípios da ponderação e razoabilidade, outros valores deveriam ser considerados, mas que chegava sempre ao resultado da eliminação concreta do direito de greve, transpondo-se sobre este os valores liberais clássicos e toda a lógica de reacionarismo que esses valores transmitem para a ordem jurídica, sobretudo, quando o objeto de análise é a justiça social e a democracia real.

    Senão vejamos. Os argumentos (mais uma vez) utilizados.

    “Prejuízos do ‘cadeiraço’ para a imagem e a confiabilidade da Faculdade”

    (a) Prejuízo junto a quem?

    Quando se diz que uma foto com cadeiras amontoadas é uma forma de dano ao patrimônio público, mesmo que nada tenha sido, de fato, depredado, pois gera um prejuízo à imagem e à “confiabilidade” da Faculdade, a única conclusão possível que se extrai desta fala é a de que o seu autor está se dirigindo, exclusivamente, às pessoas e instituições que integram a classe dominante, para quem interessa a manutenção das coisas como estão, o que se traduz, retoricamente, como necessidade de “manutenção da ordem”.

    Mas se a interlocução for feita com os movimentos sociais, com os coletivos de luta por melhores condições de vida e com a classe trabalhadora em geral, a hipótese mais provável é a de que a mesma foto melhora, e muito, a imagem da Faculdade, tendo, inclusive, o potencial de gerar nas pessoas excluídas do modelo de sociedade ou inseridas apenas na lógica de submissão uma sensação de pertencimento e uma aspiração integração a este espaço de transformação social.

    (b) Abstração a partir da imagem (realidade histórica)

    Outro problema da preocupação de olhar para uma foto e a partir dela tirar conclusões é a absoluta ausência de compromisso com a produção do conhecimento, o que é muito grave, sobretudo, no âmbito de uma instituição de ensino. Não há qualquer processo de compreensão minimamente válido que se extrai de um raciocínio desapegado de um método. No fundo, trata-se de uma atitude autoritária, pela qual se busca impor à realidade uma visão de mundo ideologicamente construída e retoricamente camuflada.

    Uma foto não é nada além do que uma foto e a sua imagem só pode ser bem compreendida se conhecido todo o processo histórico que a antecedeu. No caso concreto, a foto das cadeiras amontoadas é resultado de um processo histórico e não o ponto de partida. A foto é resultado de inúmeras experiências históricas que demonstram que a greve, no Brasil, nunca foi admitida ou mesmo reconhecida como um direito por aqueles para quem a alteração das relações sociais não interessa.

    São incontáveis as iniciativas para manter as relações sociais dentro dos padrões da “normalidade”, mesmo durante a greve, exatamente para diminuir a potência de transformação da mobilização. Então, quem faz greve precisa se defender das violências daqueles que se postam e agem contra a greve. A foto, pois, traduz não a violência de quem faz greve, mas a violência de quem é contra a greve.

    É, por conseguinte, a demonstração de que a nossa sociedade ainda não aprendeu a conviver pacificamente com as manifestações de insatisfação daqueles que sofrem nesta mesma sociedade.

    Aliás, a própria história da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é repleta de situações como essas. Lutando contra uma das mais espúrias manifestações do autoritarismo em nossa história, estudantes, após deliberação da assembleia do Centro Acadêmico, XI de Agosto, em 23 de junho de 1968, ocuparam a Faculdade e emparedaram suas portas, pleiteando, também, uma reforma universitária. Seria admissível repreender tal conduta pela simples interdição da Casa? O método político não se legitima pelo seu conteúdo? Em si, a barricada construída pode ser objeto de reprimenda?

    Fato é que, aos sabores dos muros franceses do maio do mesmo 1968, as “barricadas abrem caminhos”…

    (c) Igualar eventos a partir da imagem

    Sem apego aos desafios da construção de um conhecimento científico e a produção de um saber voltado à valoração da condição humana e à melhoria do viver social, ou seja, sem qualquer método minimamente válido de análise, acaba-se cometendo o grave erro (embora não seja, na perspectiva de quem usa a figura, propriamente um erro e sim uma estratégia para criar um argumento que justifique a sua vontade particular) de equiparar, como realidades idênticas, duas fotos em que cadeiras aparecem fora do lugar.

    Dito de forma mais direta, dizer que uma foto que retrata um “cadeiraço” em uma greve não difere de outra foto em que as cadeiras do STF estão amontoadas, produzida no contexto de um atentado explícito às instituições democráticas, diz mais sobre os propósitos de quem faz a equiparação do que de uma formulação comprometida com a construção do conhecimento.

    Ora, basta que se considerem os processos históricos de cada uma das fotos e as intencionalidades dos respectivos movimentos, para que se chegue à conclusão inevitável de que os eventos não muito distintos e que as fotos não se equivalem, em nenhum sentido.

    “É preciso garantir o Direito de ir e vir” – ou “o direito de um se limita pelo direito de outro”

    A greve é um ato político que o direito apreendeu como um instituto que se exerce por meio de deliberação coletiva, atendidos os pressupostos de representação e de participação democrática. Assim, como um direito coletivo, uma vez que se deflagrada uma greve restam suspensos os demais interesses pessoais, ainda que juridicamente qualificados, primeiro, daqueles que se viram vencidos (ou não quiseram participar) na deliberação e, segundo, aqueles que são atingidos pela greve.

    Os interesses de uns e outros não podem se sobrepor ao direito de greve, pois, se assim for, o efeito concreto será o da desconsideração da existência da própria greve, obstando sua eficácia. A greve, como mecanismo de instauração de um diálogo em torno das reivindicações formuladas por parte daqueles e daquelas que, de outra modo, não seriam seriamente ouvidas e ouvidos, se apresenta, inclusive, como condição mínima para a construção de uma sociedade democrática.

    E a greve, necessário entender, objetiva quebrar a rotina e afastar a “normalidade”, até para que se possa compreender o quanto a “normalidade” não tem nada de normal e sim de opressão e sofrimento para muitas pessoas.

    Diante desse corte, pode-se ter a falsa impressão de que a greve é causadora de transtornos, mas isto apenas para aqueles cuja manutenção da “normalidade” interessa porque são beneficiados por ela ou porque já estão tão acomodados com o sofrimento e com as injustiças que a indignação já não mais lhes alcança. De fato, os transtornos já estavam lá presentes e, muitas vezes, há muito tempo na realidade cotidiana daqueles e daquelas que se mobilizaram coletivamente para agir e reivindicar mudanças concretas nas suas vidas.

    Não se pode, pois, falar em direito de ir e vir, tipicamente, individual e egoísta, durante o período de greve. Aliás, as pessoas continuam tendo assegurado o seu direito de ir e vir, mas não para ir até o local de trabalho, trabalhar “normalmente” e de lá sair, como se uma greve não estivesse em curso.

    A atitude em questão, mal identificada como exercício do direito de ir e vir, pois não nenhum direito se perfaz em abstrato e a sua existência exige uma relação concreta, é, na verdade, um ato volitivo de destruir a greve, ainda que seja promovido pelo medo de receber punições do patrão (o que é sem sentido, pois a greve é um direito constitucionalmente garantido), ou de obter alguma vantagem pessoal junto ao empregador ou mesmo junto ao julgamento da sociedade burguesa e suas instituições.

    Mesmo quando se trata da perspectiva de alguém que não integre a categoria em greve, ou seja, daqueles que são atingidos por ela, a restrição de direitos se mantém. No caso de uma greve de estudantes, não cabe aos professores e professoras invocarem o direito de continuar dando aulas, já que sua categoria profissional não está em greve.

    Primeiro, é importante perceber que não se trata de mero conflito de direitos, abstratamente considerados. O conflito posto se situa no plano dos interesses em jogo. Ao se dizer que o ato de querer continuar ministrando aulas está justificado pelo direito de ir e vir não se está, efetivamente, apresentando qualquer justificativa juridicamente válida, pois, como dito, o direito não se perfaz no abstrato, tanto que o próprio Direito Civil abarca as noções de abuso de direito e da legitimação verificada a partir dos fins sociais e econômicos do exercício de um direito, sendo certo, inclusive, que a negação da validade jurídica do ato pode se dar mesmo sem se perquirir acerca da vontade do agente, quando os efeitos são deletérios de interesses alheios, juridicamente qualificados.

    Então, as perguntas a serem feitas são: por que, afinal, um professor ou uma professora quer continuar dando aulas durante uma greve de estudantes? E quais são os efeitos concretos de sua atitude sobre o direito de greve e os direitos dos grevistas?

    As respostas dadas à primeira pergunta revelam quase sempre a ausência de suporte jurídico da postulação, pois, no geral, de forma tautológica, voltam-se para a norma jurídica vista em abstrato. É quando, por exemplo, se diz: “Porque tenho o direito de ir e vir”.

    Outras vezes, as respostas demonstram total desapego à própria regularidade jurídica formal. É quando se diz: “Porque não concordo com o objeto da greve”, ou “porque é a greve não me parece oportuna”, ou, ainda, “porque, embora justa a reivindicação, acho que se poderia agir de outro modo e não por meio de uma greve”.

    Ora, o professor não tem sequer uma norma jurídica no ordenamento jurídico que possa invocar em seu favor para que, a partir desses argumentos, se veja legitimado a “furar a greve”. A sua percepção pessoal não prevalece, em nenhum aspecto, sobre o direito de greve legitimamente exercido pelos seus efetivos titulares.

    “O professor está obrigado a ministrar aulas”

    Em se tratando de uma instituição pública, surge sempre o argumento de alguns professores de que, sendo um servidor público, está obrigado a dar aulas. O argumento, no entanto, prova demais.

    O professor ou a professora, na qualidade de um servidor público, só estará obrigado a ministrar aulas atendidas as condições necessárias para tanto. Se, por exemplo, as salas de aula não oferecerem condições de segurança ou salubridade, os professores e professoras podem se recusar a dar aulas, invocando a prevalência de seu direito fundamental à preservação da vida.

    Assim, se os estudantes estão em greve e se o ato de ministrar aulas estiver impossibilitado pelo piquete exercido pelos grevistas, que, repito, só existe como efeito do ato daqueles que acham que estão obrigados a ministrar aulas durante a greve ou que, simplesmente, querem continuar sua vida normal, agindo como se a greve não existisse, não tem a obrigação de bater boca com os “piqueteiros” ou de escalar o “cadeiraço” para conseguir, de forma até heroica, adentrar a sala de aula.

    “É preciso prestar contas à sociedade”

    O argumento da necessidade de dar satisfação à sociedade não seria digno de qualquer análise eis que completamente fora do quadrante jurídico. De todo modo, como acima mencionado, há se perquirir a qual camada social o professor ou a professora, que se vale de tal argumento, está se referindo. Se os interlocutores forem aqueles e aquelas que se sentem injustiçados e que vislumbram a greve e demais mobilizações sociais como uma forma de luta para buscar melhorar a sua realidade, o ato de furar uma greve só servirá para afrontar a maior parcela da sociedade e dar satisfação, dentro de uma lógica de aliança ou mesmo subserviência, às poucas pessoas que integram a parcela dos privilegiados.

    Curioso que, para atrair o argumento em questão, esses professores e professoras se colocam na posição de trabalhadores e trabalhadoras, mas, não raro, não se associam ao sindicato, não participam das assembleis sindicais e muito menos respeitam a deliberação coletiva a que se chega nas assembleias sindicais.

    “A obrigação do aluno é estudar, ainda mais em uma escola pública”

    O argumento não desafia qualquer debate jurídico, eis que lhe falta suporte fático. Ora, os estudantes, no caso concreto, estão precisamente lutando para que possam estudar, visto que, mantidas as condições atuais, não estou tendo aulas em número suficiente e ainda, sem uma efetiva política de permanência, sobretudo para os ingressantes pelas ações afirmativas, não conseguem bancar, por conta própria, a sua subsistência enquanto estudam, sendo, assim, impulsionados a vender a sua força de trabalho em contratos exploratórios de estágio que consomem todo o seu tempo e a sua energia, fazendo com que se opere uma transposição da condição de estudantes para o “status” de trabalhadores e trabalhadoras.

    “A modernidade exige que se pense em outra forma, mais razoável e ponderada, de reivindicação, superando-se o radicalismo da greve”

    Não existe nenhum argumento, para combater a greve, que seja mais antiquado e mais conservador que este. Desde os primórdios das mobilizações grevistas, os conservadores, ou seja, aqueles que não querem que a greve promova qualquer alteração da realidade, até porque do saldo de consciência que a conquista geraria, inspirando novas mobilizações, sempre se preconizou isto.

    Mas, concretamente, somente quando a normalidade é rompida – e este é o efeito da greve – é que as forças conservadoras se veem obrigadas a instaurar um diálogo social.

    Deslegitimar a greve com este argumento, sabendo-se, como se sabe, ou se deveria saber, que nenhuma alteração concreta da realidade em benefício da classe trabalhadora, se promoveu sem tensões, e, ainda, sem sequer vislumbrar que forma efetiva de luta não radicalizada seria esta, serve unicamente para manter as coisas como estão e ainda colocar a culpa nos oprimidos porque não encontraram uma forma de luta que “não incomoda ninguém e muito menos os opressores”.

    “Os estudantes devem entender as dificuldades orçamentárias que impedem que algo possa ser feito de forma abrupta e imediata”

    O argumento parte de um pressuposto juridicamente correto. Há, de fato, limitações orçamentárias. Mas o “déficit” orçamentário não é uma determinação legal e sim o reflexo de enormes variantes de gestão, que começam, inclusive, com a política mais amplo, em nível nacional e estadual, de rompimento dos laços de solidariedade e do sistema de seguridade social que caracterizam o Estado Social, abarcado pela Constituição Federal de 1988.

    Nos últimos anos, desde 2014, as universidades públicas têm sido induzidas a resolver os problemas do “déficit” orçamentário por meio de choques de gestão de cunho neoliberal, com promoção, sobretudo, da redução de pessoal e aumento da terceirização, o que tem gerando inequívoca piora das condições de trabalho e deficiência do ensino.

    Os estudantes em greve estão denunciando o quanto estas políticas estão causando-lhes danos concretos e, portanto, tentar deslegitimar a mobilização pelos próprios motivos que a gerou não tem nenhum sentido racional e lógico.

    Os estudantes estão fazendo a denúncia, como, ademais, já vinham fazendo, há anos, os sindicatos dos(as) professores(as) e dos(as) servidores(as) – e não foram solenemente ignorados (talvez por ausência de mobilizações grevistas). Compete aos administradores escutar, dialogar e buscar soluções que começam pelo rompimento expresso com as políticas neoliberais até então adotadas.

    A solução pode não ser simples, mas isto não deslegitima a greve e não abala a sua oportunidade, até porque sem ela nada disso estaria sendo pública e amplamente discutido. Fato é que sem a greve este processo de precarização e de implementação de técnicas de gestão neoliberais contrárias aos objetivos e finalidades de uma instituição de ensino público, continuaria, silenciosamente, seguindo o seu curso normal e aprofundando-se cada vez mais, em benefício dos interesses do investimento privado e sua racionalidade capitalista.

    “Os direitos sociais são programáticos, isto é, só podem ser cumpridos se a ordem econômica o permitir”

    Uma leitura da Constituição Federal de 1988 seria bastante útil para quem, com base em postulados fixados no período de 1945 a 1966, ainda expressa esta visão.

    A Constituição Federal de 1988, ainda que tenha mantido o modelo de sociedade capitalista, o fez com o pressuposto da consolidação de um autêntico Estado Social, que, basicamente, ao menos em termos de programa, altera essa lógica.

    A Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, como resultado da luta política dos trabalhadores contra o regime ditatorial e o rebaixamento econômico e jurídico do qual foi vítima nos anos 60 e 70: (a) elevou os direitos trabalhistas ao patamar de Direitos Fundamentais (Título II); (b) firmou, de modo expresso e inequívoco, o compromisso da construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”; (c) visou “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; (d) estabeleceu como fundamento da República “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”; (e) subordinou a ordem econômica à “valorização do trabalho”, de modo a “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

    Conclusão

    (i) A intenção de continuar as aulas e o abuso de direito.

    Afastados os supostos embasamentos jurídicos para sustentar os argumentos, o que resta é apenas a revelação da verdadeira intenção de seus proponentes, que é, precisamente, a de impor a sua visão de mundo individualista e conservadora, sendo, para tanto, imperial impedir o sucesso da greve, o qual muitas vezes se situa na própria capacidade de percepção da realidade e no saldo da organização coletiva. Destruir a validade do movimento, chamando grevistas de irracionais, violentos, antidemocráticos, “criminosos”, é um mecanismo para impedir este efeito emancipatório que toda greve, vencedora ou não nos seus postulados, tem o grande potencial de produzir.

    Esta intenção atrai, inclusive, uma nova dimensão jurídica, que é a do abuso de direito, pois sem servir ao amparo de qualquer interesse juridicamente qualificado, acaba servindo, unicamente, para causar dano àqueles e àquelas que aderem à greve. No caso de uma greve de estudantes, o efeito de se continuarem as aulas, como dito, representa uma forma de punir os grevistas, negando-lhes o direito de acesso às informações transmitidas em sala de aula, o que só pode ser negado pelo professor ou professora que defende esta continuidade, afastando a própria qualidade e a utilidade dos seus ensinamentos em sala de aula.

    (ii) O falso legalismo

    Quando todos esses recursos retóricos parecem falhar sobre, ainda, o argumento da estrita legalidade. É quando se diz: “Sou contra a greve porque a legislação assim dispõe e devo me submeter aos estritos termos da lei”.

    Interessante notar que a fala nunca é acompanhada de uma citação normativa específica, a não ser o já batido “direito de ir e vir”.

    Ocorre que, do ponto de vista da legalidade estrita, mesmo se considerados os termos da Lei de Greve (Lei n. 7.783/89), que é, vale lembrar, uma lei que reprisa o ideário neoliberal e que foi elaborada com o nítido propósito de reduzir o alcance do direito fundamental de greve, tal como edificado no art. 9º da Constituição Federal (“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”), sendo, por isso, inconstitucional, não se verifica a consagração da primazia do interesse individual sobre o coletivo.

    Pelo contrário. O que se tem é uma evidente inibição do direito individual diante da deflagração do direito coletivo de greve. Com efeito, preceitua o artigo 9º da Lei n. 7.783/89, a Lei de Greve, que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resulte em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento”.

    No artigo 11 restou definido que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, esclarecendo no parágrafo único que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.

    Resta evidente, portanto, que deflagrada a greve, instaura-se, obrigatoriamente, o ambiente de diálogo, cumprindo ao comando de greve e a entidade atingida pela greve buscarem, de comum acordo, a definição de como serão realizadas as atividades inadiáveis ou essenciais.

    “Contrario sensu”, de um modo geral, não há nenhuma determinação para que os grevistas cumpram obrigações destinadas à continuidade das atividades inadiáveis, nas quais se insere a atividade docente, por mais importante que seja.

    Assim, o que inequivocamente se extrai dos termos estritos da lei é que não existe a possibilidade juridicamente válida de as entidades atingidas pela greve definirem, por ato de poder, como se preservarão em plena atividade durante a greve, ainda mais aliciando e assediando trabalhadores(as) e pessoas para furarem a greve.

    Aliás, quando os alvos da greve se recusam a negociar e partem para os atos de violência contra a greve e os grevistas, o que se processa também por meio dos argumentos lançados para desconsiderar as reivindicações e atacar pessoalmente quem está na luta, o movimento retroalimenta a sua própria razão de ser baseado na indignação e na necessidade de reagir às agressões sofridas e ao “déficit” democrático constatado, inclusive para se proteger contra represálias. A dinâmica da greve redefine, constantemente, os seus caminhos e o modo como se relaciona com o movimento diz respeito à própria greve, ou seja, é também um ato de greve.

    (iii) A negação da legitimidade da deliberação coletiva em assembleia

    É importante destacar que todos os argumentos lançados fizeram vistas grossas ao fato anunciado no início da reunião de que a associação de docentes havia, dos dias antes, deliberado, em assembleia, a paralisação das atividades docentes, em apoio à greve dos estudantes, até a segunda-feira seguinte, quando nova assembleia se realizaria para deliberar sobre a deflagração de greve por tempo indeterminado da categoria, tendo sido, inclusive, fixados os pontos de reivindicação.

    Além disso, também nada se disse sobre a convocação feita por representantes da associação na unidade, para participação de uma assembleia na mesma segunda-feira, para deliberação sobre as diversas questões que envolvem a greve.

    Os debates se instauram em órgão não representativo da categoria de professores e professoras, na condição de trabalhadores e trabalhadores, e, mesmo fora, da pauta, resultou em deliberação de apoio a uma “Carta” formulada pela direção da unidade.

    (iv) Quem faz a história?

    Como se vê, o procedimento adotado e os argumentos expressos para atacar a greve não possuem amparo jurídico e, de fato, infelizmente, nem constituem efetiva novidade no cenário social, cultural, jurídico e político nacional.
    A experiência nos fornece mais uma importante lição: a constatação de como é fácil ser “razoável”, “ponderado”, defensor da “democracia formal”, apoiados da igualdade de tratamento para todos e todas, independente da avaliação da realidade concreta das pessoas, preconizar a progressividade vinculada às possibilidades dadas pela economia, falando do caráter programático dos direitos sociais, quando não se tem uma posição social confortável.

    Tudo isto nos conduz a inevitáveis indagações. Quem, nos movimentos históricos, construiu a democracia, o constitucionalismo social, os direitos fundamentais? Os que fizeram greve ou aqueles que se mantiveram alheios e vivendo sua vida “normal” em paralelo às mobilizações sociais?

    Ou, em outras palavras: afinal, quem faz a história?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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