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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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O duplo estupro: o real e o do Projeto do aborto

"Em pleno século XXI é inadmissível esse retrocesso, depois de tanta luta para assegurar à mulher iguais condições de vida, de trabalho e de coexistência digna"

Ato contra o PL 1.904/24 (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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Este texto motivado pela extrema violência à mulher a partir do conteúdo do Projeto de Lei 1904/2024, tema que dominou a mídia corporativa e também os veículos da mídia progressista, não tem a pretensão de fazer análises na amplitude das dimensões já abordadas em artigos e reportagens, amplamente publicados nos últimos dias. Resulta, tão somente, de minha inconformidade como mulher, entre tantas mulheres, que decidiram não emudecer perante essa infame agressão irreversível aos seus corpos e a suas almas.

A colocação do PL 1904/2024 para ser votado em regime de urgência, pelo abominável Presidente da Câmara Arthur Lira, causou enorme reação da sociedade por equiparar o aborto acima de 22 semanas de gravidez, em qualquer situação, ao crime de homicídio. As críticas negativas ao projeto ecoaram em todo o país e fora dele pela penalização inadmissível às vítimas de estupro e dos infindáveis sofrimentos decorrentes dessa violação.

Pelos dados disponíveis na Agência Brasil, uma em cada sete mulheres aos 40 anos já fez aborto, sendo que 52% dessas mulheres abortaram com menos de 19 anos. E entre estas vítimas 46% são adolescentes, 6% são meninas na faixa de 12 a 14 anos.

Em pleno século XXI é inadmissível esse retrocesso, depois de tanta luta para assegurar à mulher iguais condições de vida, de trabalho e de coexistência digna sem diferenciações de qualquer natureza em relação aos homens. Foram muitos movimentos contra a violência de gênero e pela igualdade de direitos ao longo da história do país e do mundo.

Apesar da luta que se perpetua há séculos, frequentemente observamos graves desrespeitos às conquistas asseguradas em inúmeras legislações. O exemplo mais recente foi a apresentação desse PL propositivo de alterações extremamente retrógadas sobre um tema tão sensível à mulher. 

As pautas de costumes convenientes aos interesses da extrema direita em desviar dos reais e urgentes problemas sociais do país, como as condições sub-humanas de boa parte da população pobre, preta e periférica, têm sido frequentes, sobretudo na atual fase obscura da composição majoritária e desqualificada do congresso. 

Como mulher não poderia deixar de manifestar o meu repúdio. A situação é tão grotesca que o sentimento que fica é de absoluta indignação ativa. Não podemos deixar passar a desfaçatez proposta por essa parcela de políticos inescrupulosos, eleitos por uma fração do povo completamente desconectada da realidade por inúmeras razões que apontei no meu artigo anterior sobre a Realidade Invertida, publicado em 14/06/24 neste site. 

As alterações propostas pelo PL 1904/2024, são tão insidiosas e arcaicas que nos remete a um longínquo passado em que as mulheres sábias, reconhecidas como bruxas, eram condenadas à morte na fogueira, por seus conhecimentos em filosofia, medicina, matemática, entre outros.

Quando acreditávamos que nunca mais seríamos tomados de assalto por tal retrocesso nos aspectos protetores da vida e de uma existência feminina condizente com os valores humanos, tivemos que voltar às ruas para protestar, em alto e bom som, nossa revolta pela tentativa de sequestro de nossos direitos arduamente conquistados. 

Desde a semana passada voltamos a ocupar de modo frenético as redes sociais com frases de efeito: “criança não é mãe, estuprador não é pai”. Tivemos que estar presentes nas conversas do WhatsApp da família, entre outros grupos para discutir algo que agride severamente a saúde biológica, psicológica e social da mulher. Vilipêndio que parecia estar adormecido, acordou.

Felizmente saímos de nossa letargia. A agudização do extremismo e do fundamentalismo religioso mais oportunista do que qualquer crença moral por parte dos deputados da bancada pseudo religiosa, serviu para sacudirmos a poeira e darmos a volta por cima, mesmo que estejamos anos luz de uma segura e permanente volta por cima, mediante o congresso que temos.

Por outro lado, o impacto desse PL serviu para que os políticos, tanto da direita, quanto da esquerda, descessem de seus saltos altos da má política para se manifestarem contra a ilegalidade do projeto, mesmo que por muitos de modo tardio.

Esse episódio fatídico nos oferece uma enorme lição, constituindo uma boa oportunidade para que façamos diuturnamente o acompanhamento e cobrança sobre as ações dos políticos nos avanços e recuos do que se propuseram a realizar em suas campanhas, por ocasião das eleições.

Não podemos deixar de fazer uma supervisão ativa dos legisladores, não só nos momentos de escárnio aos nossos direitos, mas em todo o percurso de sua prática de representação do povo. Quem sofre pelos atos dos maus políticos somos nós. Portanto, o nosso papel não deve se limitar ao depósito de votos na urna. 

Temos que ressignificar nossa atuação como sujeitos, tal como nos sinaliza Olívio Dutra, exemplo de bom político por sua história honesta de luta e de trabalho nas representações que exerceu: “O povo tem que ser sujeito e não objeto da política” (Disponível em: https://www.justica.pr.gov.br/Pagina/O-que-e-ser-Cidadao#).

É imprescindível, portanto, não sermos objetos das idas e vindas de partidos, que materializam sua atuação conforme os interesses coorporativos que defendem. 

Estarmos cientes, sistematicamente, dos movimentos dos políticos, independente dos seus comprometimentos ideológicos, deve fazer parte obrigatória de nosso cotidiano como sujeitos de direitos para que o duplo estupro: o real e o do Projeto de Lei 1904/2024 nunca mais ouse ser proposto, em regime de urgência, por representantes do povo que jamais desejaram representá-lo. 

Encerro este texto como mais um manifesto de indignação entre tantos, reproduzindo as palavras de uma admirável mulher da luta revolucionária: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” - Rosa Luxemburgo.

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