O imprescindível ministério da segurança pública
O bolsonarismo tende a compreender o debate acerca da segurança pública como sendo pautado, exclusivamente, pelo binômio repressão-prisão
O início deste mês de novembro demarca a consolidação da transição governamental entre o mandato do pior presidente da história do país e o maior líder popular brasileiro. Apesar desta imensa vitória, do próprio sistema democrático nacional, o pleito não fora nada fácil, por diferentes fatores que vão desde um uso amplo e inédito da máquina pública enquanto instrumento eleitoral, perpassando por uma sólida base eleitoral que mistura evangélicos e fascistizados, até o debate de pautas e programas, que, no âmbito do senso comum e do moralismo conservador, tendem a beneficiar, de forma ampla, o candidato derrotado nas urnas. E, dentro deste escopo, a questão da Segurança Pública é um dos temas mais delicados e que merecem uma atenção central nos próximos quatro anos.
O bolsonarismo e o ideário popular padrão tendem a compreender o debate acerca da segurança pública como sendo pautado, exclusivamente, pelo binômio repressão-prisão. Dentro disso, apesar dos mais variados estudos nacionais e internacionais já demonstrarem que esta é uma falsa correlação, prega-se o aumento das penas, a flexibilização dos métodos de controle do policiamento ostensivo e até mesmo o armamento individual como mecanismos para se reduzir a criminalidade. Dentro deste cenário, buscar discutir a questão apenas pela oposição menos armas e mais livros parece conceder mais munição ao adversário, que sempre nos taxa de “defensores de bandidos” pois, até o presente momento, fomos incapazes de consolidar uma narrativa forte o suficiente para, no mínimo, termos armas para a crítica.
Diante de uma conjuntura que nos possibilitou uma vitória, em um momento histórico ímpar, que abre espaço a um conjunto amplo - e necessário - de reformas, temos uma janela de oportunidade: cindir o Ministério da Justiça para a criação de uma pasta exclusiva à Segurança Pública que funcionará, para além de outros aspectos, como um instrumento político para a disputa da pauta. Os passos a seguir deste escrito serão de um esforço para demonstrar a necessidade deste movimento.
Primeiro, trata-se de uma construção de importância fundamentalmente política. O campo progressista é acusado, de modo permanente (e falso), de ignorar o tema, de não levar a sério a questão e, no limite, de rejeitar o debate. Neste sentido, este movimento seria uma sinalização decisiva, ao grande público, em afirmar que, simbolicamente, a Segurança Pública é tema central neste novo governo, que exige uma preocupação singular, que fora alçado a uma condição ministerial de exclusividade. Trata-se, pois, de uma construção muito similar às sinalizações que o novo governo vem fazendo ao criar pastas para a Igualdade Racial e aos Povos Originários. Isto é, morfologicamente, a Segurança Pública passaria a ser, também, um tema de relevância e preocupação ao campo progressista, com um Ministério próprio, movimento este que nenhum outro governo em nossa história teve a ousadia de construir.
Esta separação, como busco demonstrar, possui efeitos simbólicos e práticos fundamentais. Não é de menor tamanho a simplificação que se faz ao resumir-se o nome da atual pasta em, apenas, “Ministério da Justiça”, ignorando-se o conteúdo e a narrativa acerca da segurança pública. Porém, a eventual separação não apenas traz este apego semiótico e político, mas consolida, também, uma inequívoca oportunidade de avanço intelectual e prático no tema. Isto, pois, estar-se-á diante de uma pasta autônoma, com um Ministro, recursos, cargos e competências próprios, e isto não é de menor tamanho.
O futuro governo tem um desafio fundamental, que os atuais movimentos golpistas, que criticam os resultados eleitorais escancararam: controlar as forças policiais, para voltarem a serem guiadas de acordo com o princípio da hierarquia e disciplina. Uma das principais competências da pasta é, nos termos do art. 144, §§1º e 2º da CR/88, a coordenação da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. A reconstrução institucional destas, após os recentes escândalos, envolvendo o aparelhamento político sobretudo desta segunda instituição já uma tarefa de um tamanho incrivelmente relevante, levando-se em conta o acúmulo de mais de 23 competências legais do atual ministério, como pontua a Lei nº 13.844/2019. Portanto, ter um Ministro focado neste assunto é tarefa urgente.
Neste aspecto, a proposta de cisão deveria consolidar um Ministério da Segurança Pública cujo rol de competências deve ser envolto das seguintes pautas: coordenação e promoção da integração da segurança pública no território nacional, coordenação do Sistema Único de Segurança Pública e coordenação das políticas sobre drogas. Dentro disso, passariam a integrar a estrutura básica deste novo Ministério o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas; o Conselho Nacional de Segurança Pública; o Conselho Gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública, além das Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal e da Guarda Nacional. Faz parte da proposta deste texto, também, a cisão do o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ficando as competências da definição da Política Criminal para este novo Ministério, ao passo em que o sistema penitenciário mantém-se na antiga pasta.
Em linhas gerais, penso que a função decisiva deste novo Ministério, com fulcro nos elementos anteriores, é a de definir as matrizes da política criminal, nos clássicos parâmetros defendidos por Pierangeli e Zaffaroni, enquanto a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores já eleitos. Isto é, torna-se função primária deste Ministério indicar quais condutas penalmente relevantes estarão no alvo central desta nova política de segurança pública, daí o motivo da coordenação da política de drogas estar no guarda-chuva de competências deste novo Ministério, bem como, o método pelo qual tais condutas serão investigadas, reprimidas e punidas.
Dentro disso, um dos principais objetivos deste novo Ministério será o de rever a Política Nacional de Drogas. O atual modelo, como bem descrito em recém publicado artigo na Folha de S. Paulo, está pautado por um proibicionismo disfuncional, aliada a uma legislação ultrapassada e com métricas criminalizantes abstratas e contraditórias (a exemplo da não demarcação entre usuário e traficante) que acarreta em uma política criminal de elevadíssimo custo monetário, com uma elevadíssima taxa de encarceramento e com resultados pífios. Este é um dos vários debates que deverão ser permeados no âmbito da seleção dos bens juridicamente relevantes nos próximos anos.
No âmbito da segunda frente, deverá ser construída uma linha mestra de segurança pública que deve reunir inteligência, integração e humanização. Nestes termos, uma das tarefas fundamentais deste novo Ministério será o de consolidar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Trata-se, pois, de um novo modelo, aprovado pela Lei nº 13.675/2018, mas ainda, na prática, não implementado, que passa a construir um novo paradigma de segurança pública guiado pela lógica preventiva e não repressiva. Como pontua Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos de Violência (NEV), da USP, parte-se de uma construção que replica o Sistema Único de Saúde, diante do qual poderíamos pensar em pessoas com envolvimento leve com o mundo do crime e que receberiam um tratamento geral. Por exemplo, da mesma forma que os governos adotam a vacinação para todos, já que os custos políticos de não o fazer são muito altos. Já o indivíduo com uma doença mais grave recebe tratamento ambulatorial, com monitoramento.
Então pessoas com um grau maior de envolvimento com o crime teriam um outro patamar de acompanhamento. Já os casos mais graves requerem hospital, cirurgia. Então para esses haveriam programas mais específicos de prevenção e controle da violência. Esta diretriz, mantendo a autonomia dos entes federados, garante uma linha mestra padrão na gestão da segurança pública brasileira, fundamentada pelo pilar da prevenção.
Contudo, o escopo deste texto é menos o de definir um modelo de segurança pública e mais, demonstrar a importância da autonomia da pasta. Este tema está entre aqueles mais fundamentais ao eleitor brasileiro e, como já pontuado, está dominado por um senso comum reacionário. A experiência dos outros governos petistas demonstra que não houve uma boa gestão em torno da pauta. Primeiro, pois fora incapaz de construir uma linha de política criminal própria, progressista e de resultados. Segundo, porque adotou projetos políticos errados, a exemplo da Lei de Drogas e do recrudescimento da Lei de Crimes Hediondos. Fato é que um Ministério autônomo poderá se tornar um instrumento laboratorial de vanguarda, com os melhores quadros interdisciplinares (e, para tal, inclusive formar um secretariado próprio de estudos estratégicos) para a definição de uma linha mestra, com documentos e artigos próprios, com foco em inteligência e resultado.
A proposta, porém, esbarra em algumas questões que serão enfrentadas até o final deste artigo, a saber: o suposto esvaziamento do Ministério da Justiça; o posicionamento da Polícia Federal e a gestão do Sistema Penitenciário.
Acerca do declarado esvaziamento do Ministério da Justiça, parte-se, pois, de uma falsa polêmica. A bem da verdade, hoje, tem-se um acúmulo disfuncional de competências a apenas um Ministro. No modelo atual, este fica extremamente sobrecarregado em resolver questões, inclusive pontuais, acerca da segurança pública - como não lembrar da jocosa cena do facão cortando plantações de maconha - e as demais competências são profundamente ignoradas, sobretudo, acerca da defesa da ordem jurídica e da definição de uma mais sólida política judiciária.
Se, a Segurança Pública é um dos temas mais relevantes, do ponto de vista popular, a conformação de uma nova política judiciária e defesa da ordem jurídica são elementos decisivos para a retomada democrática do país. As fricções pelo qual a Constituição vigente vem enfrentando, em processos de ruptura de mandato e operações policiais e jurídicas frontalmente ilegais, bem como, o extremado problema do acesso à justiça, que a impedem de ser uma garantidora de direitos são questões de primeira relevância e que, por conta do atual encargo de competências, estão sendo deixadas de lado pelo Ministério da Justiça. Seja no âmbito cível ou criminal, existe um acúmulo de reformas e reconstruções que o sistema de justiça brasileiro deve construir, em comunhão com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo esta uma tarefa decisiva do eventual novo Ministro da Justiça, sobretudo, no trato deste com o Congresso Nacional para a aprovação dessas reformas, sem contar com uma possível construção de um conselho entre poderes para a formação destas novidades e reconstruções.
Ao lado disso, o argumento do esvaziamento perde força quando pensamos que deverá ser mantida na alçada das competências do Ministério da Justiça o planejamento, coordenação e administração da política penitenciária nacional. Isto, pois, de pronto, a pena privativa de liberdade (e suas condições correlatas) estão na alçada da execução penal (de forma majoritária) que, por sua vez, estão inseridas na definição da política judiciária. Nestes termos, abre-se a possibilidade, inclusive narrativa, de demarcar que prisão e segurança pública são termos independentes, não sendo a primeira uma consequência necessária da segunda. Além disso, além das questões orçamentárias, faz parte do rol de competências do Ministro da Justiça a preservação dos direitos políticos e das garantias constitucionais, inclusive dos presos. É tema urgente a gestão e discussão do sistema penitenciário nacional que, claro, depende de um diálogo com a política de segurança pública, mas que possui um diálogo muito mais associado à persecução penal, de competência judiciária, do que à investigação, prevenção e repressão, próprios da segurança pública.
Por fim, a questão mais complexa diz respeito ao posicionamento da Polícia Federal. É fato que a instituição apresenta laços necessários com o sistema judiciário, sobretudo, no âmbito da construção da política nacional de combate aos crimes financeiros, que estão na alçada do Ministério da Justiça. Contudo, sendo uma organização de natureza centralmente preventiva e repressiva, deve estar acoplada aos órgãos e competência do Ministério de Segurança Pública. Além disso, não dá para ignorar o fato de que a instituição é peça chave para o estabelecimento de uma nova política nacional de drogas.
E, neste trecho, uma última polêmica ainda pode ser resolvida: porque a política de drogas se posiciona em um Ministério e os crimes financeiros em outro, se ambos dizem respeito à gestão da Segurança Pública. E esta escolha parte de uma escolha de método e de prioridades. De acordo com o definido neste escrito, no âmbito da função do novo Ministério, deverá ser definida uma linha mestra para aquilo que é latente na sociedade, a saber, a gestão dos crimes patrimoniais (tráfico, roubo e furto), como grandes problemas sociais que são. Além disso, além da menor incidência, os crimes financeiros trazem como preocupação a ordem econômica e a administração da justiça, além de um incessante diálogo internacional e institucional que perpassam o foco e a disputa que devem ser travados na nova pasta.
Tal ponto diz respeito a um falso dilema que se pode construir. A existência de pastas separadas para a Justiça e para a Segurança Pública indicam que a complexidade, os desafios e a relevância dos temas são, ao mesmo tempo, muito grandes e urgentes que, dentro de um espaço de apenas quatro anos e com apenas um Ministro, muitas agendas podem ficar em segundo plano ou serem ignoradas. Neste sentido, as pastas deverão manter um profundo diálogo e atuarem de forma complementar, daí a necessidade da nomeação de Ministros com bom trânsito entre si e com interpretações comuns. Porém, a separação representaria um avanço político e institucional relevante para o atual governo enfrentar os vários desafios que tem nesta ampla temática.
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