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    Aldo Fornazieri

    Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política e autor de "Liderança e Poder"

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    O poder militar e a conivência da esquerda

    Com o governo Bolsonaro, a investida corporativa dos militares foi ampla: além da Previdência e dos reajustes, hoje milhares de militares ocupam cargos na estrutura do Estado e em estatais, que normalmente seriam ocupados por civis, diz o colunista Aldo Fornazieri

    (Foto: FERNANDO FRAZÃO/ABR)

    A semana que passou foi rica em evidenciar a natureza da relação entre os militares e o Estado e o poder político. De um lado, a admissão, já sabida, mas apenas confirmada, pelo próprio general Vilas Boas, de que ele pressionou o STF, no famoso tuite em 2018, para impedir que fosse concedido um habeas corpus ao ex-presidente Lula. De outro lado, as notícias acerca das compras das Forças Amadas de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, uísques 12 anos, 700 mil quilos de picanha, 80 mil cervejas etc. 

    O tuite do general se relaciona ao poder tutelador que os militares têm garantido pela Constituição. O artigo 142 da Constituição consagra esse poder e, em alguma medida, viabiliza o intervencionismo dos militares no poder civil e na vida política do país. Os militares se sentem como juízes da vida política nacional, dizendo o que pode e o que não pode ser feito, quem pode e quem não pode governar. Este é o verdadeiro entulho autoritário que persiste no Brasil. As Forças Armadas, a rigor, são um poder paralelo, não subordinado de fato, ao poder civil. Ao contrário da tradição norte-americana, onde dois civis, o Presidente da República e o Secretário de Defesa do Departamento de Defesa comandam efetivamente os militares, em estreita ligação com diplomacia, no Brasil, as Forças Armadas se alçam à condição de tutores dos conflitos políticos e civis. 

    Junto com este poder derivado da ditadura, os militares agem como uma corporação que procura viabilizar os seus interesses como corpo que se apropria de parcelas do Estado para garantir privilégios. Aqui se aloca não só as compras nababescas reveladas na semana passada, mas também os privilégios garantidos na Reforma da Previdência, os reajustes salariais da alta oficialidade, as pensões e outras formas de auxilio que agregam. 

    Deste ponto de vista, os militares não estão sozinhos. Estão acompanhados pelos juízes, pelo Ministério Público, pelos Senadores e Deputados, pelas hierarquias das polícias e das carreiras típicas de Estado e pelo alto escalão do funcionalismo dos três poderes. O Estado brasileiro é prisioneiro das corporações que se associam aos interesses capital para assaltar o Orçamento Público em detrimento do povo, que morre sem assistência hospitalar, sem renda, sem emprego, sem educação e sem oxigênio. 

    Registre-se que estes gastos militares, com indícios de superfaturamento, passam longe das casernas. Os soldados e cabos e os cadetes das escolas militares comem o pão que o diabo amassou. Ingerem proteínas muito abaixo do mínimo exigido pelas atividades que exercem. Junto com vários professores e estudantes universitários pudemos constatar, na Escola Naval, à época do governo Lula, por força de um intercâmbio, o desastre alimentar dos cadetes – algo talvez comparável ao antigo exército espartano que só comia pão de cevada com água. 

    Com o governo Bolsonaro, a investida corporativa dos militares foi ampla: além da Previdência e dos reajustes, hoje milhares de militares ocupam cargos na estrutura do Estado e em estatais, que normalmente seriam ocupados por civis. Isto amplia significativamente os ganhos desses militares, além do poder que esses cargos lhes conferem. 

    Por ter o poder de tutela garantido pela Constituição e por ter os privilégios corporativos garantidos e ampliados pelo governo, não faz e nunca fez sentido a tese do golpe militar, amplamente defendida pelas esquerdas, desperdiçando tempo, energia, argumentos e recursos durante esses dois anos. 

    Que os partidos e parlamentares de direita sempre fossem coniventes com a manutenção de entulhos autoritários na estrutura do Estado, é compreensível. Que os partidos e parlamentares de esquerda tenham sido omissos em combater e propor mudanças, tanto em relação a esses instrumentos autoritários, quanto aos privilégios da alta oficialidade, é inaceitável. A democracia não pode ser defendida e aprofundada apenas com palavras declaratórias. São necessárias iniciativas e proposições concretas de mudanças para gerar consciência e atividade democráticas – algo que as esquerdas não vêm fazendo ou mal fazem.

    Veja-se, por exemplo, que no governo petista de Dilma foi proposta e aprovada uma lei de combate ao terrorismo num país que não têm terroristas. Aliás, os únicos atos de terrorismo que ocorreram, foram praticados por militares. O próprio Bolsonaro planejou alguns atos terroristas e, por isso, foi expulso do exército. Mas os governos petistas não foram capazes de propor uma lei de Defesa do Estado Democrático de Direito num país que tem grave histórico de violação do Estado de Direito por ações militares. Tal lei deveria abrigar punições a generais que pressionam indevidamente poderes constitucionais. 

    Outro ponto em que há uma omissão grave das esquerdas na defesa da democracia diz respeito à necessidade de disciplinamento da participação eleitoral de militares, policiais, juízes e funcionários públicos em geral. Para servidores públicos civis e militares deveria se estabelecer um afastamento definitivo do serviço e uma quarentena de dois anos para poder ser candidato. O uso político das corporações do Estado, a exemplo da incitação de greves de policiais para fins eleitorais, representa um grave atentado à democracia.

    Não haverá futuro para o povo brasileiro, e nem esperança possível, se as esquerdas não mudarem de rumo e de estratégia. Dificilmente algum partido de esquerda vencerá uma eleição presidencial se esta não for antecedida por uma grande mobilização popular, como ocorreu na Bolívia e, agora, no Equador. Somente a organização e a força popular poderão produzir novas vitórias e garanti-las. Mas para que isto aconteça, os partidos e os líderes precisam agir, liderar e indicar um novo caminho estratégico. Não podem continuar albergados apenas numa institucionalidade sequestrada pelo capital e pelas corporações. 

    O argumento de que a correlação de força é desfavorável é inaceitável. Se assim fosse, os oprimidos jamais teriam lutado contra os opressores. Pequenos exércitos libertários jamais teriam vencido grandes exércitos opressores e libertado povos oprimidos. 

    Como as esquerdas não renunciam aos seus próprios privilégios, carecem de moral para combater os privilégios dos generais e das demais corporações. Esta falta de moral geral a covardia, a resignação, o medo e a acomodação. As direções partidárias perderam a capacidade de inspirar a coragem, a luta, a combatividade. Por isso, com exceção do PSOL, esconderam-se por trás das forças de centro-direita. 

    Os verdadeiros líderes, principalmente nos momentos mais difíceis, devem arriscar, liderar com ousadia, estimulando o ativismo, a militância e a luta. Mas os líderes partidários atuais não haverão de serem exemplos para as gerações futuras e a história haverá de retrata-los com desagrado. A militância e os ativistas sociais não podem aceitar beber da taça do remédio amargo da resignação, do imobilismo institucional e da defensiva oferecida pelos líderes partidários. Se é só isso o que esses líderes oferecem, é preciso derrubá-los ou abandoná-los e escolher outros que queiram e saibam comandar com coragem e competência.

    Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp).

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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