O Sanitarismo ‘Bem Pensante’
Muitas vezes para defender um modelo pré-concebido de saúde os argumentos não são claros de forma intencional, porque as intenções são capciosas
Publicado originalmente no jornal Pavio Curto
O Sistema Único de Saúde, descentralizado na assistência à saúde, com redes municipais e intermunicipais de cuidado, e centralizado em sua forma organizativa, permite múltiplas possibilidades de arranjos nas linhas gerais de seu arcabouço jurídico e também de co-financiamento. Cabe o mundo e mais um pouco no interior do SUS.
Diversos artigos científicos e vários autores já defenderam distintos modelos de SUS, sempre com uma retórica rebuscada e no idioma “sanitarês”, muitas vezes para causar uma confusão proposital no leitor, com textos que abordam a transversalidade do cuidado, a longitudinalidade, a universalidade do acesso, gestão da clínica e etc. Há também os sanitaristas de outro mundo, que usam exemplos absolutamente descontextualizados de outros modelos de saúde, como “na Inglaterra é assim”, “no Canadá isso é comum”, “na Cochinchina o sistema funciona assado”, mas o que eu realmente questiono é se algo foi lido e refletido a respeito. Me recordo de uma conversa com um gestor que me disse: “o melhor sistema de saúde do mundo é o de Israel”. Confesso que na hora pensei comigo: durante meus quase 5 anos de doutorado, na linha de pesquisa de Saúde Coletiva, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), nunca achei um texto que explicasse a dinâmica do sistema de saúde israelense e duvido que o autor da afirmação tenha lido um artigo cientifico em aramaico, então me perguntei: que diabos de argumento é esse? De onde ele tirou isso? Ou seja, muitas vezes para defender um modelo pré-concebido de saúde os argumentos não são claros de forma intencional, porque as intenções são capciosas.
Para citar um exemplo objetivo dessa tese que defendo vejamos o Open Health. Pra começar, porque o termo em inglês, se não para dar a ideia de moderno, de novo ou de avançado? Vamos aos fatos: no último ano de um desastroso governo, com quatro ministros da saúde diferentes em quatro anos, um pior que o outro, provando que nada é tão ruim que não possa piorar, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico que planeja criar, via Medida Provisória, uma plataforma com acesso aberto às operadoras de planos de saúde contendo todas as informações de cada usuário do SUS para “ampliar a concorrência no mercado de planos de saúde”. Assim, com a publicização dessas informações, os planos de saúde poderiam oferecer planos privados mais baratos aos usuários do SUS, a partir de um diagnóstico de utilização do sistema público – oferecer planos mais baratos para usuários que potencialmente utilizam pouco o sistema público. Ao longo da entrevista,, o Ministro quase afirma em tom piedoso que com poucos recursos devemos deixar o SUS para os que mais precisam, para os mais pobres. Bom, atrás da intenção perversa de estimular, através de políticas de governo, a transferência de usuários do SUS para as grandes corporações de seguro saúde, enfraquecendo assim o modelo de saúde que deveria ser universal, ou seja, para todos, para um modelo de saúde residual, para os mais pobres que não podem comprar planos privados. O Ministro malandro faz um contrabando da verdadeira motivação e tenta mudar a lógica do SUS atrás de uma conversa franciscana, utilizando a defesa de quem não pode comprar planos privados.
Outro bom exemplo de presentes muito bem embrulhados, em vistosos papéis celofanes e com cintilantes fitas vermelhas é o cavalo de Troia do Programa Previne Brasil (PPB). Lembrando a história grega, citada por Homero, em sua obra intitulada Ilíada, foi construído um imenso e lindo cavalo de madeira para presentear a inexpugnável cidade fortificada de Troia, mas dentro desse enorme cavalo de madeira havia diversos guerreiros inimigos que à noite tomaram de assalto a cidade fortificada. Dentro daquele presente, de grego, havia as piores das finalidades. Ao longo da implementação do PPB e em debates que participei em diversos espaços com gestores quer do Ministério, quer do Estado, ou municipais, eram comuns argumentos relacionados ao programa abordarem experiências de outros países como Inglaterra, Canadá, Portugal etc. Um artigo que aponta as bases do PPB, seu caráter privatizador e que sugiro leitura está contido no texto publicado em 2015, intitulado “Bases para um Novo Sanitarismo”. Colocando o guizo no pescoço do gato vale destacar também que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), em nota específica sobre o PPB, emitida em 28 de novembro de 2019, faz um conjunto de considerações sobre o programa e termina afirmando: “a SBMFC, (...) manifesta seu apoio à nova política de financiamento da APS por entender que o potencial de ganhos e avanços com a medida, suplantam os riscos e dificuldades organizacionais que possam eventualmente ocorrer”.
Uma vez lançado o programa, o que se viu de prático foi a substituição do PMAQ-AB, programa esse que avaliava a atenção básica a partir de um conjunto de indicadores de saúde, da satisfação do usuário, da infraestrutura da unidade de saúde e, fundamentalmente, fazia um financiamento adicional ao já existente, sendo verdadeiramente um dinheiro novo aos municípios, pelo PPB, que avalia atenção básica a partir de apenas sete indicadores e implode o financiamento existente à atenção básica, fazendo não um financiamento complementar, como o PMAQ, mas um outro financiamento, que no final das contas diminui a transferência de recursos a estados e municípios, implementando assim a emenda constitucional de teto de gastos no SUS. Como habitual nesses discursos, sempre há um argumento descontextualizado, pinçado, sem aprofundamento, utilizado como exemplo um país estrangeiro rico, invariavelmente na Europa ou na América do Norte. Verdade que, como já afirmei acima, já ouvi até exemplos exóticos de SUS no Oriente Médio, obviamente em Israel, seja lá o que esse exemplo signifique como argumento. Sugiro para debate excelente artigo publicado recentemente na revista “Cadernos de Saúde Publica” dos profs. Drs. Áquilas Mendes, Mariana Alves Melo, Leonardo Carnut, intitulado “Análise Crítica sobre a Implantação do Novo Modelo de Alocação dos Recursos Federais para Atenção Primária à Saúde: operacionalismo e improvisos”. No artigo fica bem claro que o sanitarismo de outro mundo é, na realidade, não um sanitarismo do outro mundo, mas um sanitarismo do pior dos mundos. O sanitarismo do pior dos mundos também traz em seu bojo a lógica de custo-efetividade, que não utiliza muitas das vezes a ‘matemática’, mas a ‘matemágica’ que convém.
Poderia citar outros tantos exemplos de intenções maravilhosas para melhorar o SUS e a vida da população que na verdade escondem motivação distinta, como privatização do sistema de saúde, sua substituição por Organizações Sociais ou ainda a transferência de usuários do SUS para os planos de saúde privados. Sincericídio, a arte de misturar a sinceridade com o suicídio, dando a ideia de que se você, como se diz popularmente, ‘abrir o jogo’, será trucidado porque as intenções são marotas, não estão no cardápio do sanitarismo ‘bem pensante’.
O sociólogo italiano Antonio Gramsci desenvolve uma teoria política que tem na hegemonia cultural um conceito para descrever um tipo de dominação ideológica que a burguesia usa de expediente sobre a classe trabalhadora, quando na verdade a burguesia traveste seus próprios interesses como se fossem interesses do conjunto de toda sociedade. Em determinado momento ele coloca que cabe à classe trabalhadora a hegemonia moral diante do conjunto da sociedade que se dará diante das melhores práticas, das melhores intenções, motores das melhores ações. A classe trabalhadora deve sempre ser crítica à realidade imposta e dialogar claramente com o povo para que, diante da luz do Sol, não haja nenhuma dúvida ou hesitação das motivações políticas entremeadas em suas finalidades. Nesse sentido, a verdade é (e sempre será) revolucionária.
Valendo-me do sociólogo italiano, não vacilo em afirmar o dito popular que o inferno está cheio de boas intenções, mas no SUS também.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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