O voto dos mortos no Chile
"Boric uma tarefa de responsabilidade maior que as que teve Allende", escreve Eric Nepomuceno
No domingo da eleição chilena li, no jornal argentino “Página 12”, um texto de meu bom amigo Ariel Dorfman, escritor esplêndido, autor de, entre outras maravilhas, “A Morte e a Donzela”, que virou peça de enorme êxito na Broadway.
Pois Ariel lembrava que nas eleições presidenciais de 2017 o então candidato José Antonio Katz obteve 8% dos votos, mas não foi por isso que chamou as atenções. Foi por ter dito que se Augusto Pinochet estivesse vivo com certeza votaria nele.
Semelhante demonstração de lealdade e proximidade ao mais sanguinário ditador da história do Chile definiu claramente quem é Kast.
Ariel, no texto que li, recorda que quando pensou em quem votaria em Gabriel Boric o primeiro nome que surgiu foi, evidentemente, o de Salvador Allende, cujo governo por derrubado por um golpe tão traidor como violento comandado justamente por Pinochet.
E o segundo nome foi o de Manuel de Salas, um dos próceres da independência chilena alcançada em 1841.
Quando na campanha pelo segundo turno vi que várias pesquisas indicavam Katz na dianteira, ou então emparelhado com Boric, pensei o evidente: o que está acontecendo no Chile? Como pode ser que o país corra o risco de ter um admirador confesso de Pinochet e sua ditadura terrível sendo eleito presidente?
Vale recordar que até poucos dias antes das eleições o panorama era esse. A tensão era essa.
Bem: contados os votos, Boric não apenas venceu por uma confortável vantagem de quase doze pontos: tornou-se o presidente mais votado da história chilena. E com seus 35 anos, também o mais jovem.
Em março, ele assume. E terá um desafio de peso pela frente. Não conta com maioria no Congresso, terá de reiterar seu talento de moderador, e enfrentará uma oposição clara e declaradamente pinochetista.
Terá, ao mesmo tempo, uma tarefa de responsabilidade maior que as que teve Allende: durante sua presidência, e já em seus primeiros meses, o Chile votará pela aprovação (ou não) de uma nova Constituição.
Na noite de domingo o Chile explodiu em festa. A América Latina ficou sabendo que o equilíbrio entre forças progressistas foi reforçado. Com a defenestração de Jair Messias no ano que vem, a partir de 2023 estará aberto o caminho para a lenta, dolorosa e difícil recuperação da esperança e da reconstrução do futuro.
Sim, sim: se Pinochet estivesse vivo teria votado em seu discípulo. E seria derrotado de novo.
Se todos os mortos pela sanguinária ditadura de Pinochet, e também os desaparecidos, e os que morreram no exílio, e os que depois padeceram as desgraças da herança tenebrosa dos anos de breu estivessem vivos, teriam votado em Gabriel Boric.
Sua vitória foi, de certa forma, uma homenagem à memória de todos e de cada um deles.
Uma doce revanche da história.
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