TV 247 logo
Ádamo Antonioni avatar

Ádamo Antonioni

Jornalista e professor de Filosofia. Doutor em Educação e mestre em Comunicação. Autor do livro “Odeio, logo, compartilho: o discurso de ódio nas redes sociais e na política.

13 artigos

HOME > blog

Os proletários do mundo já não mais se unem: problematizando as divisões na esquerda

Enquanto houver um sistema político à esquerda tentando impor um único modo de ser esquerda, permanecerá a divisão

(Foto: Ricardo Stuckert)

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Em 1848, Marx e Engels redigiram o adágio que, durante séculos, animou e conduziu os movimentos de esquerda mundo afora: “Proletários do todos os países uni-vos”. Mas daquele século XIX para cá, muitas coisas mudaram. Experiências marxistas fracassaram, como o fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim, a ascensão da agenda neoliberal nos países capitalistas que precarizaram a classe trabalhadora, e, ao mesmo tempo, produziu um forte discurso do empreendedor de si mesmo. Em suma, a máxima dos filósofos alemães parece não fazer mais sentido para os dias atuais.

É o que argumentou a filósofa Marilena Chauí, em entrevista concedida ao jornalista Leandro Demori, na TV Brasil, durante o programa Dando a Real: “A política na esquerda estava fundada na noção de classe social e de produção econômica. A perda desse referencial exige que a esquerda pense tudo de novo. Coisa que no momento ela não está fazendo”. Mas a filósofa pondera, criticando o que chamou de fragmentação dos movimentos sociais, considerando-os cada vez mais “identitários”, ou seja, não há “universais” que possam fazer com que tais movimentos se unifiquem, algo que, no passado era o trabalho, como na máxima citada acima de Marx e Engels. Se antes a classe era o chamamento universal para reunir trabalhadores e trabalhadoras para lutarem por direitos, a se unirem e se reconhecerem em torno de pautas comuns, hoje, tal discurso não convence mais. O que une a esquerda, afinal? Aliás, o que é ser de esquerda no século XXI?

É óbvio que tais questões não são possíveis de serem respondidas num artigo de jornal. O que tenho feito nesta coluna é sempre tentar trazer uma ideia de Michel Foucault para nos ajudar a pensar sobre o assunto. Certa vez, o filósofo disse: “De fato, acho que tenho sido localizado consecutivamente e simultaneamente em todas as casas do tabuleiro político. Já fui chamado de anarquista, esquerdista, marxista ostentoso ou dissimulado, niilista, neoliberal etc. Nenhuma dessas caracterizações é importante em si mesma; mas, se tomadas em conjunto, elas significam algo. E admito que gosto do que elas significam”.

Nesse sentido, é curioso como todos aqueles e aquelas que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária, que se identificam com um pensamento progressista, que defendem a pluralidade e a diversidade, mas que não se identificam, nem se reconhecem no marxismo clássico, são vistos como “identitários”, desunidos, não agregadores ou, na linguagem do marketing, nichados. Em outras palavras, o que querem dizer é que se trata de movimentos sempre secundários, reivindicando problemas menores. Tais críticas pesam, na maior parte do tempo, sobre o movimento negro, movimento feminista, LGBTI+, indígena, ambientalista, entre outros movimentos tachados de não contemplarem problemas da coletividade. Em seu tempo, Foucault também precisou enfrentar as mesmas críticas por privilegiar em suas pesquisas temas como a loucura, a delinquência, a sexualidade, que eram considerados “irrelevantes” para as grandes epistemologias da época, incluindo a doutrina marxista.

O que Foucault conseguiu demonstrar em seus trabalhos, porém, é como os jogos de poder se desenvolvem de maneira sutil, constituindo a trama da nossa vida cotidiana. O professor do Collège de France não estava interessado com as grandes batalhas ideológicas entre capitalistas x comunistas, ele direcionou seus olhos para o dia-a-dia das pessoas comuns, buscando compreender seus afetos, suas angústias, seus medos e desejos. Talvez a esquerda, esta esquerda que está aí posta, que se arvora como detentora da verdade e como herdeira de Marx e Engels, ainda não percebeu é isso: as dores das pessoas simples, do cidadão que dirige seu Uber, do moto entregador, da mãe solo que ganha a vida vendendo trufas e se sente, sim, uma empreendedora, por que não?

E quanto aos movimentos tachados de “identitários” será mesmo que são eles que estão cada vez mais fragmentados ou ainda há uma esquerda hegemônica que resiste em dar abertura e teme perder seu protagonismo? Veja na quantidade de pessoas políticas conseguindo furar a bolha, dominando o debate público, resistindo e produzindo uma outra política, cito, por exemplo, as deputadas federais Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Ao fim e ao cabo, parece que se trata mais das relações de poder do que de um ideal para unificar a esquerda.

Num texto de 1978, Foucault argumenta que: “Nada é mais perigoso do que um sistema político que pretende prescrever a verdade”. Enquanto houver um sistema político à esquerda tentando impor um único modo de ser esquerda, permanecerá a divisão. É tempo de se abrir à pluralidade, à diversidade, ao diálogo interseccional entre gênero + raça + classe. Enxergar que há muitas outras possibilidades de se fazer política com outros referenciais teóricos vinculados à filosofia da diferença, não numa pretensa universalidade. Será que Marx e Engels quando pensaram àquela frase no início estavam mesmo pensando numa massa uniforme de fato, ou estavam apenas preocupados com as péssimas condições de trabalho da classe trabalhadora do século XIX?

E retornando as perguntas: O que une a esquerda? O que é ser de esquerda no século XXI? Talvez pensar que há múltiplas formas de ser esquerda, abraçar a liberdade de pensamento e compreender que a multiplicação dos movimentos sociais e políticos não é nosso fim, mas sim, o recomeço, seja um caminho. Um caminho que nos leva não para as desilusões de um futuro utópico. Um caminho que nos traga para o presente.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: