Os sabiás e o bem-te-vi
Em revoada, a passarinhada invadiu minha casa no centro de São Paulo
No verão de 1967 um grupo de sabiás pousou em Ipanema. Meia dúzia deles.
Os sabiás. Assim eram chamados os escritores Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Paulo Mendes Campos e Sergio Porto – o Stanislaw Ponte Preta.
Todos na cobertura de Braga. Elegantes, na sobriedade de ternos e gravatas a encarar com firmeza e simpatia a lente de Paulo Garcez.
Era o ensaio fotográfico para a divulgação de uma nova casa de escritores, a editora Sabiá.
No fim de 2022, o professor e escritor Augusto Massi, organizou uma antologia com textos dos seis autores. É leitura magnífica para quem gosta de crônicas. Aliás, para quem não gosta também.
O nome do livro? Os sabiás da crônica. A capa, claro, é uma das fotos de Paulo Garcez naquele verão carioca.
57 anos depois do clique, numa tarde do inverno paulistano, encaro novamente os sabiás. Já li, reli e reli. Agora, de curioso, vasculho a foto, paro nos bicos reluzentes dos sapatos de Braga, na gravata listrada de Sabino, na mão no bolso de Paulo Mendes, nas cabeleiras bem engomadas.
Então, um som na área de serviço interrompe minha contemplação.
É um guincho, quase um gritinho abafado. O apartamento em que moro tem uma área de serviço, onde bate sol e chuva. A antiga moradora botou uma tela, dessas que usam em janela para evitar acidentes. Deixei ali e um pé de maracujá se espraia apoiado na corda de nailon. Perto da planta, enxergo o dono da voz. É um pássaro rechonchudo. Peito amarelo, bico largo, ele guincha sem trégua.
Corto um pedaço de mamão, o bicho nem olha. Ofereço água num pote raso, a indiferença é a mesma. Ele voa no pequeno espaço.
Pra lá, pra cá. Pra frente, pra trás.
Afasto a tela da parede e abro caminho para que retorne à sua rotina. Mas a vida lá fora é desprezada. Os vôos rasantes continuam.
Escurece e entre a folhagem que refresca a área de serviço ele, enfim, sossega.
Às cinco da manhã, acordo com novos guinchos. Volto a meu modesto jardim e lá está o pássaro. Talvez em jejum. Mamão e água intactos. Teria caçado minhocas nos vasos de planta, engolido algum inseto?
Tento interpretar os voos. Sente-se preso, como numa gaiola gigante? Por que não para um pouco e descansa?
E afinal, por onde entrou o colorido visitante, vítima da própria aventura?
A vida ensina que quando não se sabe é melhor perguntar. Uma amiga passarinheira me acalma.
“Deixa todas as portas abertas que ele se vira. Se entrou, sai. Melhor não tentar tirar porque eles se estressam. Vai dar certo.”
Obedeço. Escancaro portas, janelas. Até o banheiro está livre pra ele. A rota não muda, vai de um extremo ao outro. São dez metros do topo de um armário de tranqueiras para o ramo de uma samambaia. Vai e volta com as asas aceleradas.
Percebo que estou mais agitado que o voador. Consulto então outro especialista: passarinheiro juramentado, dono de sítio e íntimo das manhas e penas de cada pássaro.
Fotografo o bicho e mando pra ele. José responde na hora com mensagem de texto.
- Oi! É um bem-te-vi.
- Achei que fosse sabiá.
A reação de meu amigo é como se eu confundisse a Ivete Sangalo com a Marina Silva.
- Naaão. Sabiá é marrom escuro, ás vezes avermelhado, é bem maior, canta bem. Sabiá é pássaro símbolo de São Paulo. Nada a ver,
Disfarço a gafe e José avança na investigação, mesmo à distância.
- Deve estar se protegendo ou do frio ou de algum gavião (São Paulo tem de tudo); ou simplesmente descansando. Outra hipótese é que esteja ferido ou doente...
São duas horas da tarde. Não escrevi, não li o jornal, não almocei, esqueci de passar no sapateiro. Minha vida miúda paralisada por um Bem te vi.
José me avisa que já saiu do trabalho e que o pássaro é sua prioridade.
- Vou ter que ir agora pra Bragança Paulista. Passo aí, pego o bichinho e levo pra uma veterinária amiga cuidar dele. Depois solto no mato. Enquanto isso, arrume uma caixa de papelão e faça uns furos. Ele vai viajar dentro dela.
Compro a caixa numa papelaria e volto pra casa. José chegou primeiro e me espera na portaria. Subimos juntos e apressados.
Logo descobrimos: o bem-te-vi se foi.
José me olha, metade aliviado, metade frustrado. Tinha gostado da aventura.
- Zé, não se preocupe, olhe os sabiás que tenho aqui.
Ele abre o livro, a gente esquenta água pro café e agradece ao bem-te-vi.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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