Para ler as eleições na África do Sul
É preciso compreender que a eleição reflete um processo mais profundo, fruto do pacto que permitiu a transição do Apartheid para a democracia.
Por Paulino Cardoso - De um modo geral, no Ocidente, seja a mídia corporativa, seja a mídia alternativa, a leitura comum é que as eleições na África do Sul significaram uma grande derrota para o Congresso Nacional Africano, na medida em que o partido perdeu a maioria absoluta que possuía no parlamento.
Igualmente, é um consenso na mídia, que as causas desse resultado são fruto de um cansaço da população com temas centrais como o desemprego, os problemas na infraestrutura, que, entre outras, tem causado blackouts constantes de energia elétrica, bem como o aumento da criminalidade.
Do ponto estritamente legal, a África do Sul deveria reconsiderar os regulamentos sobre coligações, pois o CNA não conseguiu garantir uma maioria absoluta nas eleições gerais, o que levanta questões sobre a forma que o governo assumirá. É o que informa Terry Tselane, Presidente Executivo do Instituto de Serviços de Gestão Eleitoral em África e antigo Vice-Presidente da Comissão Eleitoral da África do Sul, em entrevista para a Russia Today, RT. Para ele, a África do Sul deve considerar regulamentações mais rigorosas sobre coligações políticas, a fim de garantir um governo estável.
Entretanto, do ponto de vista histórico e político é preciso compreender que a eleição reflete um processo mais profundo, fruto do pacto que permitiu a transição do Apartheid para a democracia. O CNA, sob Nelson Mandela, conseguiu galvanizar uma gigantesca frente de movimentos sociais. De sindicatos operários, ao movimento estudantil, além das organizações tradicionais, permitiu conter, mas não fez desaparecer estas forças no processo de transição. O estranho assassinato de Chris Hani e o banimento da vida política de Winnie Mandela, por exemplo, foram fundamentais para excluir da pauta temas mais radicais e populares.
Vale lembrar, que o fim do Apartheid, coincidiu ou não, com a implosão da União Soviética e o início da Pax Americana, reduzindo a capacidade de negociação seja dos palestinos, não esquecer os Acordos de Oslo de 1993, seja dos sul africanos. O país foi controlado economicamente pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, tudo isso combinado com uma dívida externa astronômica. O próprio Nelson Mandela teve uma surpresa desagradável ao sentar na cadeira de presidente: os líderes do Apartheid haviam demolido os fundos da previdência da nação.
Uma África do Sul infestada de ONGs ocidentais, com suas pautas de diversidade e empoderamento, baseadas na experiência política estadunidense, focaram em políticas de ações afirmativas de gênero e raça, que contribuíram para a formação de uma pujante classe média negra, que pôde receber seu quinhão no novo regime. Além disso, as empresas locais, ou controladas pelo capital internacional, souberam com muita destreza cooptar muitas lideranças, e seus parentes, para seus conselhos administrativos e cargos de gestão. Não muito diferente do que fizeram no leste europeu e América Latina. Afinal, o sistema capitalista é por sua natureza corrupto, que diga a vida pregressa de Joe Biden e Donald Trump, atuais concorrentes às eleições presidenciais nos EUA.
Infelizmente, a sucessão de Nelson Mandela para Thabo Mbeki, se realizou no auge do neoliberalismo, produzindo um distanciamento dos movimentos sociais e uma gigantesca pauta de privatizações de toda ordem. Vivíamos tempos de Globalização e de lideranças como Boris Yeltsin, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Menem e Carlos Salinas de Gortari. Verdade seja dita, neste contexto, o presidente sul africano, buscou enfrentar a marginalização da África, com um projeto ousado a Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano, no âmbito de um importante movimento denominado Renascimento Africano, e que tinha no Coronel Muammar Gaddafi, um grande inspirador.
Oito anos de Thabo Mbeki produziu um grande desalento. Para tanto, setores mais à esquerda do CNA, como o Partido Comunista da África do Sul, sindicalistas e movimentos sociais, mobilizaram-se para sua retirada do poder, congregando-se em torno de de Jacob Zuma, que como Luiz Inácio Lula da Silva, reorientou o governo para pautas mais sociais.
Lembrem-se que é Jacob Zuma quem aparece ao lado de Dilma Rousseff não só na consolidação dos BRICS, como na criação do NBD, o famoso Banco dos BRICS e do seu fundo de estabilização . Tal como Dilma Rousseff, Zuma foi apeado do poder , por ação do movimento estudantil, menção aos famosos “não é apenas por 20 centavos” e uma perseguição judicial terrível. Assim como o presidente Lula em 2018 , ele foi penalizado de tal modo, que o impedisse de concorrer às eleições de 2024. Como sabemos, diante da incapacidade de destruir politicamente uma liderança , apela-se aos valores morais, no caso a corrupção, tema que tem sido recorrente em todo Sul Global, a fim de criminalizar lideranças populares.
Para a felicidade da banca internacional, Cyril Ramaphosa, ex-sindicalista e um dos homens mais ricos da África do Sul, retomou uma visão mais coerente com os interesses do Império ocidental, mas não sem contradições. Assim como Pedro Sanches, do PSOE é um entusiasta da Guerra na Ucrânia e da OTAN, mas, para atender ao seu público interno precisa apoiar a autodeterminação do povo palestino. Cyril Ramaphosa segue na mesma direção.
Chegamos a 2024 como uma população cansada, não da corrupção como pauta a mídia corporativa e uma esquerda progressista míope. A população deseja avançar nas mudanças. A liberdade política foi um passo importante, mas não é capaz de atacar as necessidades da população, esmagada sob o peso do controle econômico dos brancos, para delírio do Ocidente, pois controlam as minas, os bancos e as terras férteis.
Não por acaso, um partido popular importante, chama-se Lutadores da Liberdade Econômica. São herdeiros do Movimento de Consciência Negra de Steve Biko, admiram revolucionários como Frantz Fanon, nascido na Martinica e herói da guerra de libertação argelina, Thomas Sankara, líder assassinado de Burkina Faso, e exibem o gestual e o vermelho dos radicais marxistas. São jovens como seu presidente nascido em 1981, Julius Malema e que colocam na pauta a necessidade urgente de uma reforma agrária para a construção de uma África do Sul democrática.
Diante do cerco jurídico e político, Jacob Zuma, recorreu aos valores tradicionais que nunca morreram e aplicou nestas eleições uma surra no CNA em Kwazulu-Natal. Gostem ou não, distanciam-se de ocidentais e sua fé no individualismo. As lealdades étnicas ainda possuem um peso excepcional que não pode ser negligenciado. Elas estavam lá muito antes dos europeus se inventarem como civilização. Zuma apelou para a memória de um CNA que luta, daí uMKhonto We Sizwe, a Lança da Nação, o antigo braço armado do partido de Nelson Mandela.
Como bem proclamou o ainda presidente Cyril Ramaphosa, o povo quer mudanças e é preciso ouvi-las. Vamos ver como o CNA responderá às necessidades populares.
Fontes
https://english.news.cn/africa/20240603/eb6fcaa08f874b73823400bd53b450fb/c.html
https://www.globalresearch.ca/south-africa-prioritising-global-status/5858850
https://reseauinternational.net/lafrique-du-sud-se-dirige-vers-une-politique-de-coalition/
https://www.rt.com/africa/598684-south-africa-regulating-coalitions/
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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