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    José Luís Fiori

    Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes, 2018)

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    Para recalcular o futuro, depois da viagem à China

    "O Brasil terá que questionar, de forma cada vez mais incisiva, a ordem institucional estabelecida e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta", diz

    Lula na China (Foto: Ricardo Stuckert)

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    As “grandes potências” se protegem coletivamente, impedindo o surgimento de novos Estados e economias líderes, através da monopolização das armas, da moeda e das finanças, da informação e da inovação tecnológica. Por isso, uma “potência emergente” é sempre um fator de desestabilização e mudança do sistema mundial, porque sua ascensão ameaça o monopólio das potências estabelecidas. 

    J. L. F. História, Estratégia e Desenvolvimento. Para uma Geopolítica  do Capitalismo. Editora Boitempo, 2014, SP, p. 35.

    ___________________________ 

    Este artigo repropõe uma discussão estratégica indispensável e urgente. Seu corpo  principal foi escrito e publicado em maio de 2014, com os olhos postos nas eleições  presidenciais de outubro daquele ano. Depois disso, entretanto, Dilma Rousseff foi reeleita, mas a elite conservadora brasileira acovardou-se e desfechou um golpe de Estado que já  vinha sendo preparado há alguns anos, com o apoio do governo norte-americano. Esse  golpe abriu portas para a ascensão da extrema-direita no país, e para formação de um  governo, dois anos depois, que promoveu um imediato alinhamento com os Estados Unidos, junto com a aplicação de um choque econômico ultraliberal que desmontou a  economia e a sociedade brasileiras. 

    Tudo isto aconteceu quase no mesmo momento em que os Estados Unidos e seus  aliados europeus apoiavam e promoviam outro golpe de Estado, desta vez na Ucrânia,  dando início a uma crise internacional que trouxe de volta a guerra para o coração do Velho  Continente. No Brasil, o novo presidente bateu continência várias vezes para a bandeira  norte-americana, e a política econômica ultraliberal do governo rebaixou o país da sua  condição de sétima para a décima-segunda potência econômica mundial.  

    Da mesma forma, também na Ucrânia, o golpe de Estado acabou instaurando no  governo uma coalizão de extrema-direita que se propôs a acelerar a inclusão do país na  UE e na OTAN, provocando a reação russa que culminou com a invasão militar do seu  território e deu início a uma guerra entre a própria Rússia e os EUA/OTAN que se prolonga  até hoje.  

    Em 2023, o Brasil retomou democraticamente o caminho do pragmatismo  internacional e da soberania econômica nacional. E as duas pontas desta história se  encontraram quando o novo governo brasileiro decidiu assumir uma posição ativa na  tentativa de apaziguamento da Ucrânia e de negociação dos interesses das partes  envolvidas no conflito. No entanto, agora enfrenta um problema, pois a negociação de paz, 

    O corpo principal deste artigo foi publicado pela primeira vez em maio de 2014, no jornal Valor Econômico, sob o  título “Para calcular o futuro”. 2 Professor emérito de Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do grupo de pesquisa “Poder Global e  Geopolítica do Capitalismo” e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEA/UFRJ; pesquisador do Instituto de  Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP). Publicou recentemente, pela Editora Vozes, os livros  O mito de Babel e a disputa do poder global, em 2020, e Sobre a Paz, em 2022.

    neste caso, só irá à frente se todas as partes envolvidas participarem do processo e  aceitarem negociar a paz, incluindo evidentemente, os Estados Unidos e seus satélites da  OTAN. Tudo isto ao mesmo tempo em que o sistema geopolítico e econômico internacional  atravessam um processo de transformação profundo, radical, quase telúrico. 

    Houve a pandemia; a economia mundial enfrenta uma nova crise inflacionária e financeira; o próprio sistema econômico mundial entrou num processo acelerado de “desglobalização”; e as políticas econômicas protecionistas e nacionalistas, típicas de  períodos de guerra, voltaram a ocupar lugar central no mundo das grandes potências.  Mesmo assim, o diagnóstico feito há oito anos, sobre o lugar internacional ocupado pelo  Brasil, junto com seus desafios, segue sendo exatamente o mesmo, com a diferenças de  que as ameaças externas agora são muito maiores, seja pela pressão da guerra que está  em pleno curso, seja pelo poder aumentado das sanções econômicas praticadas pelos  Estados e pelos agentes financeiros privados envolvidos no sistema de pagamentos  internacionais, o SWIFT, sediado em Bruxelas mas tutelado pelo Banco Central e pelos Departamentos de Estado e de Justiça norte-americanos. 

    Por isso, é interessante retomar o caminho da análise e da discussão das  alternativas estratégicas do Brasil, tal como estava posto logo antes da “degringolada”  direitista do panorama político e ideológico do país, e da desmontagem estatal promovida  pelo fanatismo ultraliberal da elite financeira brasileira. O mundo mudou, a supremacia  euro-americana está sendo questionada, e o mais provável é que tenhamos uma nova  ordem geopolítica mundial na próxima década. O peso da destruição interna promovida  pela extrema-direita e o tamanho dos desafios e ameaças externas trazidas pela  polarização provocada pela guerra são maiores do que no passado, mas as oportunidades  abertas são grandes e parece-nos que a estratégia sugerida em 2014 segue sendo válida. Senão, vejamos. 

    *** 

    No século XX, o Brasil deu um passo enorme e sofreu uma transformação profunda  e irreversível, do ponto de vista econômico, sociológico e político. No início do século, era  um país agrário, com um Estado fraco e fragmentado, e com um poder econômico e militar  muito inferior ao da Argentina. Hoje, na segunda década do século XXI, o Brasil é o país  mais industrializado da América Latina e a sétima maior economia do mundo (era, em 2014,  mas não é mais, caiu para décima segunda depois do golpe e do choque ultraliberal ); 

    possui um Estado centralizado, uma sociedade altamente urbanizada – ainda que desigual  – e é o principal player internacional do continente sul-americano. Além disso, é um dos  países do mundo com maior potencial de crescimento pela frente, se tomarmos em conta  seu território, sua população e dotação de recursos estratégicos, sobretudo se for capaz de  combinar seu potencial exportador de commodities com a expansão sustentada do seu  próprio parque industrial e tecnológico.

    Tudo isto são fatos e conquistas inquestionáveis, mas que colocaram o Brasil frente  a um novo elenco de desafios internacionais, e hoje, em particular, o país está enfrentando uma disjuntiva extremamente complexa. As próprias dimensões que o Brasil adquiriu e as  decisões que tomou no passado recente (com exceção do período ultraliberal) o colocaram no núcleo de poder do “caleidoscópio mundial”: um pequeno número de Estados e  economias nacionais que exercem – em maior ou menor grau – um efeito gravitacional sobre todo o sistema, e que são capazes, simultaneamente, de produzir um “rastro de  crescimento” em suas próprias regiões. Queiram ou não queiram, esses países criam em  torno de si “zonas de influência”, onde têm uma responsabilidade política maior que a de

    seus vizinhos, enquanto são chamados a se posicionar sobre acontecimentos e situações  longe de suas regiões, o que não acontecia antes de sua ascensão. Ao mesmo tempo, os  países que ingressam nesse pequeno “clube” dos países mais ricos e poderosos têm que  estar preparados, porque entram automaticamente num novo patamar de competição, cada  vez mais feroz, entre os próprios membros desse “núcleo” que lutam entre si para impor, a todo o sistema, seus objetivos e estratégias nacionais de expansão e crescimento. 

    Neste momento, o Brasil já não tem como recuar sem pagar um preço muito alto.  Mas (como acabou recuando entre 2016 e 2022) agora, para poder avançar, deverá ter  uma dose extra de coragem, persistência e inventividade. Terá que ter, ainda, objetivos  claros e uma coordenação estreita entre as agências responsáveis pela política externa do  país, envolvendo sua diplomacia e política de defesa, articuladas com sua política  econômica e a política de difusão global de sua cultura e de seus valores. E o que é mais  importante, o Brasil terá que sustentar uma “vontade estratégica” consistente e permanente,  ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto com a capacidade de planejar e implementar ações de  curto e médio prazo, mobilizando os atores sociais, políticos e econômicos relevantes, frente a cada situação e desafio em particular. 

    Mais difícil do que tudo isto, entretanto, o Brasil terá que descobrir um novo caminho  de afirmação de sua liderança e poder internacional, dentro e fora de sua zona de influência imediata. Um caminho que não siga o mesmo roteiro das grandes potências do passado, e  que não utilize a mesma arrogância e violência que utilizaram os europeus e os norte americanos para conquistar, submeter e “civilizar” suas colônias e protetorados. 

    Em segundo lugar, como todo país que ascende dentro do sistema internacional, o  Brasil terá que questionar, de forma cada vez mais incisiva, a ordem institucional  estabelecida e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta. Mas terá que fazê-lo  sem o uso das armas, e através de sua capacidade de construir alianças com quem quer  que seja, desde que o país mantenha seus objetivos, valores e soberania, visando sempre  expandir e conquistar novas posições na hierarquia política e econômica internacional. Este  objetivo já não obedece mais a nenhum tipo de ideologia nacionalista, muito menos a  qualquer tipo de cartilha militar; obedece a um imperativo “funcional”’ do próprio “sistema  interestatal capitalista”: neste sistema, “quem não sobe, cai”.3 Mas, ao mesmo tempo,  “quem sobe” tem que estar preparado, porque será atacado e desqualificado  inevitavelmente e de forma cada vez mais intensa e coordenada, dentro e fora de suas  fronteiras, caso não se submeta à vontade estratégica dos antigos donos do poder global.

    *** 

    E foi exatamente isto que aconteceu depois do golpe de 2016, que levou à desmontagem do Estado, ao atraso da economia e à destruição moral da sociedade  brasileira. E pode voltar a acontecer a qualquer momento na próxima década, se o governo  brasileiro não estiver permanentemente atento e cometer os mesmos erros do passado,  compreendendo que, apesar de os cientistas políticos não gostarem ou desqualificarem, a  política internacional também pode ser lida como uma complexa rede de “conspirações” que acabam se transformando em golpes de Estado, como aconteceu no Brasil em 1964 e  em 2016, e como ocorreu também na Ucrânia, em 2014. Nesse sentido, é melhor aprender  com a história para que a história não se repita, porque neste caso será com uma agressividade e destrutividade cada vez maior. 

    Maio de 2014 / Abril de 2023 

    3 Elias, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, v. 2, p. 134.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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