Piketty e alguns problemas sociais brasileiros
Tomando como alvo principal a regulação do capitalismo, de modo a reduzir as desigualdades, a obra traz grande contribuição à seara intelectual e política socialista
A obra "O capital no século XXI", do economista francês Thomas Piketty, tornou-se uma sensação editorial e ganhou expressiva projeção nos debates econômicos e jornalísticos. No Brasil, há poucos meses foi publicada uma coletânea de artigos, organizada pela revista Le Monde Diplomatique Brasil, voltada à análise da obra. Dias atrás foi lançada a edição do badalado livro no país, pela editora Intrínseca. Já submetido a inúmeras avaliações, faço observações sobre o livro a partir de alguns problemas sociais brasileiros.
Sob um ângulo historiográfico, se pode afirmar que "O capital no século XXI" lida com o tempo de longa duração, permitindo ao leitor alcançar uma visão abrangente sobre a evolução do capitalismo contemporâneo. Suas fontes de análise derivam, principalmente, da história econômica dos países desenvolvidos. Considerando que esses países constituem a linha de frente da civilização capitalista, com potenciais tendências irradiadoras pelo mundo, a perspectiva histórica proporciona robustas justificativas a algumas ideias defendidas por Piketty.
Uma dessas ideias afirma que o baixo grau de intervenção estatal na economia cria um capitalismo patrimonial, apoiado em rendimentos sobre a acumulação herdada do passado. As rendas derivadas do patrimônio superam, e muito, os ganhos obtidos pela produção presente e pelo trabalho, ampliando as desigualdades sociais. O passado incide decisivamente no presente e os herdeiros da abastança tendem a controlar a economia mundial. Essa é uma das principais mazelas do nosso século, identificada por Piketty.
Determinadas questões destacadas pelo economista são particularmente interessantes ao público brasileiro. Um tema passível de estimular a reflexão é o investimento estrangeiro na periferia capitalista. Piketty entende que as "nações ricas" beneficiam-se do fato de terem maior controle sobre as propriedades em suas economias, assim como detém investimentos no exterior. Ganham duplamente, com rendas superiores à sua produção interna.
Ao contrário, países em que os ativos econômicos (terras, empresas, imóveis, equipamentos etc.) pertencem, em boa medida, a grupos estrangeiros, a renda nacional tende a ser inferior à sua capacidade produtiva, ao trabalho despendido na economia do país. Para usar o vocabulário dos antigos nacionalistas das esquerdas brasileiras, ocorre um processo de "sucção das rendas" produzidas pelo trabalho das nações periféricas.
Mesmo que adepto do livre comércio, o autor não deixa de problematizar o perfil dos investimentos estrangeiros nos países "emergentes" e "pobres". Seguindo sua reflexão, é possível argumentar que a instalação de montadoras de tecnologias e componentes importados, como se faz no Brasil, não é um bom negócio. Não estimula a cadeia produtiva, emprega pouco e não demanda formação profissional elevada, além de permitir a remessa de lucros excessivos ao exterior, gerando desequilíbrios entre a produção e a renda alcançada.
Mobilizando o caso chinês, o autor acentua a necessidade de controle estatal sobre tais investimentos. Portanto, de redefinição dos termos da acolhida do capital estrangeiro. Transferência de tecnologia e participação do capital estatal junto ao estrangeiro na gestão dos empreendimentos: eis algumas medidas para fazer com que o investimento externo contribua para o desenvolvimento econômico e social das nações periféricas. É nesse eventual cenário, como sublinha Piketty, que os investimentos em educação pública poderiam jogar um papel decisivo.
A apropriação ativamente criadora do conhecimento e das técnicas que vêm de fora pode elevar a densidade tecnológica da economia, assim como o perfil dos postos de trabalho e da educação. Conforme análises de Celso Furtado, o engenho criativo e a educação deveriam representar fatores importantes no desenvolvimento econômico e social brasileiro. Mas, como lembra Piketty, convergindo com Furtado, isso não pode ocorrer por meio de uma acolhida submissa e irrefletida do investimento estrangeiro.
Outra questão de destaque no livro é o crescimento das rendas obtidas com alugueis. Tomando a França como referência, vemos que a participação dos alugueis na renda daquele país saltou de 5% para 10%, desde a década de 1980. Note-se que se trata de uma sociedade que, na "era de ouro do capitalismo", regulava os preços dos alugueis e buscava exercitar o direito à moradia. Sem dúvida, a especulação imobiliária no Brasil ganha tons de maior dramaticidade, haja vista não termos experimentado, em nossa história, iniciativas públicas consistentes na promoção do direito à moradia.
Não é gratuito que, hoje, favelas na zona sul carioca convivam com alugueis e aquisição de casas por estrangeiros, elevando os preços e expulsando moradores pobres. A propaganda convencional de imóveis para as classes médias e altas apela, insistentemente, para que se "faça um bom negócio", em vez de registrar uma possível qualidade de vida em nova moradia. Com efeito, uma especulação sobre necessidade humana elementar e que não guarda qualquer relação com investimento coletivamente produtivo.
Os gráficos mobilizados pelo autor permitem observar a trajetória dos ganhos de capital baseados no parasitismo rentista, nas últimas décadas. O que expressa uma desvalorização do trabalho, na esteira da hegemonia neoliberal. Um fenômeno que incide na cultura e nos valores que orientam o comportamento coletivo. A respeito, vejamos duas paixões nacionais, o futebol e a novela, enquanto arquétipos de um mundo que tem depreciado o trabalho.
Entre meados dos anos 1970 e a década de 1980, Zico foi o maior ídolo do futebol brasileiro. Símbolo dos valores morais do trabalho e da dedicação pessoal chegava mais cedo e saía mais tarde dos treinos. Exaustivamente treinava cobrança de faltas. A geração seguinte teve em Romário o seu ídolo maior. Uma das suas frases mais conhecidas – e sintomáticas, para o que nos interessa – era "treinar para que?". Há pouco o futebol brasileiro teve em Ronaldo seu principal ídolo. Após algumas lesões e escolhas profissionais, ainda jovem, viveu basicamente para disputar Copas do Mundo. Acumulou capital nos primeiros anos – financeiro, mas também simbólico, sob a condição de craque internacional –, vivendo do passado em boa parte da sua trajetória em campo. Uma peculiar forma de rentismo, um "rentismo da bola", que não deixava de desvalorizar o trabalho enquanto componente ético de orientação do comportamento.
Em outra paixão nacional, as novelas, os áridos números apresentados por Piketty também podem ser traduzidos. Décadas atrás, Regina Duarte interpretava protagonistas que tinham no sacrifício, no trabalho e no mérito individual valores centrais para alcançar mobilidade social. Em uma novela começava como vendedora de sanduíches na praia e chegava a terminar a história como proprietária de rede de restaurantes. Em tempos mais recentes, não é difícil observar a frequência de protagonistas que visam à ascensão social por vias que rejeitam o trabalho.
Por conta de um padrão civilizatório em que pouco se valoriza o trabalho, superestimando o êxito financeiro a todo custo, não é à toa que, na educação brasileira, esteja disseminada a prática da busca por títulos escolares e universitários, deixando de lado o essencial: o estudo. Nesse sentido, a pesquisa de Piketty possui o mérito maior de contestar frontalmente o coração do liberalismo prevalecente: a ideia de que a riqueza e a propriedade são legítimas sob a condição de frutos do mérito e da capacidade individuais. Na contramão, o rentismo, exaltado pelo capitalismo em vigor, baseado no patrimônio herdado, não possui relação com o trabalho e a iniciativa individual. Ademais, influi perniciosamente nos valores que norteiam todo o tecido social.
A herança já chegou a sofrer cerca de 80% de tributação nos EUA. Isso a partir dos anos 1930, com a clara intenção de inibir as desigualdades sociais e canalizar os recursos financeiros para atividades não parasitárias. Hoje, a Inglaterra revela tributação sobre a herança em torno de 40% e os EUA, sob o influxo conservador, próximos de 30%. No Brasil não chega a 5% (O Estado de S.Paulo, 23/05/2014). Vale destacar ainda que a tributação brasileira possui um grotesco caráter regressivo, com uma dilatada tributação indireta sobre o consumo e, em parte, direta, afetando especialmente as classes populares e médias. Os ricos e capitalistas brasileiros choram de barriga cheia.
Visando a atenuação das desigualdades sociais em escala mundial, entre as propostas que o autor apresenta está o incremento da tributação progressiva sobre o capital (financeiro e heranças). Ademais, em vez de os Estados nacionais ampliarem as rendas dos portadores de títulos, com juros – aumentando as dívidas públicas e comprometendo os serviços de interesse social –, o autor sugere a taxação excepcional sobre as grandes fortunas para o abatimento das dívidas públicas dos Estados nacionais. Entende que, preferencialmente, sejam iniciativas redistributivas coordenadas em escala regional ou global, devido à possibilidade de fuga de capitais em um país. Em âmbito nacional, chama a atenção para a necessidade de reforço da progressividade do imposto de renda.
Tomando como alvo principal a regulação do capitalismo, de modo a reduzir as desigualdades, a obra traz grande contribuição à seara intelectual e política socialista. Entenda-se socialismo sob a acepção de uma "administração social do capitalismo", como define o cientista político Valter Duarte. Não é, pois, um livro norteado pela perspectiva marxista de superação dos "grilhões do capital".
Contudo, para os histéricos reacionários brasileiros que em tudo veem "comunismo", é plausível que o livro de Piketty seja demonizado como uma malévola obra vermelha. Aproveitando o ensejo, seria nada mal que a parte abastada de tais histéricos começasse a buscar rendimentos no trabalho, deixando de lado heranças, juros e alugueis. Seria um exemplo a dar alguma legitimidade ao princípio liberal da iniciativa individual, que dizem defender.
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