Política dos gozos
(Da série: Por que é tão fácil disseminar o ódio?)
Por que as acusações de corrupção contra a esquerda são tão convincentes e engendram tanto ódio? Por que os governos que tentam facilitar a inclusão, o estado de bem-estar social, reduzir as desigualdades e as injustiças são sistematicamente desautorizados e desmoralizados com este tipo de denúncia? Por que acusações similares, ou muito piores, dirigidas contra a direita, não produzem a mesma fúria na população?
As acusações de corrupção parecem ser a melhor arma para acabar com projetos inclusivos, mesmo que moderados. Essa estratégia é implementada cada vez com maior frequência em nossos países (e pelo mundo fora), sempre com o mesmo efeito. Não me refiro às pessoas que são diretamente beneficiadas por esta estratégia de denúncia (às ligadas ao capital financeiro, a interesses forâneos, latifundiários, etc.), nem às pessoas que, não sendo diretamente afetadas por um projeto de inclusão e de diminuição das desigualdades, se sentem invadidas por terem que compartilhar espaços que acreditavam ser deles (praias, aeroportos, aviões, universidades) ou prejudicadas por ter que conceder direitos trabalhistas àqueles que achavam que, por “direito”, eram seus quase escravos. Refiro-me às pessoas que legitimamente acreditavam no projeto de maior igualdade e, sobretudo, o que é mais chocante, aos que foram beneficiados por esse projeto. À primeira vista parece uma pergunta fácil de responder: dá muita raiva perceber que alguém nos está roubando. Porém, podemos observar que quando quem rouba é alguém da elite ou que defende à elite, isso não gera tanto ódio. Ora, não podemos pensar que as pessoas sejam tão alienadas a ponto de não perceberem tudo aquilo que lhes está sendo efetivamente tirado pela desigualdade social. Sabemos que o gasto social recai sobre os mais pobres na sociedade neoliberal. Nos bancos, quem tem pouco dinheiro paga taxas altas e recebe juros baixos, enquanto que quem tem muito dinheiro não paga taxas e ganha muito aplicando. Atualmente 26 pessoas no mundo concentram a mesma quantidade de riqueza que o restante da humanidade.Podemos dar muitos exemplos que se referem não só ao roubo operado pelo sistema, mas a roubos diretamente praticados, sabidos e denunciados: lavagem de dinheiro, dinheiro em paraísos fiscais, grandes empresas que não pagam impostos ou que fazem gambiarras para não pagar o que é devido a seus empregados, etc.
Qual é o motivo para que esse tipo de acusação contra a esquerda opere com tanta força, e para que as pessoas deixem completamente de lado a tendência humana a duvidar ou a continuar acreditando naquilo que ama? Podemos responsabilizar as mídias por subliminarmente repetir sem cessar acusações sem provas. Já houve estudos sobre os diferentes mecanismos de diagramação da mídia impressa e de apresentação dos telejornais que reforçam a ideia de podridão. Mas será só isso? Também podemos pensar que se faz uso dessa repetição porque se sabe de sua eficácia.
Dialética do gozo
Como psicanalista, não posso deixar de pensar na dialética do gozo. Gozo, para a psicanálise, não é só o gozo sexual. Melhor dizendo, trata-se de sexualidade, mas não no sentido estrito de orgasmo, de encontro de corpos, de manipulação de órgãos genitais. A psicanálise considera sexual - e gozo - toda sensação que, como a palavra diz, é sentida no corpo. Freud fala disto no segundo dos seus “Três ensaios para uma teoria sexual”. Ele pensava que só as sensações intensas eram fonte de sexualidade. Atualmente, nós, psicanalistas, sabemos que toda sensação é sexual. Prazer, alegria, tristeza, dor, as pulsões – é claro – ou atividades aparentemente incorpóreas como os pensamentos ou o trabalho intelectual, enfim toda sensação humana é corporal e sexual. Isso é o que denominamos gozo. Também há o intenso gozo da pulsão de morte, o da agressividade, que ao se articular com a sexualidade produz sensações orgasmáticas relatadas por alguns assassinos. Um programa governamental que promete inclusão e outra série de vantagens para a população tradicionalmente excluída é compreendido, inconscientemente, por essa mesma população, como promessa de gozo. As pessoas que vivem na pobreza ou na miséria sentem que podem trocar o gozo da resignação, do medo, da servidão voluntária para aceder a um gozo melhor.
Podemos simplesmente pensar que o ódio desencadeado pelas acusações de corrupção é devido à decepção e à sensação de engano? Nós, psicanalistas, sabemos que os decepcionados e os enganados tendem a fechar os olhos para serem mais uma e outra vez decepcionados e enganados. Penso que se trata, sim, de decepção e de engano, mas que toca num ponto tão íntimo que é sentido na carne, e produz uma convicção. Além disso, muitos desses pobres e desses miseráveis conseguiram realmente sair da pobreza extrema, passaram a viver com dignidade, tiveram acesso à luz, água, serviços médicos e universidades. Claro, faltou muita coisa, poderia ter sido feito muito mais. Mas, é essa falta concreta o que motiva o ódio pela corrupção da esquerda? Volto à temática do gozo. É uma lei do gozo estar sempre em falta, nunca ser total. Aquele que come não só sacia a fome: sente prazer na boca, e esse prazer exige mais. Quando um gozo é atingido a sensação é muito forte, mas a vontade de gozo nunca acaba. Sempre falta. Não existe gozo sem perda, disse Miquel Bassols numa conferência recentemente proferida no Rio de Janeiro. É fácil responsabilizar por esta falta algo ou alguém que deveria dar mais, ou que está tirando, ou proibindo. Essa perda, essa falta de gozo, quando é atribuída ao Outro, já é uma semente do ódio. Essa perda, essa falta, é o ponto perigoso. Por esse ponto entra no psiquismo humano Deus e o Diabo que, frequentemente, são a mesma coisa. Paradoxalmente esse mesmo ponto – a falta - pode ser o motor das mudanças: para os psicanalistas isto é o precioso, porque é o que permite as mudanças do sujeito, mas são necessárias condições especiais e uma determinada articulação com o gozo do Outro, do que falarei em outro artigo. Essa perda, essa falta de gozo, é tão democrática como a morte. Atinge ricos e pobres do mesmo modo. Sempre nos perguntamos: por que aqueles que têm muito dinheiro querem ter mais ainda? Por esta razão: o gozo nunca é suficiente, e sempre vai faltar dinheiro para saciar a fome. O que podemos pensar sobre o que aconteceu no Brasil em relação à política dos gozos? Por exigência do sistema capitalista em que vivemos, para estimular a economia, ou, simplesmente, por erro de cálculo, o gozo oferecido foi, basicamente, o gozo do consumo. Houve melhorias no salário, o crédito se tornou possível e as pessoas foram estimuladas a consumir. Claro que houve outros benefícios e as pessoas tiveram acesso a reais possibilidades de mudança, como a abertura de novas universidades, o sistema de quotas e os planos de estudo para pessoas até então impossibilitadas de aceder a ele. Mas o consumismo, por si só, é um equívoco total. As pessoas ficam consumidas. Mas não vou entrar no mérito desta questão. Darei um exemplo concreto do destino do gozo do consumismo e a minha interpretação.
Rolezinhos em shoppings centers
Jovens da periferia escutaram uma promessa de gozo, e o gozo oferecido era o consumo. Realmente, conseguiram comprar coisas que antes não compravam. Mas ao entrar nos Shoppings centers, templos de consumo da classe média alta, se sentiram diferentes, rejeitados. E começaram a manifestar sua raiva ocupando os Shoppings e fazendo bagunça, numa atitude de desafio e provocação que, muitas vezes, acabava concretizando a sensação de proibição de gozo, quando os empresários das lojas chamavam os seguranças para expulsá-los. Todos sabemos que privilegiar o estímulo ao consumo foi um erro. Quero enfatizar em que pontos íntimos tal estímulo tocou. A sensação de gozo incompleto se transformou em raiva, a proibição de gozo se transformou em ódio, e aqui já estão algumas das condições preexistentes para encontrar um culpado. Quem lhes está roubando o gozo devido? O governo está roubando, escutaram. Os jovens dos rolezinhos sabiam, tinham experimentado isto na carne: alguém estava tirando deles o mais importante. Só não sabiam do quê estavam realmente culpando o governo, que promessa tinham escutado. Não sabiam, nem podiam saber que o fato de não existir gozo sem perda é intrínseco. Claro que deviam protestar, mostrar que se sentiam maltratados – é uma reação legítima de dignidade humana – mas a questão é porque o ódio deles se voltou, justamente, contra aqueles que os tinham ajudado, e não contra a sociedade de consumo, ou contra os possuidores da riqueza, ou contra os empresários. O ódio deles se voltou contra quem tinha feito a promessa. Escutaram a promessa de um gozo total, imaginarizaram que o gozo total seria ter acesso a todos os âmbitos de consumo, e se sentiram enganados, roubados. Não casualmente, segundo pesquisas, esses jovens votaram em Bolsonaro.
Manifestações de 2013
Outro gozo, um outro exemplo: muitos dos indignados pela dita roubalheira eram pessoas que tinham sido muito beneficiadas pela política de inclusão. As novas classes D e E. Pessoas que tinham ascendido à classe média oriundas dos setores mais pobres, e dos que se esperaria que relativizassem as acusações, já que estavam recebendo tantos benefícios.
Aparentemente, foram majoritariamente eles os que tomaram as ruas em 2013, depois dos protestos dos estudantes a favor do passe livre. Os manifestantes nomeavam suas faltas com reivindicações mais justas que os adolescentes dos shoppings. Queriam mais e melhores hospitais, mais e melhores escolas, um transporte público de qualidade. Não tinham escutado uma promessa de consumo, mas do gozo da ascensão social. Os dirigentes do país perceberam do que se tratava e disseram que era a nova classe média que agora podia comer e queria mais. Sim, queria mais. Justamente neste artigo quero mostrar como e porque as pessoas sempre querem mais que, neste caso, era apropriado. A questão é o que se faz com este “querer mais”, tão profundamente humano; o problema é a facilidade com que as pessoas se convencem de que não o conseguem porque estão sendo roubadas. Os dirigentes acharam que era uma mera insatisfação, uma ingratidão, talvez. Não perceberam a força da sensação do roubo de gozo. E, apesar do programa “Mais médicos” ter surgido a partir destas manifestações, a resposta principal do governo foi de repressão, com o que personificou o Outro que impede gozar e consolidou a fantasia: se alguém me está barrando o gozo é porque está com o butim.
Claro que também era ingratidão, já que outra característica inerente ao ser humano é ser ingrato. Aquele que dá é odiado porque, quando ele dá, mostra que tem mais do que aquele que recebe. E sempre se sente que poderia dar mais.
É claro que a direita aproveitou a jogada e também se lançou às ruas, já que dela vinham as acusações de corrupção. Mas, para continuar com o tema da política dos gozos será necessário falar do Outro e de seu gozo, o que farei em outro texto.
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