Produtividade, segunda parte
Na parte final da crônica, vamos conhecer Lívia: a mulher que transformou a vida do entregador Rodrigo
- Senta aí que a pizza tá embaçada, grande. Sabe aquele corredor entre as filas dos carros que a gente passa voado?
- Ô! Há um tempo a gente falava “passar chispado”.
- Chispado é massa. Deixa eu voltar pro corredor. Foi ali que conheci a Livia. Eu vinha com a moto entre os carros. Primeiro vi lá longe o boné branco começando a entrar no corredor e só depois o tênis rosa, a blusa, a calça justa e aquele monte de panfleto na mão. Eu juntei nos freios, controlei e fui pra esquerda.
- E a Lívia?
- Ela assustou com a freada e correu pro mesmo lado. No ato, eu virei o guidão pra direita e ela deu um passo na mesma direção. Sabe quando dois pedestres ficam...
- Indecisos?
- Isso, valeu. Pois é, ficam indecisos na calçada, tipo: vai você; não, vai você e aí ninguém vai?
- Isso acontece direto comigo.
- Só que com a gente rolou ali no meio do trânsito. Aí que eu vi que ela era linda e distribuía pros motoristas aqueles papéis de venda de apartamento.
- Você falou algo pra ela?
- Eu queria, mas fiquei sem jeito, o farol já ia abrir. Acelerei, furei o cruzamento e quase chorei de raiva.
- Por quê?
- Porque eu queria fazer que nem a gente vê nas séries. O cara desce, dá uma ideia, fala uma coisa engraçada e conquista a mina.
- Na vida real não é tão fácil.
- Na moral, voltei pra casa lá no Jardim Jaqueline com ela na cabeça. Os olhos, a tatoo no ombro e o corpo... não dava pra esquecer
- Mas pelo jeito vocês se reencontraram.
- Sim. Eu voltei várias vezes naquele cruzamento, mas nunca achava a mina. Um dia eu vi os panfletos jogados no chão, como se ela tivesse acabado de sair. Fui seguindo os papeis no asfalto, até desaparecerem. Que tristeza!
- Você continuou a insistir?
- Claro. Perguntei no posto de combustível, ponto de táxi, nada. Até que num domingo de muito sol, era 20 de março, eu vi a gata.
- Tomou coragem?
- Mais ou menos, tava nervoso. Daí pensei, com esse calor vou comprar uma água gelada. Fui até um bar na outra avenida e acelerei pra lá. Me apresentei, ofereci a água e expliquei que quase tinha atropelado ela umas semanas atrás.
- Qual foi a reação?
- Abriu o sorriso mais lindo do mundo e deu um gole na água. Só que ela disse que o supervisor tava na esquina e que não podia parar de entregar os panfletos. Aí eu falei pra ela: você trabalha por produtividade, sabia? Ela arregalou aquelas duas azeitonas e perguntou: “que que é isso?”. Aí eu falei que ia voltar pra explicar. Ela me disse que se liberava às 13h. Começamos a conversar pelo zap durante uns dias. Chamei pra gente tomar uma cerveja. Ela disse que tinha que estudar e não topou.
- E aí?
- Aí que eu fiquei com mais vontade e tive uma ideia.
- Qual?
- Já te conto. Primeiro perguntei pra ela se podia passar lá na esquina no fim de semana. Consegui uma folga com o gerente do aplicativo e fui com fé. Até pedi pra minha mãe fazer uma oração.
- Isso é que é vontade.
- Nem desci da moto e convidei: bora tomar aquela cerveja na praia? “Cê é loco. Olha como eu tô vestida”. Eu disse: “Suave. Tenho uma surpresa pra você que eu comprei lá no Brás. Vê se gosta?” Ela desembrulhou o biquini florido e pela cara, senti que amou. Gostou da minha ideia, grande?
- Maravilhosa. E depois?
- Começou o encontro da minha vida. A Livia subiu na moto e descemos a serra. Ela apertadinha entre meu corpo e o bagageiro, que delícia. Cada curva melhor que a outra. Uma hora depois, mergulhamos na Praia Grande.
- Produtividade, hein?
- Você não viu nada. A gente piscou o olho e já vieram os meninos. O Tarcísio e o Vitor.
- Chegou a pizza.
- Que pena, queria terminar a história. Mas a muçarela tem que chegar ainda derretida.
- Fica com meu zap.
- Tá salvo. Vou te mandar áudio e mais fotos da família.
- Boa viagem.
- Agora são só mais 20 km até o jardim Jaqueline. Fui.
47 passos depois, boto a chave na porta de casa e encontro meu vizinho. Demétrio desce a escada com o celular na mão. Vai buscar o jantar da sexta-feira.
(Leia aqui a primeira parte da crônica)
Meu muito obrigado ao melhor entregador do Brasil, Guilherme Jesus. Ele me ajudou com sua memória incrível e seu talento de contar boas histórias do mundo dos motoboys.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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