Propina nas nádegas faz parte da guerra híbrida
Bolsonaro precisa criar o máximo de confusão para que os idealizadores das guerras híbridas possam tirar disso o máximo de proveito, no mais curto espaço de tempo possível. Para que eles possam concentrar a sua energia somente naquilo que interessa: promover o butim do território dominado.
Quando o governo FHC lançou ações da Petrobras para negociação na bolsa de valores nos EUA, nosso país outorgou poderes de império para as autoridades estadunidenses, de modo que elas tivessem jurisdição sobre empresas brasileiras que se relacionassem com a Petrobras. As empresas que negociam ações nas bolsas de valores dos EUA ficam sujeitas à norma anticorrupção denominada “Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)”, com controle e investigação a cargo do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ).
“Logo depois de começar a negociar com o procurador Deltan Dallagnol a devolução de parte da multa bilionária aplicada contra a Petrobras nos Estados Unidos, o ex-integrante do Departamento de Justiça (DoJ) norte-americano Patrick Stokes começou a trabalhar no escritório que defendeu a estatal e foi responsável pela assinatura do acordo.” (Conjur, 14/10/20 - Após investigar Petrobras, procurador dos EUA atuou em banca que defendeu estatal)
Pelas reportagens da série Vaza Jato, do The Intercept Brasil, fica evidente que os R$ 2,5 bilhões doados pelos EUA aos procuradores da Lava Jato era uma contrapartida pelos relevantes serviços prestados pelas autoridades brasileiras em favor dos interesses dos EUA.
“Tanto o DoJ quanto a Securities Exchange Comission podem aplicar o FCPA, lei que permite punir empresas estrangeiras com valores mobiliários negociados em bolsa nos Estados Unidos. A norma anticorrupção, segundo mostrou a ConJur em julho, foi amplamente utilizada para punir empresas brasileiras nos EUA, expandindo a jurisdição norte-americana ao redor do mundo.” (Conjur)“A atuação dupla de Stokes se conecta a uma outra realidade da "lava jato": a porta giratória, que levou membros da acusação a migrarem para a defesa, às vezes em um mesmo processo, como no caso da Petrobras.” (Conjur)
Aos poucos, o golpe ocorrido no Brasil em 2016, para depor a presidenta Dilma, vai sendo desvendado. Porém, muito antes de Deltan Dallagnol, Moro e seus chefiados começarem a viajar aos EUA para tratar da entrega de provas que resultaria em autuações bilionárias contra a Petrobras, as autoridades estadunidenses tinham pavimentado um longo caminho para atingir esse objetivo.
Para que o Brasil passasse a se submeter à legislação FCPA dos Estados Unidos, era preciso que autoridades brasileiras (juízes, procuradores e delegados) fossem treinados de acordo com os interesses dos EUA. Desde 2009 há notícias desses treinamentos envolvendo o juiz Sérgio Moro (mais tarde também Marcelo Bretas) e agentes do Ministério Público e Polícia Federal, agentes que seriam chefiados por Moro na Força-Tarefa Lava Jato. Dezenas de agentes do FBI atuaram no Brasil desde antes da formação da Lava Jato.
O pretexto para essas ações transnacionais era a corrupção. Nos EUA, esse tema passara a ser recorrente a partir da era Obama. DoJ e FBI foram encarregados de ajudar autoridades dos países da América Latina a “resolver o seu pior problema”: a corrupção.
Com essa nova estratégia (imposição da norma FCPA a outros países), os Estados Unidos colocaram em prática uma nova forma de subjugar países periféricos. Em vez de usar seu poderio militar – prática comum, porém cada vez mais cara e impopular –, os EUA passaram a se utilizar de parte do aparato investigativo e judicial dos países onde queriam impor seus interesses econômicos e políticos. Esse fenômeno ficou conhecido como lawfare.
A Construtora Odebrecht, por exemplo – uma das muitas que seriam destruídas pela Lava Jato -, era uma das maiores empresas de engenharia e construção civil do mundo, com contratos em inúmeros países. A partir da estratégia das autoridades estadunidenses, levada a efeito por Forças-tarefa nos países periféricos com a norma anticorrupção FCPA (Lava Jato no Brasil), a Odebrecht foi usada como cavalo de Tróia para atacar e derrubar os governos populares que contrariavam os interesses dos EUA na América Latina e na África (Brasil, Equador, Peru, Angola).
O objetivo geopolítico das autoridades estadunidenses era evitar que o Brasil continuasse desenvolvendo empresas de importância estratégica, para que nosso país ficasse relegado ao papel de produtor de grãos e alimentos para serem exportados in natura para os países industrializados do norte global.
Por isso, os juízes e procuradores brasileiros foram instruídos pelas autoridades estadunidenses a atacar as empresas de setores que contrariavam os interesses dos EUA: Petrobras, Nuclebras, Indústria naval, engenharia e construção civil. Por isso, NUNCA houve operação da Lava Jato contra bancos, apesar de denúncias consistentes de ilícitos (lavagem de dinheiro) nessas instituições financeiras. Pois isso não era do interesse dos EUA, porque geraria instabilidade para as elites financistas que vivem da especulação.
Simultaneamente às ações de planejamento e doutrinação de autoridades brasileiras por parte do DoJ e do FBI, Moro e seus aliados se movimentavam na seara política para adequar a legislação brasileira para que a estratégia definida pelos EUA pudesse ser aplicada no país.
“Onyx Lorenzoni disse, em entrevista a um programa da GloboNews, que sua relação com Sergio Moro existe desde 2005 e que, já naquela época, o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba – a única especializada em crimes de colarinho branco – pediu a atualização de duas leis que foram utilizadas pela Lava Jato para condenar e prender o ex-presidente Lula (Moro tenta chegar em Lula desde o Mensalão, revela Onyx GGN, 07/12/18)”
A aplicação dessas estratégias de dominação de amplo espectro são movimentos típicos da guerra híbrida. No Brasil, seriam ainda utilizadas formas diversas de “operações híbridas”, inclusive para gerar movimentos de massa, a partir de 2013, exigindo o fim da corrupção, os quais foram noticiados como sendo espontâneos pela mídia associada à Lava Jato.
Correndo em raia própria, os militares – especialmente do Exército – também faziam seus movimentos de guerra híbrida. Aproveitando-se do “sentimento” anticorrupção gerado pela Lava Jato/FBI/DoJ, amplificaram seu volume e agregaram novas pautas, conforme revelado pelo general Rego Barros, porta-voz do governo Bolsonaro: “mergulhar de cabeça no ‘submundo’ das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, WhatsApp, Portal Responsivo, Eblog etc – e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil exigiu sangue frio na interlocução sem rosto, típica da internet...”.
Mas os militares tinham muito mais expertise em estratégias de guerra – inclusive da híbrida – do que os pupilos da Lava Jato teleguiados pelo DoJ e FBI. Os militares criaram uma narrativa própria sobre as origens dos principais problemas do Brasil, vacinando as massas para que elas não caíssem no colo dos políticos tucanos, que era o plano inicial da Lava Jato.
Os militares fizeram de conta que estavam preocupados com a corrupção, mas nas suas redes o foco principal consistia em alimentar teorias conspiratórias para gerar medo: do comunismo, dos movimentos de negros, feministas, LGBT, ONGs. Esse clima de pavor teria o efeito de fazer o povo clamar pela intervenção militar – clamor esse também nada espontâneo – pavimentando dessa forma o caminho à presidência do seu candidato Jaír Bolsonaro.
Na essência, os militares concordavam com a atuação da Lava Jato inclusive em relação à destruição de importantes empresas estratégicas do país, o que era uma postura diferente da que os militares defendiam durante a ditadura militar, em especial no período Geisel. Esse giro de 180° em direção ao neoliberalismo ficaria bem evidente logo a seguir – quando os militares já estavam no poder – com a sua anuência na entrega da Embraer e da base militar de Alcântara, na destruição da Nuclebras, no desmonte do sistema Petrobras, entre outros.
A Lava Jato agarrou-se unicamente à bandeira do combate à corrupção, atacando apenas um lado do espectro político (esquerda), achando que isso bastaria para que os eleitores votassem automaticamente num candidato alinhado com a direita (PSDB). Mas a estratégia dos militares foi mais abrangente, mais totalizante. Consequentemente, mais eficiente.
Quando chegou a eleição de 2018, Bolsonaro simplesmente colheu o resultado da indignação gerada artificialmente pelas duas grandes forças alinhadas com os EUA para derrubar o PT: a Lava Jato e os militares.
Passada a eleição, o general Villas Bôas, um dos estrategistas da guerra híbrida, compreendeu que os setores alinhados com a Lava Jato (grande mídia incluída) tinha grande capacidade de causar danos ao novo consórcio de poder se fosse deixada “por conta”. Trazer o chefe da Lava Jato, Sérgio Moro, para dentro do governo, que por sua vez trouxe chefes menores para dentro do seu “superministério”, foi uma tática inteligente para neutralizar a ação lavajatista, tornando-a caudatária e serviçal da ala militar, que passou a ser francamente hegemônica na administração do novo consórcio.
O escândalo da propina nas nádegas traz de volta o ex-chefe da Lava Jato Sérgio Moro. Falar em corrupção interessa a Moro e à moribunda Lava Jato. Mostrar corrupção tem a função de contradizer Bolsonaro, que decretou o fim da corrupção. Porque há, neste momento, uma divergência pontual entre os militares associados a Bolsonaro e a Lava Jato.
Em 2017, também tinha ocorrido uma crise nessa relação entre os dois entes principais que tinham instalado, provisoriamente, o governo Temer-tucano-militar. A Lava Jato tentou derrubar o presidente Temer no episódio dos grampos de Joesley Batista, mas os militares foram avalistas do governo e não permitiram o avanço das investidas lavajatistas.
Depois da eleição de Bolsonaro, os dois protagonistas principais da guerra híbrida promovida no Brasil reataram o relacionamento.
A esse propósito: “... o discurso de despedida do cargo do Villas Bôas, [...], onde ele diz que o Brasil tem três heróis nacionais: Bolsonaro, que tinha permitido nos livrarmos do comunismo, o Moro, que estava limpando a corrupção, e o Braga Netto – que ele deixa suspenso no ar.” (Entrevista de Piero Leirner, Revista Ópera)
O general Villas Bôas, comandante do Exército em 2015, um ano antes do golpe contra a Dilma, reuniu-se com o então vice-presidente Michel Temer. Presente na reunião também o general Sergio Etchegoyen, que seria nomeado por Temer como ministro do GSI. Sob a jurisdição do ministro do GSI ocorreria o grampo do Joesley que de fato encerraria a viabilidade do governo Temer-tucano, restando apenas os militares como alternativa de poder. A reunião do generalato com Temer em 2015, pelo que se sucedeu depois, serviu para o acerto de detalhes sobre quem ficaria com quê após darem o golpe para depor a presidenta Dilma.
Villas Bôas, em 2017, foi fiador do governo Temer, impedindo que ele fosse derrubado pela Lava Jato, que tinha grampeado o presidente debaixo do nariz do ministro-general da segurança institucional Sérgio Etchegoyen. “Não há atalhos fora da Constituição”, tuitou Villas Bôas para encerrar o assunto.
Villas Bôas, em 2018, fez os tuítes ameaçadores contra o STF para manter Lula preso.
Villas Bôas, em 2019, assumiu oficialmente um cargo estratégico no governo Bolsonaro, ocasião em que anunciou o nome dos “novos heróis” nacionais: Bolsonaro (que reconheceu que só chegou à presidência por causa do Villas Bôas) , Sérgio Moro e o general Braga Neto, nessa ordem.
O retorno do tema da corrupção, com o episódio do dinheiro nas nádegas, é mais um capítulo da disputa interna entre essas duas forças que elegeram Bolsonaro: Lava Jato e militares. A decretação do fim da corrupção por Bolsonaro tem como consequência a diminuição do poder de pressão da turma que se orienta pelos métodos da Lava Jato. Diminuindo seu poder de influência, correm o risco de perder em seguida seus altos salários e outros privilégios que tinham amealhado nos últimos anos ao serem ungidos à condição de salvadores da pátria.
Operações tipo lava-nádegas devem ser compreendidas nesse contexto. Não há fissuras nem divergências de fundo. Não se está pretendendo derrubar ninguém. O que se procura é o enfraquecimento de alguns atores para que outros possam possam subir ao palco principal. Isso chama-se demonstração de poder. Quem não demonstra poder não é lembrado.
Enquanto Moro era ministro de Bolsonaro, a Lava Jato ajustou-se ao novo consórcio visando a vantagens imediatas. Com a saída de Moro, passaram a criar algumas dificuldades ao consórcio financista/militar/judicial, porque a submissão completa tende a enfraquecê-los, fazendo-os perder poder de influência sobre os círculos de poder.
O cenário econômico e político atual é fruto da guerra híbrida da qual o Brasil é palco nos últimos anos. Nesse cenário nada acontece por acaso. Não há coincidências inexplicáveis. Apenas alguns imprevistos para os quais são necessários pequenos ajustes.
A revelação do nome dos heróis, feita pelo general Villas Bôas, deixa evidente que há uma perspectiva de continuidade na guerra em curso. Cada batalha é travada no devido tempo. Tanto faz quem seja o gerente escolhido pelo consórcio para fazer passar a boiada. O nome é o que menos importa. O atual presidente é apenas uma das opções disponíveis. Pode ser a melhor opção do momento. Mas o consórcio – e os seus donos – não podem ser reféns do gerente. Por isso tem de trabalhar com outras opções, tem de pensar para além do momento presente. Por isso não convém que o gerente se torne tão poderoso a ponto de se tornar insubstituível. Pois isso, sempre pode-se tornar necessário em algum momento.
Operações do tipo lava-nádegas tem também a função de lembrar ao gerente precário do empreendimento entreguista que ele não é insubstituível, pois há vários outros candidatos bem dispostos a cumprir o papel.
O que esse consórcio e os seus reais donos dizem a todo momento é o seguinte: temos alternativas para todas as situações. É preciso demonizar a política novamente? Demonizamos. Temos opções. É preciso criar um ambiente em que a população vá pedir “espontaneamente” o fechamento do congresso e do STF? Fazemos. Temos opções também para esse caminho.
A democracia pode morrer. O Estado nacional pode deixar de existir. Pode não haver futuro. Nada disso vem ao caso.
O que importa para os criadores das guerras híbridas é que no território (não importa o nome do país) “conquistado”, haja a garantia de que os bilionários – sejam de que nacionalidade forem – possam livremente promover os saques das riquezas e ganhar dinheiro rápido e fácil em alguns nichos muito lucrativos (petróleo, privatização de estatais estratégicas, minérios, terras agricultáveis, reservas florestais, fabricação de guerras e venda de armas e munições, jogos de azar, domínio das grandes mídias).
Quanto mais intensamente esse território se debater em conflitos internos e disputas sem sentido, melhor. Esse é um dos sentidos principais da guerra híbrida, interpretado equivocadamente como um efeito secundário, como cortina de fumaça.
Bolsonaro precisa criar o máximo de confusão para que os idealizadores das guerras híbridas possam tirar disso o máximo de proveito, no mais curto espaço de tempo possível. Para que eles possam concentrar a sua energia somente naquilo que interessa: promover o butim do território dominado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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