Propriedade, ocupação e resistência
Enquanto centenas de imóveis estão vazios, sem utilização, desrespeitando a legislação que promove a função social da propriedade, milhares - talvez milhões - sofrem por não ter condições de pagar por uma moradia digna e porque nosso Estado é submisso aos interesses dos grandes proprietários
Diante dos últimos acontecimentos seria impossível tratar aqui de outro assunto que não seja moradia e política habitacional. O incêndio e o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida chocou a todos nós e colocou em evidência um grande problema das metrópoles brasileiras: a falta de moradia.
Antes de falarmos em moradia, ocupações, invasões e vários outros termos muito difundidos nesta semana, pensemos aqui na Constituição Federal que garante o direito à propriedade privada. Na prática, a Constituição delimita que possuir um imóvel, um terreno, um edifício é um direito de cada cidadão brasileiro. Mas não é só isso. A legislação também aponta para a função social da propriedade.
Ora, se eu tenho um ou mais imóveis, é porque posso comprá-los e, muito provavelmente, posso mantê-los com alguma função, seja para um comércio, locação para inquilino ou para moradia mesmo. O que - a grosso modo - não pode é ter um imóvel e deixá-lo vazio, sem utilização. É o que diz o Estatuto das Cidades, que está pautado no Direito à Cidade e na justiça social.
Isso significa que em caso de imóveis não utilizados a Prefeitura vai simplesmente tomar do proprietário sem nenhum tipo de indenização? Não. Nossa Constituição é burguesa, acima de tudo. A propriedade está garantida. O que é possível fazer, então? Existem alguns instrumentos jurídicos de planejamento urbano que auxiliam na política habitacional como, por exemplo, o PEUC (Parcelamento, edificação e utilização compulsórios) e o IPTU progressivo.
O PEUC tem algumas etapas e categorias. A análise pode indicar um imóvel não edificado, sub-utilizado e não-utilizado. Ou seja, aquele terreno vazio que na maioria das vezes o proprietário não cuida, é notificado e deve ser parcelado (dividido para que se consiga dar uma função) ou edificado (e, então, funcione de alguma forma, independentemente da atividade). Os terrenos que têm até alguma construção, mas algo mínimo, só pra parecer que se está dando algum tipo de uso, também pode ser notificado e deverá ser edificado e utilizado (novamente, independe da atividade). Por fim, o imóvel já edificado (construído) é notificado e deve simplesmente cumprir algum tipo de uso. Perceba: até agora não falei em tomar a propriedade.
Após as notificações, a Prefeitura pode usar o instrumento de IPTU progressivo para aumentar o valor da taxa e tender, de certa forma, incomodar o proprietário para que tome alguma decisão. Em todos os casos é possível que o proprietário venda seu imóvel e não se preocupe mais com isso.
Após notificações, tentativas de negociação e aumento do IPTU, aí sim, a Prefeitura começa a falar em desapropriação. É o limite, o último recurso. Ainda assim, você, caro leitor, acha que o Estado simplesmente toma o imóvel para si? Não. A gestão pública vai indenizar o proprietário com o valor do imóvel de acordo com a tabela do IPTU por meio de títulos da dívida pública ou recursos advindos do FUNDURB (um fundo destinado à política urbana).
Ainda assim, a Prefeitura pode utilizar, por meio de Consórcio Urbano, uma espécie de permuta. O Estado compra o imóvel, constroi habitação social naquele lugar e, posteriormente, paga o proprietário com algumas unidades dos conjuntos.
Listei aqui instrumentos básicos do Direito Urbanístico que podem auxiliar nas políticas habitacionais. Agora, por que isso tudo é tão importante? Porque nós temos um grande problema de déficit habitacional. O que isso significa? Que tem muita gente pra pouca casa? Talvez.
É bastante complexo e não vou dar conta aqui de falar sobre tudo, mas, vamos lá: temos, no centro de São Paulo, centenas de imóveis edificados e não-utilizados. Ou seja, são prédios vazios em uma região que concentra o emprego e que os imóveis, em geral, são bem caros. A Prefeitura não consegue (ou não quer?) aplicar aqueles instrumentos que citei anteriormente. Então os imóveis ficam lá, vazios, enquanto tem muita gente sem ter onde morar.
Agora, imagine-se como a grande maioria dos brasileiros, vivendo com 1 salário mínimo, algo em torno de 900 reais. Algum banco te emprestaria dinheiro para comprar uma casa? Tanto no centro quanto na periferia. Não. Não se aprova financiamento.
Pois bem, se não é possível comprar, pensemos em alugar. Quanto custa o aluguel de uma "kitnet" no centro de São Paulo? Algo em torno de 800 reais. E na periferia? Quanto mais longe do centro, mais barato, claro, mas suponhamos que chegue a 500 reais. Faça as contas e some água, luz, gás de cozinha e alimentação. A conta fecha? Não, não fecha. E se tiver mais alguém contigo? Pai, mãe, filho, avós, enfim, a conta não fecha.
A questão principal é que enquanto centenas de imóveis estão vazios, sem utilização, desrespeitando a legislação que promove a função social da propriedade, milhares - talvez milhões - sofrem por não ter condições de pagar por uma moradia digna e porque nosso Estado é submisso aos interesses dos grandes proprietários.
E qual a alternativa? Ocupar. Não é "vagabundismo". É a falta de opção que leva as pessoas às ocupações. Ninguém quer viver sob um barraco de lona, pisando no barro, ou num prédio sem as mínimas condições de segurança. Mas, em muitos casos, não há opção. Nesses casos, ocupar é reivindicar o direito constitucional à moradia digna. Ocupar é resistir à força dos grandes mercados que expulsa pobres do centro das cidades.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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