Radicalizar a democracia, a partir de São Pedro da Cova
O princípio de democratizar a democracia é o único caminho para a esquerda do século XXI
Recebi um e-mail muito delicado da Professora Suely Braga; ela é leitora assídua do CORREIO, interage enviando cartas ao nosso editor, opina, sempre educadamente, sobre conteúdos que o jornal oferece ao leitor; depois do primeiro e-mail trocamos alguns outros.
A Dona Suely me contou que foi professora no Vitor Meireles, onde cursei o ensino médio, mas ela não foi minha professora; hoje ela vive em Portugal numa vila chamada São Pedro da Cova, pertinho do Porto, menos de 20 quilômetros; ela mudou-se para lá após aposentar-se e vive com sua mãe, também professora e aposentada (fui pesquisar e descobri que a Vila São Pedro da Cova, do município Gondomar, tem pouco mais de 16 mil habitantes, deve ser como Campinas e Sousas).
Ela e a mãe usam o Serviço Nacional de Saúde de Portugal, o SNS, uma espécie de SUS, o sistema lá, como cá, pode ser bastante efetivo em alguns quesitos, mas é insuficiente em outros.
A professora Suely disse que não gosta muito quando escrevo sobre política e economia, ela disse gostar mais quando conto as histórias, coisas simples que tem, a priori, valor e significado apenas para mim (o meu amigo Carlos Barreto concorda com ela).
Ela me perguntou se sou de fato de esquerda ou se escrevo apenas para polemizar... Respondi a ela com outra pergunta: “o que é ser de direita e de esquerda para a senhora, tendo em conta que no século XXI, no nosso planeta o único sistema econômico é o capitalismo e a teoria econômica majoritária é o liberalismo?”.
Ela ralhou comigo, coisa de professora brava, e pediu para eu responder a pergunta.
Respondi dizendo que, a esquerda que acredito é fruto de movimentos permanentes de transformação e aperfeiçoamento da própria democracia ao longo do século XX e das primeiras décadas do século XXI; que não acredito no marxismo ou em dogmas que limitem a minha própria compreensão do mundo que vivo (ademais, o marxismo, tão eficiente na correta crítica, deve ao mundo uma Teoria Econômica).
Vivemos num mundo globalizado, sob o domínio da ideologia neoliberal, sob a égide total da voracidade do capital financeiro e me oponho fortemente a isso; me oponho também à lógica liberal, pois nela não há espaço para fraternidade e humanidade.
O fato é que o mundo vive um remapeamento dentro da dialética da territorialização - desterritorialização, repleto de tensões – e o resultado é o que vemos em curso, a existência de um "fascismo social", com a destruição de tudo o que possa proporcionar cidadania, em nome da "eficiência" e da voracidade da acumulação capitalista, sem precedentes (eu disse à Dona Suely que se a direita pudesse, privatizaria o SNS lá e o SUS aqui).
O neoliberalismo é a mais antissocial de todas as ideologias que já existiram.
Se ser antineoliberal é ser de esquerda, sou de esquerda, pois em nome da austeridade praticam-se verdadeiros crimes; governos criam recessões e miséria para manter os juros bancários em dia (veja o que Milei está fazendo na Argentina).
O livro Boaventura Santos “A difícil democracia - reinventar as esquerdas”, sintetiza o que penso: ser de esquerda; ser de esquerda é ver o mundo como ele é: uma criação de Deus e manufatura humana; já ser de direita é transformar tudo em negócio e buscar de resultados financeiros a qualquer custo; é transformar direitos (como o saneamento) em negócios e substituir a construção de uma sociedade fraterna e um Estado de bem-estar social em um campo de batalha individualista e egoísta. O pior é que muitas vítimas do sistema, como advertiu Malcom X, acreditam que “...a culpa dos problemas sociais é dos oprimidos, não de quem os oprime?”, pois, segundo Boaventura, "A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para publicá-la".
Direita é o conjunto das forças sociais, econômicas e políticas que se identificam com os desígnios globais do capitalismo neoliberal e com o que isso implica, no nível das políticas nacionais, em termos de agravamento das desigualdades sociais, da destruição do Estado social, do controle dos meios de comunicação e do estreitamento da pluralidade do espectro político. A prioridade para a direita é a privatização da economia e liberalização do comércio internacional; demonizar o Estado regulador da economia e promotor de políticas sociais; o pessoal de direita acredita que a regulação econômica global deve ser feita por instituições dominadas pelo capitalismo estadunidense: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, em detrimento das agências da ONU; a direita quer a desregulação dos mercados financeiros; substituição da regulação econômica estatal (hard law) pela autorregularão controlada por empresas multinacionais (soft law).
Já Esquerda, como eu a desejo, é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade.
Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação.
Penso que o capitalismo é fonte do poder de dominação, por isso não há como enfrentá-lo e derrotá-lo, em busca da construção de uma sociedade de iguais, sem a radicalização da democracia, uma democracia de alta intensidade.
A radicalização da democracia e o Princípio de democratizar a democracia é o único caminho para a esquerda do século XXI.
Estou aguardando o e-mail resposta da Dona Suely e espero que ela nos ajude a radicalizar a democracia lá em São Pedro da Cova.
Essas são as reflexões.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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