Representar é humanizar: sobre a propaganda do Banco do Brasil
Num país com índices tão altos de assassinato à população negra, LGBTQI, indígenas e quilombolas, simplesmente existir, já é um ato de resistência extremamente revolucionário
Lupita Nyong'o, uma atriz queniano-mexicana, negra, laureada com o Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme "12 anos de escravidão", fez um pequeno discurso, mas poderoso sobre representatividade na televisão. Em um trecho, disse ela: "Lembro-me de uma época em que eu [...] me sentia sem beleza. Eu ligava a TV, e só via peles claras. Fiquei insultada e aborrecida com minha 'pele negra como a noite'", sua fala foi durante o 7º Essence Black Women in Hollywood, em 2014. O que Nyong'o disse vai ao encontro do documentário "A negação do Brasil", onde descreve as formas estereotipadas que as pessoas negras foram representadas nas telenovelas brasileiras.
Como amar o que não se vê? Se um jovem negro não se vê representado nas propagandas publicitárias, nos telejornais, nas revistas, etc, acarreta no desenvolvimento de uma baixa autoestima, como argumenta a professora Maria da Consolação de André: "o afrodescendente internaliza os valores estéticos do branco europeu assumidos como padrões de beleza, de maneira a ver suas próprias qualidades físicas como 'feias' e de menos valia".
A ideologia da branquitude provoca a naturalização do racismo. Assim, achamos "normal/natural" ver a maioria das pessoas negras em trabalhos que não exigem qualificação profissional, ao mesmo tempo, achamos "normal/natural" o baixo número de representantes negros nos cargos de poder: apenas 4% dos políticos eleitos em outubro de 2018 se autodeclaram negros, num país onde mais da metade da população se autodeclara preta ou parda, conforme designação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A escritora Chimamanda Ngozi Adichie afirma: "Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. [...] Eu tendo a cometer o erro de achar que uma coisa óbvia para mim também é óbvia para todo mundo".
Também é preciso falar da ausência de representatividade da população LGBTQI, indígena, das pessoas com deficiência, ou seja, de todas aquelas vozes silenciadas para que, assim, sejam reconhecidas com total dignidade. Em outras palavras, representar é humanizar, como bem analisa a filósofa americana Judith Butler: "aqueles que ganham representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chance de serem humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande risco de ser tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de fato, nem serem mesmo vistos".
O nosso olhar, portanto, está treinado para reconhecer um tipo específico de representatividade: branco, heterossexual, de classe média, cristão. Nossos olhos, dessa forma, ignoram ou desprestigiam aqueles que não se enquadram nessas categorias. Segundo o sociólogo Tomás Tadeu da Silva: "É na representação que o poder do olhar, o olhar do poder, se materializam; é na representação que o visível se torna dizível. É na representação que a visibilidade entra no domínio da significação".
O veto do atual governo de Jair Bolsonaro, a uma peça publicitária do Banco do Brasil, uma estatal (portanto, pertencente ao povo brasileiro), demonstra, justamente, essa negação do Brasil, a negação da diversidade. A propaganda trazia jovens negros, descolados, com cabelos longos e falando gírias. Ao proibir que estas pessoas sejam representadas, significa mantê-las na invisibilidade, à margem, na sombra da vergonha, como aconteceu como Lupita Nyong'o.
É estranho o Governo Federal censurar uma propaganda. O mesmo governo que, só no primeiro trimestre, gastou mais de R$ 75 milhões com verbas publicitárias, elevando o gasto em 63%, comparado ao mesmo período de 2018, no governo de Michel Temer. Se gasta muito com publicidade, desde que a publicidade agrade aos olhos da classe dominante.
Em sua defesa, Bolsonaro alegou que "a massa quer respeito à família". Cabe questionar: qual modelo de família? Uma nação que promova uma arquitetura da destruição do diferente, da perseguição aos excluídos, dos "descartáveis" (utilizando uma expressão do papa Francisco), é tudo o que não queremos ver se repetir na História.
Por fim, não se trata de defender uma instituição financeira ou pedir mais representatividade num governo conversador e de direita. Num país com índices tão altos de assassinato à população negra, LGBTQI, indígenas e quilombolas, simplesmente existir, já é um ato de resistência extremamente revolucionário.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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