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    Igor Corrêa Pereira

    Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.

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    Round 6 e os jogos neoliberais

    O público de tantos países pode ter se identificado com essa narrativa por ela se tratar de uma metáfora potente do neoliberalismo. São muitos os "perdedores" deixados para trás. No Brasil, temos uma multidão de pelo menos 36 milhões de desempregados, sub-ocupados e desalentados, segundo ensina a doutoranda em economia da UNICAMP Paula Freitas. Se formos focar no endividamento, dados de junho de 2021 revelam o maior número de famílias endividadas no Brasil em dez anos.

    (Foto: Divulgação)

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    A série coreana "Round 6", disponível na plataforma digital Netflix, é atualmente a mais assistida do serviço de streaming em 90 países, segundo informa o Portal CNN Brasil. O Diretor Hwang Dong-hyuk disse em entrevista que a trama se trata de “uma história sobre perdedores”. O cineasta explica que o enredo do seriado  espelha a competição vivida pela sociedade nos dias de hoje. Os perdedores que são retratados pela narrativa, são para ele os que lutam contra as barreiras impostas cotidianamente e fracassam, enquanto os bem-sucedidos são promovidos.  

    O público de tantos países pode ter se identificado com essa narrativa por ela se tratar de uma metáfora potente do neoliberalismo. São muitos os "perdedores" deixados para trás. No Brasil, temos uma multidão de pelo menos 36 milhões de desempregados, sub-ocupados e desalentados, segundo ensina a doutoranda em economia da UNICAMP Paula Freitas. Se formos focar no endividamento, dados de junho de 2021 revelam o maior número de famílias endividadas no Brasil em dez anos.  

    Vulneráveis pela destruição das leis trabalhistas e aumento das dívidas, é essa a mão de obra que vai ser levada, pela falta de opção melhor, a trabalhar para aplicativos de transporte de pessoas e alimentos. Serão mal-remunerados e poderão ser eliminados a qualquer momento, sem receber nenhuma explicação. Embora não sejam eliminados fisicamente, como na trama, são facilmente descartáveis e precisarão estar conectados quase que permanentemente para conseguir o parco sustento diário. 

     A dívida, que moveu os personagens da narrativa coreana a aceitar o jogo que lhes foi proposto, também está presente nas motivações dos deixados para trás no mercado de trabalho brasileiro. Muitos precisam se endividar para trabalhar nas condições que descrevemos acima. Para comprar seus instrumentos de trabalho (celulares e/ou carros, motos ou bicicletas), contrairão dívidas que tentarão pagar depois com seu trabalho. 

    A dívida funciona como uma técnica de controle sobre as pessoas. Tal qual na série, a dívida faz com que o endividado aceite as condições mais adversas na expectativa de obter alguma renda que o faça quitar parte do que deve. O mecanismo pelo qual o sujeito endividado se sacrifica em nome da dívida pode ser comparado a religiões antigas que pregavam o sacrifício humano. Não se trata de um culto que expia pecados, mas faz com que o penitente fique cada vez mais em dívida. 

    O trabalho foi substituído pelo jogo? Ou o jogo vira a forma como se trabalha? Outro coreano, o filósofo Byung-Chul Han explica que o capitalismo utiliza a digitalização da vida para explorar sem piedade o desejo humano pelo jogo. As redes incorporam mecanismos que despertam o prazer do jogo. Os aplicativos de transporte também usam dessa estratégia, a ponto de especialistas falarem da gamificação do trabalho. As atividades gamificadas tornam a prática de trabalho menos onerosa, explica a economista Bárbara Castro. A consequência da gamificação é que a jornada de trabalho é aumentada. 

    Trabalhar vira uma gincana viciante e perigosa. Punições e recompensas estimulam motoristas e entregadores a participar de um jogo viciante com regras que não dominam.  Na série, o sacrifício humano é explícito, o sangue dos sacrificados jorra na tela. Na vida real, esse extermínio seria menos explícito? Sabemos hoje que as condições sociais são determinantes para a morte por COVID-19. 

    Os endividados, os desempregados, os empobrecidos e desalentados foram justamente os que mais morreram. Há outras formas de sacrificar esses corpos. Muitos o são pela polícia, muitos são encarcerados, e outros tantos vagam pelas ruas sem moradia. Há ainda os que se suicidam, sem perspectiva.

     O sacrifício dos perdedores da sociedade neoliberal pode assumir muitas formas. Quando o trabalho vira um jogo, onde você precisa superar limites para ganhar uma recompensa, esse pode ser o caminho para a morte. Uma reportagem sobre as mortes por acidente de trânsito feita em São Paulo revela que as maiores vítimas são condutores de motocicletas. Provavelmente, os incentivos de aumentar a produtividade em horários perigosos como em dias de chuva, acelerou o número de acidentes, muitos deles fatais.

      O neoliberalismo é uma religião fundamentalista que sacrifica corpos humanos no altar do lucro. Qual é a boa notícia? Nenhuma forma de poder é incontestável. Não há motivos para temor, apenas precisamos encontrar as formas de resistência e contraponto a esse domínio.

     O controle exercido pelo neoliberalismo explora a liberdade individual. Ao invés de repressão, opera com a sedução das recompensas, dos likes, das estrelinhas. A dominação é muito eficiente quando se apresenta como liberdade. A grande promessa não realizada dessa liberdade é que essa sustentação pelo eu é insustentável. A epidemia de doenças emocionais, depressões, anisedades, suicídios, revela a insustentabilidade desse individualismo.

     Os pensamentos que se propõem a questionar esse paradigma insistem na necessidade de recuperar o outro, o coletivo.  Nenhum talento individual floresce isoladamente. O individualismo contemporâneo é uma invenção muito recente, e só serve para enfraquecer multidões e torná-las mais vulneráveis à máxima exploração. Por mais que procure iludir com jogos de sedução, o capitalismo só oferece de fato concorrência, individualismo, melancolia e destruição. 

    Outro mundo não é só possível, mas necessário, e as condições técnicas para ele estão dadas. Teríamos condições tecnológicas para que todos os seres humanos trabalhassem poucas horas por dia sem que nenhum ser humano passasse fome. A liberdade individual vendida pelo capitalismo nos leva a pergunta que Humberto Gessinger fez na música Infinita Highway. De que adianta ser livre se tanta gente vive sem ter como viver? A verdadeira liberdade é uma experiência coletiva. Precisamos conquistar a liberdade de que todos vivam sem passar necessidade.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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