Sagu
Gostava de ser mediador, mas isso foi antes. Aprendera na academia de polícia diversas técnicas de pacificação muito úteis nas comunidades. Um idealista. Ao contrário de muitos de seus colegas, que adoravam chegar com o pé na porta e praticar tiro ao pobre, sempre tentava o diálogo
Gostava de ser mediador, mas isso foi antes. Aprendera na academia de polícia diversas técnicas de pacificação muito úteis nas comunidades. Um idealista. Ao contrário de muitos de seus colegas, que adoravam chegar com o pé na porta e praticar tiro ao pobre, sempre tentava o diálogo. Um conciliador. Ficava nos carimbos da papelada ou, no máximo, era chamado quando a PM, durante seu plantão, era acionada para algum conflito de baixa potencialidade. Manda o Sassá, dizia o comandante, ao saber de uma briga de bar, de um gato na árvore, de um furto de mercadoria em algum estabelecimento de miseráveis que vende para gente como eles.
Sargento, tinha poucas possibilidades de subir na carreira. Destoava. Era da paz em uma corporação que, cada vez mais, se tornava violenta. Nos últimos meses os seus colegas estavam ensandecidos, arbitrários, não respeitavam nada, nem ninguém. Todos como o meganha de toga que subiu na vida por méritos próprios, justiceiros, queriam acabar com a bandidada, ainda que por intermédio de métodos pouco ortodoxos. Uma vez viu alguns colegas dividindo o conteúdo de um envelope pardo. Taqui a tua, disse-lhe o capitão. Não obrigado. Como não? Aqui todo mundo leva sua parte, não tem essa de uns ficarem com muito, outros com nada. Não queria. Tentou se sair com uma brincadeira boba. Isso de dividir de modo igual os recursos é coisa de comunista. Pare de frescura, Saraiva, e obedeça, você não é melhor do que todo mundo. É grana limpa, contribuição de um bacana pai de um moleque que caiu com uns papelotes. Não aceitou, jurou que não comentaria com ninguém, emendando que, se aceitasse, estaria puxando deus pela barba, que era crente, temente. Sou capitão, talquei, o tenente é o Queiroz ali. Temente ao todo poderoso, quis dizer. Temente a nada, seu babaca, largue mão, estamos no governo, cretino, aproveitemos nossa janela de oportunidade. Não teve jeito.
Dias depois Queiroz lhe jogou um colete com a ordem. Você vai com a gente. O carro, descaracterizado. Rodaram um pouco, pararam. É ali. Vamos invadir. Distribuiu armas com o número raspado. Saraiva pediu para ficar no carro. Cagão. Vai ficar no carro sim, mas no porta-malas. Dominaram-no e algemado foi colocado lá atrás. Suava, não sabia o que fazer, como se portar. Era leal aos colegas, até entendia o lado deles, mas era diferente. Não se corromperia. Escutou tiros. Uns oitenta. Voltaram rindo. Saíram em disparada. Ele, chacoalhando, assustado, dolorido. Não nasci para isso, pensou. Lembrou de ter ouvido esta frase em algum lugar. Começou a chutar a tampa do porta-malas. Seus colegas gargalhavam.
Freada brusca. Todos descem do carro. Com os colegas, um desconhecido. Civil. Cor de cuia, bigodinho de tódi. Tirem esse lixo daí. Em três, de sopetão, levantaram-no e deixaram-no se estatelar. Durante a queda temeu estar sendo atirado a um buraco, poço ou algo assim. Deu-se com o chão ao mesmo tempo em que sentiu um chute nas costelas. Nome. Perguntei seu nome. Outro chute. Sa-Sargento Sa-Saraiva, tartamudeou. Só faltava ser fanho além de gago. Novas gargalhadas. Nome, eu perguntei. Gu-Gustavo Sararaiva. Os colegas se partindo de rir. Vamos ver se você entende, bonitão, ou está com a gente ou vai acabar com a boca cheia de formigas, Sa-Sa. E assim, virou Sassá. Largaram-no na quebrada. Voltou a pé, para pensar na vida, disse-lhe o miliciano.
Foi enquadrado. Todo o dinheiro da propina, contudo, entregava à igreja. Seus princípios morais não lhe permitiam agir de modo diverso. O pastor, ao saber da origem dos recursos, tranquilizou-o. Deus escreve direito por linhas tortas. Consciência apaziguada, Sassá resolveu se dedicar à conciliação, bom cristão. Cada um tem sua verdade, mas só jesus salva. Dedicava-se a mediar os conflitos para os quais era chamado.
Briga de casal. Sassá e dois soldados foram acionados. Primeira atitude, o dispersar. Todos para suas casas. A vizinhança o ignorou. Na vila não acontece muita coisa. Aquilo era um acontecimento, a criançada correndo. Dois ou três empurrões e todos se foram. Mais ou menos. Ficaram a pouca distância, curiosos. Os policiais chegaram polidamente. Dá licença. No canto um homem ensanguentado, a cara arrebentada. E uma mulher furiosa. Bati nele, sim. Mereceu. O bêbado só gemia e a insultava, cadela, vaca, vadia. Ela tentava avançar nele. Os policiais a continham. A senhora vai ser presa, violência doméstica. Ela devolvia os xingamentos, inútil, corno, paudágua.
Vamos nos acalmar. Sentem-se. Os recos acomodaram o estropiado na poltrona. A mulher não quis. Uma conversa resolve tudo. A senhora não pode bater no seu marido. Esse é um traste. Chegou mamado, eu lavando louça e o cretino veio todo envaretado, se esfregando em mim, há meses esse chifrudo não me procura e, na manguaça, vem fazendo exigências. A senhora se aquiete. Vamos tentar entender a complexidade deste problema.
Vendo um pote na mesa, sem pedir permissão, Sassá serviu-se de generosa porção. Era louco por sagu. Deus perdoaria, é de vinho, mas se colocou-o ali devia ter um plano para a pacificação do entrevero. Com a boca cheia, falou sobre concórdias, desavenças tópicas, temperança. A mulher não conhecia aquelas palavras, mas captou-lhes o sentido. Esse aí só na ripada, não presta. Vagabunda. Silêncio, ela vai falar. Vou te moer no cacete depois que eles saírem, me espere. Pode vir, desgraçada. Tiveram que apartar novamente. Serviu-se de mais sagu. Uma delícia, comentou, perguntando se queriam um pouco, para adoçar a vida e facilitar o diálogo. O bêbado riu. A mulher também. Primeiro sinal de que sua técnica de conciliação estava começando a funcionar.
Vamos resumir os fatos. Ele chegou embriagado, procurou-a com desejo sexual. A senhora não queria, ele tentou estuprá-la. Esse estrume? Nem pra isso serve. Dei uns safanões e esse pudim-de-pinga perguntou se tinha janta. Que fosse comer na rua, safado sem-vergonha. Ela me deu com um porrete na cabeça, seu guarda, depois me encheu de porrada, perdi um dente, olhe aqui, fiadaputa. Moí ele, sim. Dei sem dó. E vou bater de novo. Até acabar com esse lazarento. A senhora não pode. Vai me obrigar a levá-la para a delegacia. O juiz vai dar uma medida protetiva, não vai poder voltar para casa. Vagabunda, vadia, vaca, covarde, bate em bêbado. Vou te matar, guampudo, partindo para cima dele novamente.
A senhora tem razão. Nenhum homem pode chegar exigindo conjunção carnal não consentida, o corpo da mulher é inexpugnável. O meu não capitão. Não tenho doença. Já tive. Ele me passou uma vez, mas estou curada. Os dois soldados assistiam a tudo calados. Sargento, sou sargento, ao seu dispor, quis dizer que ele não pode querer obriga-la a fazer sexo com a senhora se a senhora não quiser. Eu queria. Sempre quero. Ele é que não dá no couro. Hoje eu também queria, mas esse estorvo queria a perseguida só depois de jantar. Quando eu disse que só tinha sagu ele ficou doido. O pingolim duro, grosso, disso eu não posso reclamar, tirou das calças e enfiou no pote de sagu, nesse daí, mexendo e dizendo olha o que eu faço com seu sagu. Meti uma ripada nele e ainda vou matá-lo, onde já se viu um negócio desse.
Os dois soldados racharam de rir. O bêbado e a patroa dele também. Sassá, o conciliador, mandou recolher o gambá na viatura. Ela protestou. Os soldados também, ele é a vítima, disseram. Era, não é mais. Já estava mais calma. Briga todo casal tem. Vão os dois presos então, cada um por um motivo. Para que isso, doutor. Não sou doutor, sou sargento, já disse. Ele é bom, mas hoje fez coisa feia. Aprendeu, né, benhê. Sim, docinho, nunca mais, prometo. Reconciliados.
Sabe o quê? Vocês se merecem. Vamos embora dessa casa de gente louca.
E foi assim que Sassá virou Sagu. Quando perguntado, de Sargento Gustavo, explicava. O conciliador deixou de existir. Levou a ripa ensanguentada e deixou o serviço burocrático. Nunca mais voltou àquela vila. Prefere enfrentar a bandidagem a bala e ripadas. No tiro ao pobre, destaca-se. É um agente da lei, como o irmão em Jesus, de muitas convicções e nenhuma prova, como seus colegas de quartel. A lei é para todos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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