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Paulo Kliass

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

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Sanções à Rússia: um tiro no pé?

"Para isolar Putin, EUA querem banir russos do sistema mundial. No médio prazo, favorecem a aliança Rússia-China e o mundo multipolar", analisa Paulo Kliass

Vladimir Putin (Foto: Reuters)

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A escalada de incertezas na esteira de eventos envolvendo o conflito entre a Rússia e a Ucrânia pode provocar graves consequências para a economia global. Por mais que os grandes meios de comunicação do mundo ocidental insistam em espalhar a narrativa de que a agressão militar começou súbita e inesperadamente no dia em que tropas russas invadiram o espaço ucraniano, os analistas sabem que a realidade é muito mais complexa do que a intenção de transformar a questão em um grande Fla-Flu de dimensão internacional.

Há duas décadas que os Estados Unidos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) vêm criando uma estratégia de isolamento e encurralamento do Rússia, por meio da ampliação do número de países que passaram a aderir ao bloco militar, mesmo após o fim da União Soviética, assim como do bloco liderado por ela, o antigo Pacto de Varsóvia, que foi extinto formalmente em 1991. Contrariando todos os acordos que teriam sido firmados à época entre o dirigente soviético Mikhail Gorbatchev e os líderes dos países do Ocidente, os aliados norte-americanos foram fechando o cerco, promovendo a adesão de uma série de países ao acordo militar e a cartada do ingresso da Ucrânia na OTAN parece ter sido a gota d’água para a Rússia.

A realidade da reação dos líderes dos principais países do mundo ocidental está bem distante das bravatas belicistas proferidas previamente por Joe Biden, mas depois do início do ataque russo foram anunciadas medidas que buscam apertar Putin pelo lado econômico e financeiro. Uma das primeiras sanções refere-se ao gasoduto Nord Stream, que liga a Rússia à Alemanha sob as águas do Mar Báltico, sem passar pelas fronteiras terrestres existentes entre ambos os países. A primeira etapa da obra já está em fase operacional e a intenção é abastecer o mercado alemão e europeu diretamente com gás natural russo. As declarações até o momento dão conta de uma interrupção na segunda fase do projeto, que também já está em estágio de conclusão. Ora, a intenção do projeto executado em parceria entre os dois países era justamente evitar riscos na entrega do combustível e reduzir os custos de transporte. Ao anunciar o boicote, os líderes alemães podem estar criando uma situação nada confortável para a sua própria população e estabelecendo sérias dificuldades de atendimento energético para seu país.

Expulsão do SWIFT

O segundo pacote de medidas veio sob a forma de exclusão das instituições russas das operações financeiras e bancárias internacionais, atualmente realizadas por meio da plataforma SWIFT (Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, vertendo para o português a sigla em inglês). Assim, os bancos russos ficariam impossibilitados de realizarem suas operações rotineiras com o mundo ocidental, bem como foram anunciadas medidas contra o manuseio das fortunas de magnatas russos em todos os continentes. Além disso, por conta desta mesma restrição, boa parte das reservas internacionais de propriedade do Estado russo ficariam congeladas e inacessíveis pelo governo para uso como importante instrumento de sua política econômica.

O total de recursos, constituídos sob a forma de divisas da Rússia, somaria um valor de US$ 640 bilhões. Trata-se de uma quantia bastante significativa, ainda que bem inferior, por exemplo, aos US$3,2 trilhões da China ou ao US$ 1,3 trilhão do Japão. A título de comparação, o Brasil tem acumulados US$ 360 bilhões sob a forma de reservas internacionais. Ocorre que Putin já havia passado por uma situação semelhante em 2014, quando a anexação da Crimeia provocou uma reação por parte de dirigentes de países ocidentais de retirar o país do sistema internacional de compensações. Apesar de tal ameaça não ter progredido à época, a Rússia tomou a iniciativa de criar um sistema próprio, o MIR. No entanto, há dúvidas quanto à capacidade de o mesmo operar como solução eficaz ao banimento do SWIFT.

O fato é que a decisão extrema dividiu governos e grandes conglomerados financeiros e econômicos pelo mundo globalizado. A Rússia é um importante parceiro comercial do mundo ocidental e uma medida como essa deve afetar também interesses de empresas e governos que mantêm negócios com os russos. O país ocupa a 19ª posição dentre os países exportadores, com um volume anual de US$ 380 bi. No que se refere às importações, ele está em 21º lugar dentre os países que mais importam, com um total de US$ 232 bi. Ainda que represente um peso pequeno sobre o volume total das correntes de comércio global, esse fluxo superior a US$ 610 bi anuais afeta de forma expressiva interesses de empresas originárias de países cujos governos estão na linha de frente da implementação de tais sanções.

Sanções podem ser tiro no pé

Caso as medidas de isolamento econômico e financeiro sejam mesmo levadas a efeito pelos próximos tempos, não é impossível imaginar que o novo contexto acabe levando a Rússia a buscar ainda mais apoio junto à China e a blocos de países que também se encontram em situação de marginalidade e insegurança frente aos centros mais importantes do comércio global, atualmente hegemonizado pelos Estados Unidos e por seus parceiros do Atlântico Norte. Com isso estariam sendo criadas as condições que apressariam processos em curso de configuração de sistemas econômicos e plataformas financeiras alternativas para darem conta do escoamento de produtos e serviços de países que não se submetem completamente aos interesses de Washington e de Bruxelas.

Talvez ainda seja muito cedo para tirarmos conclusões mais definitivas a respeito dos impactos das medidas de sanção. No curto prazo, é claro que será alardeada pelos grandes meios de comunicação a narrativa de que as mesmas criaram um caos na economia e na sociedade russas, com filas nos bancos e desvalorização cambial do rublo. Afinal, essa era mesmo a intenção quando elas foram anunciadas por Biden e seus aliados. Pressionar e desmoralizar Putin, obrigando-o a recuar em seu movimento de ocupação estratégica da Ucrânia. Porém, no médio e no longo prazos, talvez essa opção por uma via extremista adotada pelos adversários da Rússia termine por se revelar como uma espécie de tiro no pé. Afinal, quem vai pagar pelos contratos que as empresas e mesmo o governo russo tenham firmado com parceiros econômicos do campo ocidental? Como ficará a garantia de liquidez dos ativos financeiros colocados nos bancos russos e que acabam de serem expulsos unilateralmente do sistema, comprometendo sua credibilidade de forma grave? Afinal, são os próprios gestores do mundo capitalista liberal aqueles que mais bradam pelo planeta afora em defesa da “garantia dos contratos” e contra qualquer tipo de medida intervencionista dos governos em tais mercados.

Vivemos em um mundo que apresenta uma corrente de comércio oficial anual que contabiliza US$ 39 trilhões, correspondentes à soma entre o total de importações e de exportações globais. Nesse universo, a força de Estados Unidos e China ainda segue bastante expressiva. Apenas esses dois países respondem por US$ 8,8 tri dessa corrente total, ou seja, representam quase 23% da soma das exportações e importações globais. A China mantém uma corrente de US$ 4,6 tri e os EUA chegam a US$ 4,2 tri.

Apesar da mútua dependência cada vez mais consolidada, a realidade é que a fotografia atual vem de um filme em que a presença da China foi crescendo paulatinamente. Duas décadas atrás, a corrente chinesa era de apenas US$ 0,5 tri, enquanto a norte-americana apontava US$ 2 tri. Ou seja, o comércio exterior da China cresceu 800% e o fluxo global elevou-se em 180% no período, enquanto o total de exportações e importações dos EUA subiu apenas 100%.

 Por outro lado, crescem em volume e em importância as negociações internacionais que correm à parte do sistema montado em torno do SWIFT. A China tem buscado parcerias com diversos países em que as exportações e importações não passam mais necessariamente pelo dólar norte-americano. No caso das negociações entre China e Rússia, por exemplo, a parcela nas trocas envolvendo yuan e rublo subiu para 44% do total, ao passo que os negócios denominados em dólar representaram apenas 14%.

Caso estejamos mesmo caminhando para um mundo cada vez mais marcado pela multipolaridade, talvez não haja mais espaço para comportamentos liderados pela Casa Branca que reflitam uma tentação de potência imperialista nos modos antigos. Essa é uma das principais indagações a respeito da eficácia de medidas de sanção econômico-financeira, como as que estão sendo praticadas contra a Rússia no momento atual.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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