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    Vinícius Canhoto

    Professor, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo

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    Segunda Chamada: Comentários sobre uma narrativa

    Por fim, pode parecer banal escrever sobre uma série televisiva nesta época regressiva, porém é importante contrapor o discurso narrativo global, com a realidade de milhares de professores que diariamente sofrem violências cotidianas e ataques do poder público, com anuência da sociedade

    (Foto: Divulgação/Globo)

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    Cheguei em casa após mais uma jornada na sala de aula da rede pública estadual. Quando não há futebol, costumo não ligar a televisão, opto por ver algum vídeo no Youtube. Todavia, desta vez, eu tinha um motivo para ligar a TV: a série Segunda Chamada. Meu interesse foi desperto por um único motivo: como a Rede Globo iria apresentar e narrar um universo que conheço tão bem, a escola pública? Minha curiosidade era ainda maior para ver qual a visão narrativa que a Globo traria por meio de sua dramaturgia. Não podemos nos esquecer que a TV Globo mantém por mais de uma década uma série adolescente chamada Malhação, que começou como uma academia (o que justificava o nome da série), mas diante do esgotamento do universo ficcional restrito de uma academia, a série/novela passou a narrar histórias ocorridas em um colégio privado. Houve, recentemente, uma temporada de Malhação, dirigida por Cao Hamburger, que a escola pública foi o foco do folhetim teen, em uma clara tentativa de popularizar, saindo dos banais dramas sentimentais de uma elite, mas que se resumiu apenas a uma cópia global da série Pedro & Bianca, do mesmo diretor, exibida pela TV Cultura. Mas desta vez, a emissora optou por ousar em uma série adulta.

    Explicado meu interesse preliminar, vamos ao primeiro capítulo. Este começa com o retorno de uma professora afastada por depressão. O diálogo dela com sua médica é tão belo e inspirador, quanto inverossímil. Voltar a lecionar após uma depressão ou trauma ou burnout ou qualquer outra doença psíquica provocada pela sala de aula é muito difícil, a realidade que a Globo não mostra apresenta muitos casos de readaptação de função e de suicídio de professores. Entretanto, esta personagem será a protagonista e irá começar a trajetória do herói. E é aqui que começa o problema. Inicialmente a série global optou pela narrativa hollywoodiana do “professor herói” ou “professor redentor”. Poderíamos fazer uma lista longa com exemplos cinematográficos de histórias de histórias que apresentam um professor que, por conta de sua motivação, coragem e força de vontade, muda a realidade de seus alunos. Uma visão deturpada, ideologizada e covarde com os profissionais de educação. É deturpada porque nunca critica a ausência de políticas públicas e investimentos na Educação. É ideologizada porque promove o discurso do mérito individual, da livre iniciativa, da força de vontade de cada indivíduo e não um processo educacional coletivo. É covarde porque joga sobre os ombros do professor uma tarefa que não é individual, mas social e exime as autoridades políticas de suas responsabilidades. 

    Esta professora-heroína, muito bem interpretada por Débora Bloch, tem uma antagonista, a professora de História, que demonstrou ser uma mulher desiludida com a vida pessoal e profissional, que encontrou no uso de drogas (medicamentos) sua válvula de escape. Esta professora, interpretada por Hermila Guedes, é a mais realista das personagens. Conheci inúmeras professoras que se utilizam de medicamentos (drogas) para poder enfrentar as adversidades de uma sala de aula e do sistema educacional. Além desta professora, a série apresentou uma professora de Matemática e um professor de Artes, candidato a professor de Química. No primeiro capítulo a série cometeu um erro grave. Nunca uma escola seria conduzida por apenas três professores e mais um que ainda será incluído. Não se trata apenas de um erro de dramaturgia, mas de completo desconhecimento e descaso com o real funcionamento de uma escola. Além de ter um único diretor, que resolve todos os problemas administrativos da escola e ainda consegue ter tempo para um caso amoroso com a professora-heroína. Não bastasse isso, a série irá mostrar um professor de Artes, que irá lecionar Química, quando na realidade as políticas adotadas pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo têm reduzido salas e desempregado professores.  

    No entanto, estes problemas narrativos não tiraram o brilho das atuações dos atores. Ao optar por retratar um EJA (Escola de Jovens e Adultos), a série é bastante generosa ao mesclar o talento de atores jovens, adultos e idosos. A direção também está muito boa, dialogou de forma criativa com a música AmarElo do Emicida, que por sua vez é um diálogo com a música Sujeito de Sorte de Belchior. Apesar de a trama trazer falhas em sua dramaturgia, as atuações são impecáveis. 

    Por fim, pode parecer banal escrever sobre uma série televisiva nesta época regressiva, porém é importante contrapor o discurso narrativo global, com a realidade de milhares de professores que diariamente sofrem violências cotidianas e ataques do poder público, com anuência da sociedade. O professorado é uma classe que não é econômica e socialmente valorizada. O governo Dória, em particular, tem adotado uma série de medidas administrativas e decretos que precarizam ainda mais a atividade docente. Na Segunda Chamada da vida real, professores são agredidos e assediados e o Estado de exceção não tem cessado de demonstrar as dramáticas cenas dos próximos capítulos. Neste Estado de exceção a luta é a última chamada.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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