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    Rubinho Giaquinto

    Ex-covereador da ColetivA-BH, guitarrista, escritor e professor. Graduado em Licenciatura Educação Musical (UEMG). Foi assessor da Coordenadoria para Assuntos da Comunidade Negra da Secretaria Municipal de Direitos de Cidadania de Belo Horizonte. Coordenou o “Movimento dos Sem Palco”, articulando artistas do Hip-hop, rock, literatura e samba da periferia de Belo Horizonte. Coordenador dos Fóruns Pró-Trabalho na questão racial, pessoas com Deficiência e Juventude do Ministério do Trabalho.

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    Só garotos

    "Estes garotos ricos dando golpe em gente trabalhadora. Um menino de no máximo treze anos, usando a lei para dar um golpe numa trabalhadora"

    (Foto: Valter Campanato/BR)

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    Estudo em uma escola de música localizada em um bairro dito 'nobre'. Dessas denominações mais imperial que ronda nosso mundo contemporâneo. Esse bairro abriga lojas de marcas de roupas e bolsas famosas, ao gosto dos moradores locais. Há também um shopping, que todos dizem frequentado pela fina flor da burguesia. Acho que encontramos mais emergentes neste espaço que qualquer outra coisa. Uma gente que só enxerga o próprio umbigo. Daquelas que acreditam ser o supra sumo da sociedade. Esse shopping, como não poderia de ser, reproduz a sociedade desigual, como mão de obra moradora da periferia e frequentadores ostentação. Existe também um colégio católico, com mensalidades astronômicas, onde estudam os filhos da elite.

    Muitas vezes passo por dentro do shopping para cortar caminho em direção a escola de música. Sempre passo com o olhar atento do vigia, quase sempre, um negro como eu.

    Nesse dia eu estava na praça de alimentação quando ouvi uma discussão. Estranhei, pois eram três meninos com uniformes do colégio católico, um segurança, uma moça da limpeza e outra mulher.

    Um dos meninos gritava, ou melhor, berrava que queria outro sanduíche de qualquer forma. Dizia que a moça da faxina tinha jogado seu lanche no lixo. Fiquei de longe tentando entender o que se passava. Foi quando veio uma atendente de um fast-food e enfrentou os meninos. Estava tudo muito confuso e não conseguia entender de fato o que se passava. Depois de algum tempo comecei a entender o caso. A atendente explicou-me como funciona o golpe dos meninos.

    Eles compravam um lanche em uma loja de fast-food. Até aí, nada demais! Sentavam à mesa e, quando estavam pra terminar o lanche, levantavam e ficavam de longe observando o pessoal da limpeza se aproximar pra limpar a mesa. Nessas praças de alimentação o pessoal da limpeza é orientado para limpar constantemente. Levantou alguém, lá vem o pessoal da limpeza com o pano na mesa. E os garotos, como frequentadores do shopping, conhecem bem este funcionamento. Eles esperavam o pessoal da limpeza retirar os restos do lanche, deixados de propósito, para acusá-los de jogarem o lanche no lixo. Exatamente isso! Estes garotos ricos dando golpe em gente trabalhadora. São garotos inteligentes e conhecem as regras e um pouco das leis. O mais velho deles exigia que a moça da limpeza pagasse outro lanche pra eles. Mas, uma atendente interveio e disse que não era a primeira vez que eles aplicavam este golpe no pessoal da faxina. Eles ameaçaram chamar os pais, caso outro lanche não fosse servido, e um deles disse que seu pai era juiz. Fiquei impressionado com a cena. Um menino de no máximo treze anos, usando a lei para dar um golpe numa trabalhadora.

    Com a confusão estabelecida foi chegando mais gente. E quem se aproximava ficava logo sabendo da história. E ficavam sabendo, estarrecidos, que os garotos aplicavam aquele golpe quase que semanalmente.

    Neste dia eles não tiveram êxito. Saíram revoltados e disseram que iriam tomar 'providências' contra o estabelecimento. Um deles repetia que seu pai era juiz e que isso não iria ficar assim. Aí fiquei imaginando um desses garotos ocupando postos estratégicos na sociedade, pois eles, muito em breve, estarão preparados pros melhores vestibulares e concursos. Saí pensativo em direção à escola.

    Porém, o que mais me impressionou foi o silêncio que se abateu sobre a praça de alimentação, sempre tão ruidosa. Além da atendente do fast-food, não vi mais ninguém defender a trabalhadora da limpeza. Alias, foi com coragem que ela escancarou o golpe que os garotos aplicavam há tempos.

    Entendi o que é a luta de classes na prática. De um lado um silêncio absurdo, e do outro a solidariedade da atendente lutando contra o poder estabelecido. Por outro lado, impressionou-me a conversa de três mulheres, destas frequentadoras de academia, com roupas caras, óculos escuros, cabelo comprido, que indignadas diziam: -Que absurdo o que fizeram com estes meninos lindos. São só garotos!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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