Sob antiga direção
Nova e antiga são palavras opostas, uma não é superior à outra, são apenas diferentes
A gente sempre voltava lá porque o Volte Sempre tinha troco no caixa, preço justo, bons produtos e, a depender da hora, algum sorriso.
Às 8 horas, de segunda à sábado, dona Neide levantava as portas ruidosas portas de lata. Era tão certo quanto o escurecer do fim da tarde. Aliás, às 18 horas, quando a campainha da escola decretava o término da aula, seu Alberto baixava as portas e dava duas voltas na chave.
Um mercado de respeito podia-se dizer. De esquina, perto do ponto de ônibus e da banca, bem sortido. No sufoco do dia a dia ou diante de visita inesperada, a gente corria ao Volte Sempre e encontrava a sobremesa em compota, a caixa de fósforos, a creolina. Até graxa de sapato.
Numa tarde de verão, era quinta-feira, Alberto cumprimentou os estudantes e fechou a porta. Na sexta, dona Neide não apareceu para abrir. Nem sábado, tampouco segunda.
O povo quis saber, entre fofoqueiro e solidário: viagem, descanso? Ou seria falência, luto?
Delmiro e Betânia resumiram o sentimento da vizinhança.
- Não acredito!
- Foi de repente.
- Pra falar a verdade, seu Alberto nunca foi de conversa.
- Mas da Neide eu esperava uma satisfação.
- Marido e mulher no mesmo negócio não dá certo.
- Que nada, trabalharam a vida toda.
- Dava tudo pra saber.
A chegada dos pedreiros transformou a curiosidade sobre o fechamento em ansiedade a respeito da reabertura. Farmácia, igreja, padaria?
Erraram feio. No lugar do mercado... outro mercado. E o nome? Permanecerá Volte Sempre, esclareceu o novo dono, homem jovem e tatuado.
Quem foi à inauguração naquela segunda-feira ganhou pão de queijo com guaraná e percebeu mudanças: mais um caixa, piso novo, câmeras, leitor de preços. Lá fora, um segurança e uma plaquinha na parede: Pet Friendly.
Chamou minha atenção a faixa larga esticada de um lado a outro da esquina. VOLTE SEMPRE. AGORA SOB NOVA DIREÇÃO!
Olhei com atenção, li, reli e confirmei: naquela mensagem, NOVA era mais que palavra. Era promessa a anunciar: “Agora vai mudar”. “Vêm aí novos tempos”. “O VOLTE SEMPRE já é outro”.
Sem ser inimigo das mudanças, eu só queria entender. O que havia de errado com a ANTIGA DIREÇÃO? Porque Nova é apresentada como superior à Antiga? Nova é apenas nova. Pode ser boa ou ruim, da mesma maneira que antiga.
Antiga é palavra de muitos sinônimos, além de velha. Vou ao dicionário, lá estão carcomida, decadente, ultrapassada; no mesmo verbete, surrada, mofada, podre, puída. Quando o adjetivo é usado para definir pessoas, surgem termos como rabugento, caquético, decrépita, caduca, senil. Há ainda expressões como “próximo do fim”,“no crepúsculo da vida”, “ameaçar ruína”, “caindo de maduro”. Lembrei de outras duas bem cariocas, talvez já aposentadas: “maracujá de gaveta” e “já a lhe nevar na serra”.
Quando cheguei a São Paulo, em 1988, conheci um restaurante que anunciava: DESDE 1981. Naquele fim de século XX, soou estranho. Qual a função de informar que o negócio tinha 7 anos de vida? Não entendi, mas ali existia um compromisso de ir mais longe.
As camisetas foram trocadas, as garçonetes mudaram, mas a inscrição continua a mesma: DESDE 1981. Os 7 anos daquele tempo se transformaram em 43.
Nem é tanto assim, no Rio de Janeiro, o Café Lamas passa de um século, na Europa há disputa entre os bares para saber qual merece o título de mais velho. Lá, antiguidade é patrimônio.
Perto deles, o restaurante paulistano de 1981 é uma criança. Porém, nesse tempo, o dono ou dona enfrentou mudanças de moeda, hiperinflação; ganhou e perdeu clientes; ganhou e perdeu funcionários; ganhou e perdeu dinheiro. Se já deixou o negócio, ou a vida, transmitiu conhecimento aos sócios ou herdeiros.
De 1981 pra cá, a equipe aprendeu mais sobre o cardápio, sobre os clientes, e também como corrigir os erros de todo dia. Acredito que melhorou.
Quando posso e o orçamento permite apareço lá. Leio o DESDE 1981, em suas letras vermelhas sobre as camisetas brancas, como se estivesse escrito SOB ANTIGA DIREÇÃO.
Observo o salão e suas rugas. Elas sobrevivem na permanência fiel de alguns funcionários, nas fotos, nos drinques, no bolinho de arroz. O esforço de muitas vidas tornou o lugar um ponto clássico da cidade.
No banheiro unissex o espelho não me engana; pessoas e lugares envelhecem juntos. Sem pressa, seguimos unidos e SOB ANTIGA DIREÇÃO.
O segurança se despede: “volte sempre”.
Como lá no mercadinho da dona Neide e do seu Alberto. Aqueles que nunca mais voltaram.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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