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    Luis Cosme Pinto

    Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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    Sombra

    Se existe um bom lugar para brincar de detetive é a Vila Buarque, no centro de São Paulo

    Sombra (Foto: Luis Cosme Pinto)

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    Em uma aula de escrita criativa, a professora passa a lição de casa, ou de rua: seguir uma pessoa e a partir daí fazer um texto. “Preste atenção ao jeito do personagem, aproveite bem os detalhes e as cenas que só você viu.” Então alerta, “Cuidado, ano passado um aluno quase acabou preso. Ele seguiu uma mulher muito de perto. Ela se assustou e chamou a polícia.”

    A turma silencia, preocupada, e a mestra continua.

    “Parado pela polícia em pleno largo do Arouche, o aluno não sabia o que era pior: contar a absurda verdade ou mentir.”

    O aprendiz preferiu a realidade e quando os PMs se entreolharam, ele telefonou para a professora. A “cúmplice” explicou tudo. Os homens da lei aceitaram, a vítima perdoou e o texto A Acossada ganhou A+.

    Às vezes a história é tão boa que a gente até duvida. Mas, pensando bem, se os policiais aceitaram quem sou eu para encontrar defeito.

    Com a distância necessária, estou na rua e no rastro.  Minha Vila Buarque não decepciona, vivíssima na sua magistral combinação de sotaques, topetes, cores, tipos de roupa. Se há um lugar no planeta bom pra brincar de detetive é aqui.

    Eu podia seguir o pai que pegou a filha na escola. Os dois brincam na calçada quadriculada. Ele pisa na lajota preta e ela pula nas brancas. Desisto. Melhor não atrapalhar tanta felicidade.

    Também podia escolher a moça bonita e musculosa que passeia com seis amigos na coleira. Param mais do que andam em busca de aromas e eu dispenso.

    Até que ele surge. Ele é um homem alto de pernas compridas. A decisão é instantânea: esse é o cara a ser seguido!

    Tênis, calça, camiseta, tudo preto. A mochila é azul, a cabeleira prateada.  O vejo pelas costas. Braços fortes, ombros largos, pescoço grosso. O cotovelo direito tem aquela marca branca de pele ressecada, o esquerdo leva um curativo. Os tais detalhes que a professora tanto aprecia.

    Pelo espelho de uma vitrine, vejo-lhe as bochechas. É grisalho fresco, no máximo 40. Barba rala, óculos grandes de armação redonda, nariz avantajado. Como diz minha amiga Tânia: “esse aí é mais bonito indo do que voltando.”

    Os passos dele são minha bússola e mantenho 5 ou 6 metros de distância. No cruzamento, o sinal de pedestres nos manda parar. Observo o homem sério de pelo menos um metro e oitenta de altura. Ele abre a mochila. Imagino que vá sacar um celular ou uma garrafa de água, nada disso. Pega um caderno, abaixa os óculos até a ponta do nariz, arranca uma folha já escrita e enfia no bolso.

    Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto
    Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto(Photo: Reprodução)Reprodução


     Algo me diz que alcançamos a reta final de nossa trilha. Faltam 50 metros para a estação Santa Cecília, destino da maioria dos pedestres.

    Será no metrô, aonde começam todo dia milhões de viagens, que minha carona vai terminar? Por mais que a brincadeira esteja divertida, não vou entrar num vagão lotado sem saber pra onde.

    De novo, me engano ao pensar com a cabeça do outro. Em vez da estação, o homem entra na banca, paga em dinheiro e leva uma revista semanal. Disfarço e olho meu celular.   

    Sigo na cola, ele troca de calçada, entra no supermercado e então descubro: a folha de papel arrancada do caderno é a lista de compras. O carrinho recebe café, rondeli congelado em promoção, banana prata, laranjas, abóbora. Ele muda de gôndola, eu também. Papel higiênico, esmalte, quatro tubos de pasta de dente. Pai de família? Solteiro precavido?

    Nova surpresa, perto do caixa, ele encontra um casal. Os três veem um vídeo no celular. Pela primeira vez ouço sua voz e risada. Logo ele, que parecia melancólico. E a pressa, acabou?

    Novamente paga em dinheiro. 112 reais em notas e duas moedas. Abandono minha modesta compra, uma água de coco, para não perder tempo. Mas ele abre pelo menos 20 metros de vantagem. Então, lépido como Pernalonga, corre e atravessa. Ônibus, motos, carros, me impedem de pisar no asfalto. Quando o verde enfim acende, a calçada está deserta e quase escura naquele fim de tarde.

    Escafedeu-se. Teria escapado do sujeito que o perseguiu como sua sombra? Ou apenas voltou pros braços da família? Mistério.  

    A você que me seguiu até aqui, valeu o passeio e até semana que vem.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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