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    Flávio Ricardo Vassoler

    Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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    Somos cúmplices?

    "De que cepa é feito o ser humano? Eis o que, há muito tempo, eu me pergunto", inicia Flávio Ricardo Vassoler

    Getúlio Vargas (Foto: Divulgação)

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    De que cepa é feito o ser humano? 

    Eis o que, há muito tempo, eu me pergunto. 

    Getúlio Vargas foi o mandatário que por mais tempo governou o Brasil – seja como líder de um movimento revolucionário (supostamente) antioligárquico, a partir de 1930; seja como ditador do Estado Novo, com simpatias fascistoides, de 1937 a 1945; seja como presidente eleito pela classe trabalhadora organizada, de 1950 até seu fatídico suicídio com um tiro contra o coração, em 24 de agosto de 1954. (Mesmo que seja reeleito para um quarto mandato, em 2026, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não conseguirá ultrapassar a longevidade de Vargas no poder.) 

    Natural de São Borja, no Rio Grande do Sul, o estancieiro Getúlio Vargas bem sabia manobrar à direita, como a mãe dos ricos, e à esquerda, como o pai dos pobres. Em enorme medida, o varguismo se confunde com o trabalhismo e o nacional-desenvolvimentismo brasileiros, como o criador tanto da nossa indústria de base, por meio da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), quanto da maior empresa do Brasil (e uma das maiores empresas do mundo), a Petrobrás. Ademais, o varguismo esteve à frente da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da implementação do Ministério do Trabalho, balizas fundamentais para a dignidade econômica e social da classe trabalhadora no país. Não poucas vezes, o reformismo petista fez loas ao ímpeto modernizante de Getúlio Vargas, estadista que buscava projetar o Brasil como uma grande potência no concerto das nações. Ainda assim, Getúlio Vargas esteve à frente de um dos mais trágicos (e totalmente evitáveis) crimes da história brasileira de meados do século XX.

    Visceralmente anticomunista, Vargas discernia em Luís Carlos Prestes, o outrora líder tenentista da famosa Coluna Prestes, que desafiara as oligarquias regionais e as Forças Armadas por muitos anos, um adversário encarniçado e convertido, perigosamente, ao credo vermelho do Kremlin. Pela lógica maquiavélica de Vargas, Prestes tinha que ser trancafiado. Mas, antes disso, o Estado varguista determina a deportação para a Alemanha nazista de uma de suas prisioneiras políticas, a comunista alemã Olga Benário, esposa de Prestes. 

    Olga, vale frisar, era judia. 

    Quando foi embarcada como cativa no cargueiro alemão La Coruña, Olga estava grávida de sete meses. O clamor humanitário da situação insuflou a suma indignação do próprio capitão do navio, que apelou, em vão, para as premissas do Direito Marítimo Internacional. 

    No porto de Southampton, ao sul da Inglaterra, comunistas ingleses tentaram resgatar Olga Benário das garras do hitlerismo, mas os bem-informados (e muy democratas) agentes do Serviço Secreto inglês (em conluio com a Gestapo?) impediram o sucesso do rapto humanitário e humanista. Em 18 de outubro de 1936, o La Coruña aportava na Alemanha. 

    Em 23 de abril de 1942, a comunista Olga Benário Prestes foi assassinada em uma câmara de gás do campo de concentração de Bernburg, na região centro-norte da Alemanha, junto com outras 199 prisioneiras. À época, já fazia quase um ano que o pacto de não-agressão Ribbentrop-Molotov, assinado entre a Alemanha nazista e a União Soviética, fora violado, uma vez que, em junho de 1941, Hitler dera início à Operação Barbarossa, que visava varrer os comunistas do mapa e, segundo seus próprios latidos, “transformar Moscou em uma represa”. 

    Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo Vargas – isto é, a ditadura direitista do Estado Novo – oscilou entre o Eixo, por cujo autoritarismo o regime brasileiro mostrava simpatias, e os Aliados, considerando-se a enorme pressão dos Estados Unidos para que o Brasil, país pertencente ao quintal do imperialismo ianque, lutasse ao lado das (supostas) democracias liberais. Vargas manobrou junto ao presidente estadunidense Franklin Delano Roosevelt para que os EUA financiassem a construção da CSN, em troca do envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para batalhas em prol dos Aliados na Europa. 

    Com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, a situação do ditador Getúlio Vargas foi se tornando cada vez mais insustentável. Ao fim, o ministro da Guerra do Estado Novo, Eurico Gaspar Dutra, apearia Vargas do poder e se tornaria o primeiro presidente eleito do Brasil após o fim do regime varguista. Antes disso, no entanto, foi estabelecido no Brasil, com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), então recém-colocado na semilegalidade – lembremos que, antes do início oficial da Guerra Fria, na segunda metade da década de 1940, EUA e URSS ainda eram aliados vitoriosos na luta contra o nazifascismo –, o movimento do “Queremismo”, cujo objetivo era a manutenção de Getúlio Vargas (“Queremos Getúlio”) na presidência do Brasil. 

    Eis que, nos palanques do queremismo, desponta, ao lado de Vargas, a figura sumamente popular do “Cavaleiro da Esperança”, alcunha carismática pela qual era conhecido ninguém mais, ninguém menos que o líder comunista Luís Carlos Prestes, viúvo de Olga Benário. (Naquela que talvez seja a mais famosa foto do queremismo, Vargas e Prestes sorriem e dão as mãos em prol da permanência de Getúlio à frente do Brasil.)

    Como é possível que Prestes tenha subido nos palanques do queremismo para defender o assassino de Olga, que, lembremos, estava grávida de sete meses quando fora deportada para a Alemanha nazista? 

    Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1986, assim falou Luís Carlos Prestes: “Não houve aliança (com Getúlio Vargas), houve apoio. Eu estava na prisão ainda e já apoiava o governo do senhor Vargas. Naquela época, o inimigo principal da humanidade era o nazismo. O fundamental, naquela época, era liquidar o nazismo. (...) A UDN (União Democrática Nacional, partido da direita dita liberal), por exemplo, era contra a remessa de soldados à Itália. (Ela dizia que) ‘primeiro temos que acabar com o fascismo no Brasil para, depois, mandar soldados para combater o nazismo na Europa’. Era uma inversão da situação, porque a derrota do Hitler traria consequências para o Brasil, e o Getúlio, a 29 de outubro, cairia, no mesmo ano de (19)45. Então, o fundamental, naquele momento, era nos voltarmos contra o inimigo principal da humanidade. Para isso, nós precisávamos apoiar os nossos soldados que estavam na Itália, os pracinhas brasileiros, e era o governo do Getúlio que alimentava e sustentava esses soldados. Então, apoiar aquele governo era apoiar os pracinhas. Essa foi a minha posição. Eu não faço política com base nos meus ressentimentos pessoais. Eu faço política com base nos interesses do povo brasileiro e tomo posições frente a situações concretas que estamos enfrentando”. 

    No primeiro semestre de 2003, quando eu cursava a disciplina “Introdução à Ciência Política”, em meio à graduação em Ciências Sociais, o professor Nicolau Eustáquio (chamemo-lo assim) lançou mão precisamente da tomada de posição de Luís Carlos Prestes diante de Getúlio Vargas para ilustrar, “à perfeição” (frisa o professor), a atitude maquiavélica – no sentido forte e histórico de tal adjetivo substantivado – de um ator político, para o qual a Realpolitik está acima de quaisquer interesses pessoais (tomado por náusea, eu discernia, como interesses pessoais com rosto e anseios tangíveis, os afetos, juras e amores, o bebê de Olga e Prestes, a fragilidade irrevogável da vida humana que abraçamos como marido e esposa, como pai e mãe). 

    Ora, de que cepa é feito o ser humano? 

    Eis o que, há muito tempo, me deixa perplexo. 

    Conheçam o arquiteto Pedro, a princípio casado com a psicóloga Eva e amigo do advogado Saulo. 

    Filho do engenheiro civil Simão e da pedagoga Guilhermina, Pedro foi formado, em triste medida, em meio ao fogo cruzado de pai e mãe. Como mensageiro da discórdia, Pedro levava recados cheios de arestas de Simão para Guilhermina (e vice-versa). 

    Pedro jamais pôde concordar com Santiago, seu antigo professor de Matemática, para quem a pedra de toque da Geometria era o triângulo equilátero. Para Pedro, todos os triângulos são escalenos ou, no máximo, isósceles, tendo a base mais frágil e assimétrica, sempre, como bucha de canhão. 

    A princípio, a amizade de Pedro e Saulo se mostrou pródiga. Visões de mundo convergentes, a princípio, os aproximaram. Saulo, ademais, passou a ouvir os desapontamentos de Pedro decorrentes de seu longo relacionamento com Eva. 

    Enquanto as confissões de Pedro se mantiveram privadas, isto é, sem a presença de Eva, Saulo ouvia o amigo com atenção e procurava se posicionar, sem cruzar a fronteira farpada do sincericídio, com sentido de justiça e isonomia. No entanto, o estreitamento da amizade começou a fazer com que Pedro e Eva abrissem a caçamba de desavenças à frente de Saulo, como se o forasteiro pudesse ser convertido no baricentro da relação – ou, pior, no pomo da discórdia. 

    – Você não acha que ela está errada, Saulo? – interpelava Pedro. 

    – Veja só como ele é injusto, Saulo! – redarguia Eva. 

    Saulo logo chegou à conclusão de que a máxima “fogo cruzado não dói” só pode ter sido concebida por alguém que nunca se imaginou como terapeuta de casais. 

    Se, a princípio, Pedro e Eva lutavam para converter Saulo no fiel da balança, logo o casal passou a buscar o amigo para o lançamento de dardos com luvas de pelica. 

    – Eva, hoje eu vou tomar uma cerveja com o Saulo e a rapaziada num barzinho lá na Vila da Madalena, e a bebemoração não tem hora certa pra acabar. Não precisa me esperar acordada, tudo bem? 

    – Pedro, o Saulo me disse que tem um cinema novo em Pinheiros, e eu chamei a Camila para vermos, juntas, o novo filme do Godard. Você sabe como eu confio no gosto do Saulo, né? Alias, Pedro, tá mais do que na hora de você pegar umas dicas de roupa com o Saulo, né? 

    Saulo logo se dá conta de que, entre Pedro e Eva, a cobra vai fumar. Como Saulo não tem nenhuma vocação para cachimbo, o jeito é picar a mula. 

    Ocorre que, quando Saulo já estava para deslizar em fuga pela hipotenusa, depois de dobrar habilmente a esquina dos catetos, Pedro lhe telefona, sem mais, numa noite que parecia arrematar mais um dia de armistício: 

    – Saulo, meu amigo, minha mãe acabou de se matar! Me ajuda, irmão, me ajuda!

    No velório de dona Guilhermina, era impossível não se condoer com as lágrimas convulsionadas de Simão, que gotejavam sobre a mãe de Pedro e chegavam a resvalar no filho como pingos salobros de água benta. Num dado momento, Saulo pensou ter notado que a mão direita de Simão, sempre que se aproximava do pescoço lacerado de dona Guilhermina (ela se enforcara), alternava, num zás (e quase que imperceptivelmente, como o piscar de olhos da ilusão), a posição dos dedos suaves que afagam para a posição dos dedos em garra que sufocam. “É impressão minha, só pode ser... Não pode ser!”. (Saulo enxotou o mau agouro de um calafrio que lhe escalou as vértebras com um Pelo Sinal algo cúmplice.) 

    Após o enterro, Pedro, já algo embriagado, fez a Saulo uma última confissão: 

    – Minha relação com a Eva já deveria ter acabado há muito tempo, Saulo, há muito tempo... A Eva me traiu, há dois anos, e eu a perdoei, eu quis perdoá-la, porque meu amor por ela arde muito – quanto mais arde, mais eu gosto dela, meu amigo... 

    Quando alguém é criado à base de mertiolate, chega um ponto em que assopram a ferida não para arrefecer o ardor, mas para que as brasas se incandesçam rumo ao incêndio. 

    Nós somos as cinzas. 

    Nós somos os cúmplices? 

    Pedro pousa a mão direita no ombro direito de Saulo:

    – Saulo, meu amigo... – Pedro como que tropeça a cada sílaba –, Saulo, meu amigo, a Eva... a Eva... (Saulo engole em seco e tenta não arregalar tanto os olhos para matar no peito a pedrada que já antevê.) Saulo, meu amigo, a Eva... a Eva não chegou a dar em cima de você, né? 

    – Nunca, Pedro, de jeito nenhum, velho!

    – E você, Saulo, você, meu amigo, você... nunca chegou.. a dar em cima da Eva, né? 

    Saulo pousa a mão esquerda no ombro esquerdo de Pedro: 

    – Pelo amor de Deus, Pedro, eu tô aqui no velório da tua mãe! Eu juro por Deus que não – nunca, jamais, aconteceu algo entre mim e a Eva, jamais! Como é que você foi pensar isso, de onde? Tira isso da tua cabeça, irmão, pelo amor de Deus, por tudo o que é mais sagrado! 

    Como nos ensina o escritor moçambicano Mia Couto, “o ciúme é um moinho que se move sem vento”. 

    O que acontece com o ciúme, Mia, quando sua mortalha é o luto? 

    O que acontece com o luto, Mia, quando sua mortalha é a culpa? 

    O que acontece com a culpa, Mia, quando sua mortalha é o ciúme? 

    Eis o pêndulo – com o álcool, eis o carrossel – que girava na cabeça de Pedro (e, sorrateiramente, na cabeça de Saulo). 

    Após o devido período de condolências a Pedro, ao longo do qual Saulo se mostrou presente e prestativo, o advogado resolveu se afastar, liminar e cautelosamente, do arquiteto, mas não sem antes lhe recomendar, com a devida prudência fraterna, um terapeuta (Armando) em cujo trabalho confiava muito. 

    Tempos depois, foi por intermédio da terapeuta ocupacional Camila, amiga de Eva, que Saulo ficou sabendo do término do longo relacionamento de Pedro. Camila e Saulo estavam quase dando início a um namoro. Digo quase, pelo fato de Saulo, não poucas vezes, sentir que, no meio do caminho (ou mesmo em seu sapato), tinha uma pedra: não poucas vezes, Camila falava sobre Pedro e Eva, de modo que, separados, eles pareciam estar juntos (e disjuntos) ainda uma vez. 

    Ora, se o triângulo pode ser retângulo, seria sua quarta aresta uma sombra sorrateira?

    Quando Camila aventou a ideia de intermediar uma reaproximação entre Pedro e Eva, Saulo armou a carranca mais contrafeita de que era capaz e pediu truco com um silêncio de poucos amigos. 

    Como Pedro e Eva, com o tempo, deixaram de ser borrifados por Camila (mesmo refugiada no casco, a tartaruga insiste ou não insiste em existir?), Saulo resolveu pedir a moça em namoro. Na madrugada da celebração, Saulo recebe um telefonema de Mariana, sua irmã: “Corre pra cá, Saulo, eu tô levando a mãe pro hospital agora, ela tá passando muito mal!”. 

    Saulo voa até as calças, sem sequer se lembrar das cuecas, e sai, com a camisa no avesso e semiabotoada, deixando Camila na fronteira bígama entre a vigília e o sono. 

    A professora aposentada Dorinha, mãe de Saulo, sofrera um grave derrame, e, quando Saulo chegou, chorando, ao hospital, Mariana e o irmão ficaram se abraçando e rezando, durante muito tempo, enquanto a mãe era submetida a uma cirurgia de emergência. 

    Logo os parentes começaram a chegar. 

    Logo chegou Camila. 

    Logo, para a suma surpresa de Saulo, que passou a lutar consigo mesmo para não discernir em Camila o acolhimento de Monalisa, chegaram Pedro e Eva. 

    Abraçado com a irmã Mariana, Saulo dava a mão esquerda para Camila – e espreitava, com a cauda do olho esquerdo, a prosa contínua (“E animada?”) de Pedro e Camila (Eva saíra para comprar café, mas nada de voltar). 

    Num dado momento, sofrendo muito e abraçado com a irmã pelo infortúnio de sua mãe, Saulo sentiu que, da mão dada para Camila, restava apenas o dedo mindinho como ponte de tábuas.

    Como nos ensina o escritor moçambicano Mia Couto, “o ciúme é um moinho que se move sem vento”. 

    O que acontece com o ciúme, Mia, quando seu véu é a iminência do luto? 

    O que acontece com a iminência do luto, Mia, quando sua mortalha é a culpa? 

    O que acontece com a culpa, Mia, quando seu véu é o ciúme? 

    Quando a médica desceu à sala de espera para dissecar, com o vocabulário de Marte, o quadro clínico de dona Dorinha, Saulo tentou soterrar a avalanche de seus afetos com a esperança do amor filial. 

    De tudo o que a médica explicou, Saulo e Mariana puderam entender que a situação era crítica, mas não deixava de inspirar um riachinho de esperança. 

    Saulo e Mariana decidiram passar a madrugada na sala de espera, no que foram acompanhados, sem pestanejar, pelos parentes mais próximos. 

    Saulo esperava que Camila se prontificasse a ficar com eles (cada segundo de hesitação o rasgava como uma punhalada). Será que Saulo se sentiu surpreendido com o fato de Camila estar conversando (“Confabulando?”) com Pedro e Eva precisamente naquele momento?

    – Saulo, meu bem, eu tentei ligar para o meu chefe, mas não consegui falar com ele. Como faz pouco tempo que eu estou no trabalho – e como nós temos certeza de que sua mãe vai ficar bem –, o que você acha de eu fazer o seguinte: eu vou para o trabalho, pela manhã, explico para o meu chefe a situação e volto logo antes do almoço – tudo bem para você, meu amor? 

    Rilhando os dentes como quem mastiga areia, Saulo responde para Camila:

    – Claro, meu bem, tá ótimo... Muito obrigado pelo apoio incondicional nessa hora tão difícil pra mim e pra minha família... 

    Num zás, Saulo sacou da manga uma ida ao banheiro para se evadir da sala de espera por Camila (e da antecâmara da culpa por dona Dorinha). 

    Na manhã seguinte, a mãe de Saulo faleceu – dona Dorinha sobrevivera à cirurgia, mas não conseguiu deixar de ser soterrada pelas crises pós-operatórias. 

    Saulo e Mariana não conseguiram ver a mãe sem vida e pediram, do fundo do coração, que os parentes os ajudassem. 

    Não houve velório.

    O enterro foi célere. 

    A ansiedade pelo desabamento da dor e do abandono inevitáveis talvez tenha feito com que Saulo e Mariana tentassem driblar o luto se tornando, de uma só vez (e irrevogavelmente), órfãos. (Se não pode com ele, junte-se a ele.)

    Duas horas depois do almoço, quando Camila, acompanhada de Pedro e Eva, retornaram ao hospital, já não havia nenhum sinal de Saulo, Mariana e do restante da família. Já não havia choro e ranger de dentes. 

    Quando, quase um mês depois, Saulo começava a retomar um prenúncio de rotina, como uma tartaruga que esgueira a cabecinha, lentamente, para fora do casco, o rapaz discerniu, em sua caixa de e-mails – vale explicar que, no sítio arqueológico dos anos 2000, as pessoas ainda conversavam por e-mail –, uma mensagem de Pedro, cujo título era “Perdoe Camila, meu amigo, e nossos mais sinceros pêsames”. 

    “Saulo, meu amigo, 

    “Eva, eu e Camila, a quem temos tentado consolar desde que você e dona Dorinha partiram, sentimos muito pelo falecimento de sua mãe, meu amigo, e lhe desejamos os mais sinceros pêsames. Nós três gostaríamos muito de reencontrá-lo e de abraça-lo, para chorarmos junto com você e sua irmã. 

    “Saiba que nós três estamos aqui para você e por você, meu amigo. Meus pêsames, irmão, e que Deus o abençoe!

    “Eva e eu gostaríamos de pedir, do fundo do coração, que você perdoe a Camila. Não sabemos ao certo o que você está sentindo, mas, como não tivemos notícias suas desde então – e como você e a Mariana não só não respondem aos telefonemas da Camila, como talvez a tenham bloqueado (e a nós dois também) no Orkut –, gostaríamos de lhe explicar o que aconteceu depois que a Camila saiu do hospital, quando vocês se viram pela última vez. 

    “Enquanto Eva e eu levávamos a Camila para casa, ela só fazia se flagelar, exclamando e repisando que nunca ia se perdoar por não ter se oferecido para passar a noite no hospital com você e com a Mariana – daí ela dizia que era nova no emprego, que não sabia como o chefe ia reagir e que, se você tivesse pedido para ela ficar, ela teria feito isso na hora, sem titubear. Eva e eu nos entreolhávamos em silêncio e, assim eu sinto, nós quisemos, muitas vezes, levar a Camila de volta para o hospital, mas, naquele estado de nervos, nós achamos melhor, sempre em silêncio entreolhado, levá-la para nossa casa e deixá-la dormir, coisa que, ao fim, ela só conseguiu fazer tomando os remédios da Eva (nós lhe contamos certa vez como os remédios da Eva são cavalares, lembra?). 

    “Em decorrência dos remédios, Saulo, Eva e eu achamos melhor deixar a Camila dormir até que a cavalaria passasse. Afinal, havia boas chances para a dona Dorinha, segundo a médica nos informou, e nós três poderíamos retornar ao hospital, juntos, para reencontrar você e a Mariana. Foi o que, ao fim, nós fizemos, mas, quando lá chegamos, já não havia ninguém.

    “Eva, Camila e eu pensamos em ir até a sua casa, Saulo, mas, como você permanece incomunicável também no Orkut  – pedimos a amigos em comum que verificassem sua página, e nenhum scrap, de fato, tem sido postado –, nós vamos, é claro, respeitar os seus sentimentos, meu amigo. O exílio também é uma forma de atravessar o luto. 

    “Se você não puder perdoar a Camila como namorada, meu amigo, se não quiser mais ficar com ela, peço que você a perdoe como amiga. Ela tem sofrido muito, Saulo, e um aceno seu poderia aliviá-la demais.

    “Eva e eu sentimos muita falta de conversar com você, meu amigo. E isso desde antes da triste partida da dona Dorinha – meus pêsames mais uma vez, Saulo, que Deus o abençoe!

    “Nesse meio tempo, aconteceu algo muito inusitado, meu amigo: no início, Eva e eu consolávamos muito a Camila – por vezes, precisávamos até nos revezar. Depois, com um paulatino retorno de Camila ao nosso mundo, foi ela, com muita sensibilidade, quem passou a ajudar muito a relação entre mim e a Eva, e nós dois (pelo apoio da Camila, quase escrevo “nós três”) não discutimos há bastante tempo, sendo que, recorrentemente, nós nos lembramos dos bons momentos pelos quais você nos ajudou a passar. 

    “Queremos muito lhe dizer tudo isso face a face, mano a mano, à distância de um abraço. Estaremos aqui sempre e quando você quiser falar conosco, meu amigo.

    “Meus pêsames por sua mãe, Saulo. Que Deus abençoe a dona Dorinha, você e a Mariana. 

    “Perdoe a Camila, meu amigo. 

    “Grande abraço, 

    “Pedro (Eva e Camila)

    “P.S.: Há não muito tempo, eu cheguei à conclusão de que podia me dar alta da terapia com Armando, o excelente psicólogo que você me recomendou. Se, por um acaso, você sentir vontade de retomar as sessões com ele, estará tudo bem por mim, meu amigo. Nesse caso, Armando passa a ser não um cúmplice, mas uma importante testemunha”. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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