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    Armínio Westermann

    Analista político

    10 artigos

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    Subsídios para a compreensão da questão militar no Brasil

    Ensaio sobre a questão militar, por Armínio Westermann

    Preparativos finais para o desfile de 7 de Setembro, na Esplanada dos Minist鲩os. (Foto: © Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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    1) Os contornos da questão militar 

    Os militares não questionam o empenho de Lula em dotar as forças armadas de meios adequados de ação contra potenciais inimigos externos. É reconhecido que Lula não apenas buscou reequipar as forças armadas; incumbiu-as, ademais, de tarefas de relevo no plano internacional, a exemplo da missão de estabilização do Haiti. Envolvendo-se em complexas missões de paz, o Brasil procurou mostrar-se apto a assumir responsabilidades de grande potência, de modo a justificar sua aspiração a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O investimento no plano multilateral fazia parte de uma política abrangente de defesa da soberania nacional, na qual se combinavam fatores econômicos, diplomáticos e militares. O Brasil não buscava papel de maior relevo no plano internal por veleidade. A alteração do perfil internacional do Brasil tornava-o menos sujeito a pressões. Dotado de maior autonomia o país pôde, por exemplo, estabelecer o "regime de partilha" na exploração do pré-sal, a despeito da oposição de grandes petrolíferas internacionais, que desejavam a manutenção do "regime de concessão”. O regime de partilha fortaleceu não apenas a Petrobrás, cujo valor de mercado sextuplicou de 2003 a 2014, mas também toda a cadeia produtiva do petróleo, a começar pela indústria naval nacional, por décadas abandonada.

    Viabilizar o desenvolvimento nacional, a despeito de pressões internacionais em sentido contrário, tornou-se o objetivo central da política externa brasileira. Esperava-se das forças armadas contribuição equivalente, mas os militares, alçados a posições de destaque no plano internacional, não tardaram a voltar os olhos para o plano interno. Não é casual que os generais que lideraram as tropas brasileiras no Haiti componham agora o núcleo do governo Bolsonaro. Esperava-se que o "soft-power” amealhado pela diplomacia brasileira, combinado ao “hard-power” das forças armadas, alteraria definitivamente o status do Brasil, abrindo espaço para o pleno desenvolvimento econômico e social. Supunha-se passada a época em que o Brasil batalhava, inutilmente, para ser reconhecido como força auxiliar do projeto unipolar estadunidense. Imaginava-se que, no mundo multipolar emergente, o Brasil teria o status, ao menos, de potência-média, com autonomia suficiente para regular a exploração de seus  vastos recursos naturais à luz dos interesses e necessidades de sua população.

    No entanto, as forças armadas brasileiras acabaram por sublevar-se. A projetada articulação dos fatores de poder nacionais deu lugar a um situação insólita na qual as forças armadas, desdenhado tarefas “meramente” militares, imiscuem-se em quase todas as demais áreas da administração pública, como se o país já não dispusesse de uma ampla burocracia especializada. Enquanto isso, atividades propriamente militares são relegadas ao segundo plano.

    Temos hoje, em resumo, um governo militar que ignora assuntos militares. Mas tivemos, até 2016, um governo civil que via nas forças armadas um elemento indispensável para o desenvolvimento nacional. Um governo civil, cabe recordar, liderado por figuras que se notabilizaram pela oposição à ditadura militar. Como entender esse paradoxo? Esses são os contornos da questão militar no Brasil. A liderança civil procura dotar o Brasil de poderio militar compatível com seu peso, com vistas à auto-defesa e ao desenvolvimento. A liderança militar, por outro lado, não dá mostras de preocupação com a evidente debilidade do “hardware” militar brasileiro: a Marinha parece não se importar com o estado de penúria em que se encontra nossa indústria naval; a Aeronáutica pouco fez para evitar a pretendida venda da Embraer para a Boeing; o Exército, entrincheirado em gabinetes, reserva sua valentia, outrora demonstrada nos campos de batalha da Europa, para intensa atuação nas redes sociais. Se a indisponibilidade de meios pouco importa, não espantaria que o Brasil viesse a criar, a exemplo dos Estados Unidos, uma “Força Espacial”. Se podemos ter Marinha, a despeito de não termos um porta-aviões, a ausência de foguetes não deve inibir a criação de uma força nacional dedicada à exploração imaginária do espaço sideral. 

    2) A origem da perspectiva tutelar

    A predileção das forças armadas do Brasil por assuntos domésticos é conhecida. Pode-se atribuir a origem desse defeito ao modo como foi proclamada no Brasil a república. A participação dos militares brasileiros nesse processo foi analisada em páginas celebres por Eduardo Prado, num conjunto de artigos publicados entre 1889 e 1890 sob o título “Fastos da dictadura militar no Brazil”. Fasto quer dizer soberba, presunção ou ostentação. A ditadura militar a que Prado se refere é a instalada pelo Marechal Deodoro com a deposição de D. Pedro II. Brazil está escrito com Z no título porque assim, com frequência, se escrevia Brasil até o início da década de 1930.

    Prado dedica várias páginas a denunciar que, sob um governo militar, o Brasil cedeu à Argentina quase 1/3 de Santa Catarina. A doação apenas não se consumou porque o congresso nacional recusou-se a ratificar o tratado oferecido ao governo portenho por Quintino Bocaiuva, primeiro ministro de negócios estrangeiros da república. Quando até mesmo militares passaram a questionar a concessão, o governo de Deodoro alegou que o tratado assinado era secreto e procurou esquivar-se do tema. Prevaleceram, por fim, os interesses nacionais, mas, para a história, Prado registra que, "estando o Brasil inteiramente sujeito à espada de um general, e sendo o governo militar, o território brasileiro, zelosamente conservado intacto durante sessenta e oito anos de governo civil, [foi] cedido, em parte, quando governa[va] o exército, cuja missão única é a defesa do solo da pátria”.

    O que então interessava ao exército, se com tanta liberalidade negociavam-se porções do território nacional? Antes de lançar luz sobre potenciais motivações ocultas, Prado chama atenção à espantosa ingenuidade dos primeiros estrategistas republicanos — ingenuidade que ainda hoje visível nos mais altos escalões. Sendo a Argentina uma república e tendo o Brasil adotado o regime republicano, Deodoro e Bocaiuva imaginaram que os dois países formariam uma aliança das mais estreitas, não cabendo com relação àquele país a prudência que seria natural com relação a qualquer outro. O governo provisório imaginou, nesse contexto, que não seria má idéia ceder à Argentina o antigo território das “Missões” — incorporado ao território nacional, por força do Tratado de Madri, desde 1750! — sob a condição, tal como afirmou-se amplamente na época, de que, caso o Rio Grande do Sul se sublevasse contra o novo regime, Buenos Aires enviaria tropas ao Brasil em apoio a Deodoro. Justificava-se uma concessão territorial com argumento de que, em caso de necessidade, tropas estrangeiras ingressariam no território pátrio para forçar brasileiros à submissão. Um desvario justificava o outro.

    Embora a passagem do tempo quase tudo apague, esse é um dos maiores escândalos da história brasileira, apenas equiparável ao estratagema formulado em 1964, segundo o qual, caso houvesse resistência significativa à deposição de João Goulart, o governo norte-americano poderia, a convite do Marechal Castello Branco, desembarcar tropas no Brasil.

    Mais de uma vez, portanto, as forças armadas do Brasil cogitaram permitir a entrada de tropas estrangeiras em território nacional. Nas duas vezes, no bojo de golpes militares. E, nos dois casos, em situações de clara resistência, por parte da elite econômica, a transformações sociais. O primeiro mandatário deposto foi D. Pedro II, um ano após a abolição da escravatura e numa altura em que já entrevia o terceiro reinado, a ser chefiado por Isabel, não apenas uma mulher, numa época em que patriarcalismo prevalecia inconteste, mas justamente a signatária da Lei Áurea. O segundo foi João Goulart, retirado do poder imediatamente após anunciar as “reformas de base”. 

    Em vista disso, podemos voltar à questão acima apresentada: se assuntos militares são relegados pelos militares a um segundo plano, quais são as prioridades das forças armadas brasileiras? A avaliação de Eduardo Prado não apenas lança luz sobre o passado. Lamentavelmente lança também luz sobre os dias atuais. Ele nota, em primeiro lugar, que o governo de Deodoro, tão logo instalado, tomou a decisão de dobrar o tamanho das forças armadas. Mas, para quê duplicar o tamanho das forças, se, no que diz respeito a defesa do território, o governo republicano demonstrava tamanha despreocupação? A resposta dada por Eduardo Prado vai ao coração da questão militar brasileira:
    "A contradição flagrante de um governo que dobra o seu exército ao mesmo tempo que pratica atos de espetaculosa fraternização com os seus vizinhos, tem uma explicação bem triste para o Brasil. – O governo militar não se arma contra o estrangeiro; o que ele pretende é fortificar-se contra o próprio povo brasileiro, mantido em rigorosa sujeição. O governo militar precisa de mais soldados porque necessita dar mais postos a oficiais; precisa de mais navios para ter comandos a distribuir.

    Um exército movido de patriotismo marcha ao sacrifício, afronta o inimigo, sem pensar na recompensa; um exército que derruba instituições e que cria um governo exige tudo da sua criatura. Era desse tipo o exército peruano; exército de pronunciamientos, de plumas e galões, que vivia a salvar todos os dias a pátria, de aclamar generalíssimos, a encher-se de marechais e generais e que, finalmente, fugiu, dispersou-se, sumiu-se diante dos voluntários chilenos."

    Naturalmente, isso não é assumido de forma explícita pelas forças armadas, ou mesmo, pode-se supor, de forma plenamente consciente. A oficialidade brasileira, sob a influência de Benjamin Constant, desenvolveu, já antes da deposição de D. Pedro II, um ideário bastante peculiar, mas ainda hoje muito influente nos quartéis para justificar a intervenção militar em assuntos internos. A título de amostra, segue abaixo o preâmbulo de um decreto de 1890 que trata da reorganização do ensino nas escolas do exército. Pede-se ao leitor atenção, embora o trecho seja longo. Ainda hoje, e logo se compreenderá porque, a autonomia da escolas militares é um dos “pontos de honra” apontados por importantes lideranças militares brasileiras para justificar a oposição, velada ou aberta, ao Partido dos Trabalhadores:

    “O generalíssimo Manuel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exército e Armada, em nome da nação:

    “Considerando que é de urgente e indeclinável necessidade aperfeiçoar e completar tanto quanto possível o ensino nas escolas destinadas à instrução e educação militar, de modo a atender aos grandes melhoramentos da arte da guerra, conciliando as suas exigências com a missão altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que de futuro está destinada aos exércitos no continente sul-americano;

    “Considerando que o soldado, elemento de força, deve ser de hoje em diante o cidadão armado – corporificação da honra nacional e importante cooperador do progresso como garantia da ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem-intencionado das instituições republicanas, jamais instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e inconsciente que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral;

    “Considerando que para perfeita compreensão deste elevado destino no seio da sociedade como o mais sólido apoio do bem, da moralidade e da felicidade da pátria, o militar precisa de uma suculenta e bem dirigida educação científica, que o preparando para com proveito tirar toda a vantagem e utilidade dos estudos especiais de sua profissão o habilite pela formação do coração, pelo legítimo desenvolvimento dos sentimentos afetivos, pela racional expansão de sua inteligência, a bem conhecer os seus deveres não só militares como principalmente sociais;

    “Considerando que isso só pode ser obtido por meio de um ensino integral onde sejam respeitadas as relações de dependência das diferentes ciências gerais, de modo que o estudo possa ser feito de acordo com as leis que têm seguido o espírito humano em seu desenvolvimento, começando na matemática e terminando na sociologia e moral como ponto de convergência de todas as verdades, de todos os princípios até então adquiridos e foco único de luz capaz de alumiar e esclarecer o destino racional de todas as concepções humanas,

    “Resolve reorganizar o ensino nas escolas do Exército pelo regulamento que baixa com o presente decreto e, onde são atendidos todos os meios para levantar o nível moral e intelectual do Exército, pondo o soldado brasileiro a par dos grandes aperfeiçoamentos da arte de guerra em suas múltiplas ramificações sem desviá-lo de seus deveres como cidadão no seio do lar e no seio da pátria.

    Palácio do governo provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, em 14 de abril de 1890. – Manuel Deodoro da Fonseca. – Benjamim Constant Botelho de Magalhães.”

    Eis aí a certidão de nascimento da disposição tutelar dos militares brasileiros. Atribuindo-se, com extraordinária auto-indulgência, uma "missão civilizatória” o exército nacional trata, explicitamente, tarefas militares como secundárias. Seus deveres, nas palavras, de Benjamin Constant são "principalmente sociais” e a necessidade de se aperfeiçoar na arte da guerra não deve "desviá-lo de seus deveres como cidadão”!. O leitor desavisado pode não se dar conta da gravidade do que se afirma. Recusando e denunciando como vexatória a "obediência passiva e inconsciente” o exército toma para si o direito de julgar o que lhe cabe fazer, proclamando-se, portanto, um poder independente, não sujeito ao comando civil!

    Contra a revisão desse postulado ante-diluviano que não encontra paralelo no mundo civilizado, mas encontra eco, talvez, em lugares como Myanmar, as forças armadas brasileiras ainda hoje batalham. No decreto de Benjamin Constant reside a justificativa não apenas para o golpe de 1889 mas também para o golpe de 1964; não apenas para o tweet do general Villas Boas em 2018, mas também para a presente ocupação de grande poder do poder civil no plano federal por militares. 

    Daí porque a disputa, agora quase esquecida, em torno da “Comissão da Verdade” não é meramente historiográfica. Os militares relutam em rever o passado porque ainda se vêem no direito de repisar os mesmos argumentos e novamente intervir contra a autoridade civil, se assim lhes parecer necessário. Nesse sentido, torna-se compreensível o esforço dos militares, com maior força nos últimos dois anos, no sentido de tratar 1964 não como uma nódoa mas como um precedente positivo. Isso, fora do ambiente da caserna, é plenamente incompreensível, mas, para parte das forças armadas, não há contradição entre a participação do Brasil na Segunda Guerra, em oposição ao fascismo, e o golpe de 1964, pelo qual se instaurou no Brasil um regime fascista.

    Com efeito, no imaginário militar, elaborou-se uma bizarra equivalência entre a louvável participação na Segunda Guerra Mundial e a vexaminosa participação no golpe de 64. Tudo se passa como se o glorioso exército que ajudou a derrotar Hitler tivesse também ajudado a derrotar Stalin, por meio da deposição de João Goulart e do posterior assassinato de centenas de brasileiros que se insurgiram contra a ditadura. Argumenta-se, sempre de forma elusiva, posto que jamais houve qualquer atitude concreta nesse sentido que possa ser apresentada como prova, que o Brasil estava a um passo do comunismo, de modo que uma ditadura teria sido implantada “em defesa da liberdade”. 

    A lógica da Guerra Fria, aplicada ao terceiro mundo, deu origem a uma missa rezada ao contrário, e o Brasil não deixou de oferecer sua contribuição ao grotesco fenômeno: em nome da democracia, cassavam-se mandatos; em nome da liberdade, fechavam-se jornais; em nome do cristianismo, legitimou-se a tortura; em defesa da pátria, aboliu-se a política externa brasileira e implementou-se a política de alinhamento automático com uma potência estrangeira. Como de uma guerra se tratava, aboliram-se os escrúpulos. As mais abjetas violações de direitos humanos passaram a ser justificadas sob o argumento de que na "guerra" tudo é permitido, o que, no entanto, está longe de ser verdadeiro, pois também a guerra tem regras, a começar por aquelas ditadas pela honra (respeitar o adversário, usar a força de modo proporcional, proteger civis, etc). 

    O absurdo da pretensão de tutela, o desvario na reconstrução da história e as distorções daí decorrentes já haviam sido notadas por Eduardo Prado. "A ditadura brasileira”, ele ressalta, "no decreto destinado a reorganizar o ensino militar, começa condenando a obediência passiva do soldado. Começa”, portanto, "pela destruição da base de toda a organização militar, porque ou é passiva ou já não é obediência. Assim, o tenente-coronel [Benjamin Constant] (…), entende que os oficiais e que os soldados dos exércitos de todos os países civilizados do mundo, educados, enobrecidos e fortificados na escola da abnegação, que é a da obediência passiva, têm o caráter rebaixado, são instrumentos servis e têm o moral abatido!! Todos, sem exceção, alemães, ingleses, franceses, americanos, chilenos, italianos, portugueses, todos os soldados do mundo, são umas miseráveis criaturas. (…) O redator do preâmbulo não tolera os militares que se contentam com as glórias puras da sua nobilíssima profissão”.

    Prado arremata sua análise com palavras proféticas, ainda melancolicamente adequadas à situação do Brasil, embora já passados mais de 130 anos do movimento militar que forçou ao exílio D. Pedro II:

    "Em todos os países cultos e livres, aprende-se nas escolas que todos os poderes são delegações da nação, que o povo é soberano e governa-se a si mesmo por meio dos seus representantes livremente eleitos. À geração nova no Brasil, a ditadura está ensinando que o Exército e que a Armada têm o poder de destruir e de constituir governos, aviltante monstruosidade que envenenará por muitos anos a consciência nacional."

    3) Bacharéis de espada 

    Os militares brasileiros, em resumo, se vêem primordialmente como "guardiões" da ordem interna. A doutrina militar brasileira não olha para fora. Os militares brasileiros formam uma espécie de igreja ou burocracia armada, preocupada não com a salvação do país, mas com o policiamento dos costumes e das fronteiras entre as classes sociais. Temos, justamente por isso, um exército sem raison d'état, inocente em questões de estratégia e soberania, que compensa a inação no plano prático-militar, com ação desmedida no plano sociológico-político. Também esse fato não escapou à atenção de Eduardo Prado. Notou ele, com agudez, que "a profissão das armas, que é, no Brasil, quase que uma profissão sedentária, porque no regime dos quartéis não há os rigores viris da disciplina, nem o hábito fortificante dos exercícios enérgicos, como nos exércitos europeus”. 

    O governo monárquico, analisa Prado, "cometeu um erro imenso deixando ao ensino militar o seu caráter exclusivamente teórico. O Sr. D. Pedro II, tão ocupado das ciências, não fez senão abacharelar o oficial do Exército que agora naturalmente revela um tão pronunciado furor politicante, discursante e manifestante”. Daí porque "muitos dos oficiais brasileiros são apenas bacharéis de espada”. Como tais, mais preocupados estão com progredir na carreira do que  em fazer avançar interesses nacionais, mesmo quando alegando o cumprimento de elevada missão tutelar civilizatória.

    Se o resultado para o país é negativo, pouca importa. "A ditadura brasileira”, diz Prado, ainda analisando o governo de Deodoro, "nasceu de um pronunciamiento; e a longa experiência de todo este século tem mostrado o que são as finanças dos países de pronunciamientos. Um escritor define o pronunciamiento da seguinte forma: 'O pronunciamiento é um movimento militar que, quando bem-sucedido, faz avançar de posto todos os militares que nele tomam parte’. E não faz mais nada de útil.” É impossível deixar de associar essa avaliação à atual gestão militar à frente de diversos ministérios e estatais.

    4) A despeito das forças armadas, a defesa da Nação

    Poder-se-ia perguntar: se as forças armadas não se ocupam da defesa nacional, como pode o Brasil estar em pé? Com relação à Amazônia, região supostamente cara aos militares, quem mais fez, sem dúvida, foi o Barão do Rio Branco, que impediu, com o Tratado de Petrópolis, em 1903, a instalação de forças norte-americanas no atual Acre. Convém revistar o episódio. A Bolívia, a quem o território do Acre até então pertencia, planejava “arrendar" a área a um grupo de empresários norte-americanos. Rio Branco, já sob a liderança civil de Rodrigues Alves, comprou o território no bojo de uma delicada negociação e impediu o que poderia ter sido o início da ocupação neo-colonial da América do Sul, por iniciativa dos EUA. Na África e na Ásia, no mesmo período, o neo-colonialismo avançava a passos largos, de forma violenta, por iniciativa européia. 

    É também digna de menção, nesse contexto, a vitória obtida por Rio Branco contra França na questão do Amapá, em 1900. Impediu-se, por meio dessa improvável conquista, que uma potência neo-colonial ocupasse uma das margens da foz do Amazonas. O compartilhamento da foz permitiria à França criar obstáculos ao acesso de brasileiros ao interior de toda a região norte do Brasil. Como na época não havia aviões e o acesso por terra era quase impossível, o eventual bloqueio do acesso fluvial na prática separaria a Amazônia do restante do Brasil. É fácil minimizar conquistas de outras eras. Mas, sem o empenho da diplomacia brasileira, o Brasil poderia estar hoje brutalmente reduzido. Como notou Rubens Ricupero, "não se tem idéia, nos dias que correm, do que significava então a um país sem poder como o Brasil enfrentar uma das três ou quatro mais fortes e agressivas potências do mundo como a França. Vivia-se a fase áurea do imperialismo europeu, quando a dívida externa era cobrada a tiros de canhão e os europeus não hesitavam em recorrer à violência para promover interesses econômicos”. Naturalmente, o próprio Rio Branco seria o primeiro ressaltar a importância das forças armadas para a  diplomacia e para a defesa da integridade nacional. No entanto, não foi talhado para a defesa nacional o exército criado por Deodoro e Benjamin Constant.

    Continuamos, portanto, forçados a improvisar. A liderança civil, hoje como no passado, precisa ocupar-se da defesa nacional, enquanto as forças armadas continuam incapazes de ocupar o honroso papel que a Constituição lhes reserva. 

    5) O brasão da república 

    O brasão da república, símbolo maior do estado brasileiro, carrega a legenda: “15 de novembro de 1889”. Uma espada o atravessa. O símbolo pseudo-espartano idealiza e enaltece uma agressão. Quando o Brasil lograr liberar-se da “aviltante montruosidade” de que falava Eduardo Prado será necessário rever, entre muitas outras coisas, esse símbolo, talvez resgatando aquele que ilustrava nossos documentos oficiais quando foi proclamada a independência nacional e quando foi declarada extinta a escravidão, duas obras do Império às quais, mal ou bem, o Brasil deve sua existência como Estado e como Povo. Sobre tais bases, ainda que inicialmente precárias, é possível construir e avançar. Desvarios e auto-enganos, ainda que perdurem por muito tempo, não se tornam por isso menos nocivos — apenas atrapalham, mistificam e colocam o Brasil, periodicamente, em rota do colisão consigo mesmo. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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