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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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Tal como a salamandra regenera seus tecidos decepados, os gaúchos tentam regenerar seus corpos e almas

Resta-nos ser resilientes no processo de regeneração de nossos tecidos decepados no corpo e na alma pelos maus tratos recebidos pelos governos neoliberais

Enchente em Porto Alegre (Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini)

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Inicio este artigo, lembrando de um trecho do livro de Érico Veríssimo, “Solo de Clarineta II”. Ao ler esta obra há muitos anos atrás, lembrei-me de imediato do nosso atual estado de regeneração diante da tragédia climática que nos abala.  

A metáfora utilizada por Veríssimo para explicar a profunda saudade que tumultuava seu coração ao despedir-se de sua filha Clarissa, que migrava para os Estados Unidos definitivamente, se parece muito com os atuais sentimentos do povo gaúcho. Disse Veríssimo: 

"Ao deixar o aeroporto, de volta para casa, veio-me à mente a figura de Lord Tantamount, o biólogo amador do Contraponto de Huxley, que costuma cortar o rabo de salamandras para observar depois como se regeneravam os seus tecidos e elas recuperavam a parte mutilada de seus corpos. Que tipo de salamandra psicológica seria eu? Quanto tempo levaria para me refazer da mutilação sentimental que acabara de sofrer?" (Solo de Clarineta, v.2,1976, p.2)

Tal como Veríssimo, a partir da tragédia que estamos vivendo em nosso Estado, fiquei dias tentando regenerar a salamandra psicológica que existe dentro de minha alma para poder expressar os meus sentimentos de indignação neste texto.

Em meio a materialidade da tragédia que abate o Rio Grande do Sul, temos convivido com ações genuínas de solidariedade aos desabrigados. Entretanto, em sentido contrário, também assistimos o pior do ser humano com os saques às residências submersas, com a venda das doações por golpistas inescrupulosos. Além dessas mazelas, temos recebido pelas redes sociais uma overdose de informações mentirosas, que atrapalham o trabalho de mitigação do caos pelo órgãos de governo. Vivenciamos os extremos entre o bem e o mal. Felizmente as boas ações têm superado as más.

A desolação atingiu não só a vida material dos gaúchos, mas as suas almas decepadas pelo abandono social ritmado pelo propalado Estado mínimo.

Como gaúcha, embora não tenha sofrido perda de familiares e não tenha tido avarias materiais, eu, como os demais conterrâneos adoecemos emocionalmente. Entramos no modo automático para seguir em frente e fazer o que estava ao nosso alcance. 

Senti-me tão deprimida, que havia perdido a vontade de escrever. Um ato que me move à vida. A expressão escrita, que sempre utilizei no exercício de meu ofício como educadora e operadora do direito, permaneceu, por dias a fio, silenciada. Fiquei inerte neste aspecto, me perdi em emoções tristes que me corroeram e me sufocaram. 

Essa letárgica tristeza tomou conta do povo do extremo sul do país. Ficamos atônitos pela devastação, pelos irmãos e irmãs afogados na avalanche violenta das águas dos rios, que reagiram aos maus tratos pela irracionalidade dos especuladores financeiros da natureza.   

As ocupações desordenadas pelos desvalidos em áreas de risco, como única possibilidade de moradia, aumentou sobremaneira a tragédia, denunciando de uma vez por todas o desprezo dos possuidores e governantes neoliberais pela vida dos despossuídos. 

Os bairros empobrecidos de Humaitá e do Sarandi desnudaram o descaso da administração municipal de Porto Alegre com seus habitantes menos favorecidos. Os moradores desses bairros, entre outros da periferia de Porto Alegre, que não esquecem de pagar religiosamente seus impostos, nada receberam como contrapartida do governo municipal, serviços públicos estruturais que lhes assegurasse o livramento dos graves danos que sofreram em suas vidas materiais e emocionais.  

Não cabe relatar neste texto as notícias divulgadas milhões de vezes pela mídia. Quero registrar aqui somente a minha absoluta revolta por essa tragédia anunciada. Nada foi feito pelos atuais governos neoliberais do Rio Grande do Sul. 

Em 2012, durante o governo da Presidenta Dilma, várias propostas foram aprovadas para o desenvolvimento de projetos preventivos contra inundações no Estado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Uma década se passou e nada foi feito. A promessa de projetos que impediriam os transtornos ocorridos neste ano transformaram-se em letras mortas. 

Convém salientar, que as divulgações pelos meios de comunicação hegemônicos foram assumindo, em parte, contornos mais transparentes, na medida em que a enchente atingia   os bairros das classes abastadas. 

A afilhada da Rede Globo no Rio Grande do Sul, a Rede Brasil Sul (Grupo RBS) começou timidamente a contrapor as desculpas fictícias do prefeito Sebastião Mello  de Porto Alegre sobre a tragédia, à luz das avaliações dos cientistas que, reiteradamente, em anos anteriores alertaram que inundações iriam acontecer nas proporções que ocorreram. 

Os sinais da tragédia eram vistos a olhos nus, inclusive pela própria população leiga. Não foi possível negar as irresponsabilidades tanto do Governos Estadual, quanto da administração municipal da capital gaúcha. Observa-se, no entanto, o contínuo estilo de ocultar as ações do Governo Federal que permanecem na pauta da mídia hegemônica. Nos últimos dias, deram voz e vez frequente ao prefeito e ao governador, mas não ao representante do governo Lula, Ministro Paulo Pimenta.

Diferentemente da atitude responsável e imediata de apoio do Presidente Lula  ao RS, desde seu início, Bolsonaro, durante a vasta inundação do Estado da Bahia, não quis interromper suas férias para visitar o Estado, avaliar e disponibilizar o devido apoio federal.

Entre as inúmeras medidas de apoio à reconstrução do RS, além do montante liberado em 11/05/24, de R$ 12,1 bilhões para custear despesas com abrigos, oferecimento de medicamentos e recuperação de rodovias, entre outras ações, o governo federal liberou mais R$ 1,8 bilhão em crédito extraordinário pela Medida Provisória 1.223/2024, publicada no dia 23/05/24. 

De acordo com a publicação no site da Agência Brasil/EBC, o crédito mencionado acima será distribuído em várias ações prioritárias que visam disponibilizar recursos para recuperar os consequentes estragos causados pela tragédia climática na área da defesa civil e logística, entre outras providencias na área social e econômica. Até o presente foram ofertados R$ 62,5 bilhões ao Estado do Rio Grande do Sul.

Atualmente, enquanto escrevo este texto, o povo plenamente esgotado pela inércia da prefeitura da capital revolta-se legitimamente em várias manifestações de protestos.

O conjunto de serviços de prevenção e manutenção da cidade, historicamente sucateados na penúltima e atual administração da cidade de Porto Alegre, não consegue restabelecer as condições normais de funcionamento da cidade apodrecida pelos resíduos provocados pela enchente e pela rarefeita drenagem. A minimização dos serviços públicos em termos de recursos físicos, financeiros e de pessoal contribuiu para o agravamento do caos, como é o caso do Departamento Municipal de Limpeza Urbana. A cidade está atulhada de resíduos que oferecem um enorme risco de transmissão de doenças, como tifo, hepatite A e B, leptospirose, dengue, entre outras doenças infecto contagiosas.

Nesse sentido, é importante resgatar uma entrevista dada pelo engenheiro Arnaldo Dutra, em 13/07/23, à Rede Digital de Comunicação TV. Arnaldo foi ex Diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), ex diretor do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e ex-presidente da CORSAN. 

Em sua fala a respeito do saneamento básico e da intenção privatização do DMAE, o engenheiro Arnaldo contrário a venda desse departamento ressaltou que esta autarquia já figurou como uma referência nacional e internacional de gestão pública. Reforçou, ainda, que um dos problemas do DMAE se situava na falta de pessoal para o oferecimento de um serviço de qualidade ao município.

Nesse horizonte das administrações neoliberais, como as do RS no plano estadual e municipal, destacando o município de Porto Alegre, vale a máxima “sucatear para privatizar”. Assim ocorreu com a CEEE privatizada recentemente pelo governo do Eduardo Leite, a baixo preço. O serviço de abastecimento de luz em vez de melhorar, tornou-se um pesadelo para os usuários nos primeiros temporais ocorridos no verão deste ano, com perdas irreparáveis para as famílias, comerciantes, indústrias e para os demais serviços das cidades gaúchas.

Resta-nos ser resilientes no processo de regeneração de nossos tecidos gravemente decepados no corpo e na alma pelos maus tratos recebidos pelos governos espúrios neoliberais e, tal como a salamandra citada por Veríssimo, resistir e lutar para que nunca mais violem nossa integridade. 

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