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    Lúcia Helena Issa

    Jornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro "Quando amanhece na Sicília". Pós- graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma e embaixadora da Paz por uma organização internacional. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio.

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    Um “complexo de Israel”, um prefeito intolerante e a transformação do Rio de Janeiro na capital da intolerância religiosa

    A doutrina alimentada por esses pastores vê Israel, um país de apenas 73 anos, como o milenar exemplo de estado militarizado em nome de Deus

    Painel com reprodução da cidade de Jerusalém na casa do traficante Peixão (Foto: Reprodução)

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    Por Lúcia Helena Issa

    Publicado originalmente no site Monitor do Oriente Médio

    A casa impressiona pelo tamanho e pela decoração “religiosa” e foi construída na parte mais alta de uma comunidade conhecida como Parada de Lucas. A forma secreta e inteligente como foi construída, além dos três pavimentos e da piscina, surpreenderam os policiais civis que a descobriram. Mas para quem, como eu, esteve várias vezes em Jerusalém e conhece a história da Cidade Sagrada, cujo rosto conhecido mundialmente é a imagem da linda cúpula dourada, a perplexidade maior é vê-la no painel artístico na casa de um dos traficantes mais procurados e perigosos do Rio de Janeiro.

    Álvaro Malaquias, conhecido como Peixão, tornou-se há poucos anos o chefe do tráfico de drogas em Parada de Lucas e construiu uma carreira meteórica feita de armas israelenses, adoração a Israel, criminosos evangélicos,  munições roubadas do Exército, implantação do medo e  drones para monitorar a chegada da polícia.  

    No oceano de ilegalidades, prefeitos criminosos e traficantes evangélicos que sequestraram a Cidade Maravilhosa nos últimos 15 anos, Peixão continua nadando livremente e dominando novos territórios.

    A Polícia até tentou capturá- lo. Foram inúmeras as tentativas de jogar uma rede ou enredá-lo em suas próprias. Em vão. Peixão continua ilustrando o Portal dos Procurados, o site oficial da Polícia de um estado empobrecido e destruído pelos criminosos que sequestraram Deus.

    Peixão é apenas um dos criminosos que se intitulam “Servos de Israel”, “Traficantes de Jesus” e outros singelos epítetos.

    Peixão é um traficante acusado de vários homicídios, mas pertence ao agrupamento religioso que mais cresceu no Rio de Janeiro nos últimos 20 anos: o dos extremistas pentecostais que se aproximaram de Israel, têm ligações com traficantes de armas israelenses e com a máfia do autointitulado Estado judeu.

    O grupo é imenso e bastante diversificado, pois tem como membros desde criminosos que operam nas comunidades e nos morros cariocas até o ex-prefeito Marcelo Crivella, preso em dezembro de 2020 por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. O grupo é formado por milhares de seguidores de uma doutrina evangélica conhecida hoje como “dispensacionalista”.

    Trazida dos EUA e um dos braços ideológicos da intolerância, a doutrina evangélica afirma que o retorno de Cristo só virá quando todos os judeus do mundo “voltarem” a Jerusalém, expulsando de suas casas e terras palestinos muçulmanos e até cristãos que vivem na Terra Santa há séculos.

    Para vários pastores evangélicos que entrevistei no Rio, apoiar o total controle judaico da Palestina histórica é “inevitável” para garantir o cumprimento da profecia do retorno de Jesus. É assustador.

    Somente uma ideologia excludente e violenta pode explicar o aumento da intolerância religiosa no Rio, os crimes cometidos contra muçulmanos e contra pessoas de religiões de matrizes africanas e as pregações demonizando os palestinos e defendendo a ilegal e criminosa possibilidade de transferência da embaixada brasileira para Jerusalém.

    Pesquisando sobre a doutrina evangélica trazida dos EUA, descobri que os pastores fazem absurda associação entre o Estado de Israel de hoje, fundado em 1948, e a Israel bíblico, de mais de 2500 atrás, afirmando que Israel é o berço da “raça branca”, do “povo escolhido por Deus”, do “Ocidente” e dos valores atribuídos a uma suposta civilização judaico-cristã contra uma “civilização selvagem islâmica”. 

    Como se não bastasse, a doutrina alimentada por esses pastores vê Israel, um país de apenas 73 anos, como o milenar exemplo de estado militarizado em nome de Deus, e que mata seus “inimigos”, sejam eles crianças, homens ou mulheres, inspirado nas invasões retratadas no Velho Testamento, como a invasão de Jericó, o assassinato de milhares de crianças da cidade pelos judeus, e a expulsão dos cananeus de sua terra ancestral.

    Foi absolutamente inspirada nesse Israel e na ideia de que Jesus só voltará se os governantes judeus de hoje forem apoiados até mesmo quando matarem milhares de crianças palestinas e expulsarem famílias inteiras de Jerusalém, que nasceu a doutrina do ódio e da expulsão de milhares de pessoas não-evangélicas da comunidade fundada pelo criminoso Peixão, o Complexo de Israel.

    O Complexo inclui as comunidades Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Brás de Pina, entre outras, totalizando 160 mil pessoas.

    Templos afro-brasileiros foram queimados, a cor branca, usada por fieis de religiões como a umbanda e o Candomblé, foi proibida, e idosos católicos relataram inúmeros casos de expulsão e torturas.

    O traficante Peixão, inexplicavelmente foragido e jamais encontrado pelos agentes policiais do Rio, e o ex-prefeito Marcelo Crivella parecem viver, para alguém que não conheça de fato o Rio de Janeiro, em mundos opostos, sem nada em comum a não ser a geografia de uma cidade linda e martirizada. 

    Mas nada pode estar mais longe do mundo real. Crivella foi eleito, majoritariamente, por líderes milicianos que manipulam milhões de eleitores evangélicos nas comunidades que comandam com mãos de ferro.

    O ex-prefeito beneficiou através de decretos e de isenções ficais centenas de pastores evangélicos ligados aos milicianos que se uniram ao traficante que lidera hoje, à distância, o Complexo de Israel.

    A administração do ex-prefeito, que só terminou com sua prisão em 2020, foi marcada pela utilização de dinheiro público e pelo aparelhamento da máquina pública para beneficiar pastores e templos da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por seu tio, Edir Macedo, e considerada hoje uma das organizações que mais alimentam a intolerância religiosa, a islamofobia  e os crimes de grupos extremistas cristãos no Brasil.

    Marcello Crivella foi preso pela Polícia Civil durante a Operação Hades e sua prisão encerrou um ciclo de quatro anos de crimes à frente da prefeitura de uma das cidades mais bonitas do mundo.

    Entre 2017 e 2019, segundo o Tribunal de Contas carioca, Crivella teve suas contas rejeitadas e o endividamento total do município aumentou em R$ 17,6 bilhões para R$ 70 bilhões. O prefeito que mais alimentou a segregação religiosa e o ódio na cidade do rio de Janeiro também escapou por muito pouco de dois processos de impeachment. Um baseado na própria Operação Hades, e o outro, ainda mais vergonhoso, que ficou conhecido como “Guardiões do Crivella”.

     Sim, os “ guardiões do prefeito” eram evangélicos pagos com dinheiro público para constranger as pessoas na porta de hospitais municipais e impedir que elas dessem entrevistas à imprensa denunciando os problemas do setor de saúde. A prefeitura do Rio também foi acusada de promover “censos religiosos” em alguns setores da administração pública. Em agosto, a Guarda Municipal distribuiu um questionário a todo o seu efetivo de 7,5 mil pessoas no qual pedia para que se informasse a opção religiosa do trabalhador.

    Em 2017, a prefeitura esvaziou financeira e politicamente diversos eventos ligados a diferentes denominações religiosas, além de desprestigiar manifestações organizadas por setores minoritários da população e já consolidadas como parte integrante da agenda social de um Rio democrático e multicultural, como a Parada LGBTI, entre outras. 

    Crivella deixou um rastro de destruição no Rio antes de ser preso. Seu discurso de ódio religioso legitimou os ataques de seus seguidores a centenas de mulheres e homens de outras religiões. 

    O Instituto de Segurança Pública contabilizou que, em 2020, as delegacias da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro fizeram 1.355 registros de ocorrência de crimes relacionados à intolerância religiosa. De acordo com os dados, este número equivale a mais de 3 casos por dia em todo o estado, incluindo também os casos de injúria por preconceito (1.188 vítimas) e preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional (144).

    O Instituto também registrou casos de ultraje a culto religioso ocorridos no Rio. A injúria por preconceito é o ato de discriminar um indivíduo em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem. Já o preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional tem por objetivo a inferiorização de um grupo étnico-racial ou religioso. Esse levantamento geralmente é divulgado na véspera do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa como uma forma de denunciar esses crimes.

    Nossa Constituição assegura a todos o livre exercício de culto religioso e a absoluta liberdade religiosa no Brasil. 

    Não podemos mais permitir que o Rio de Janeiro e o Brasil se tornem reféns do ódio e de intolerantes criminosos travestidos de guardiões da fé cristã. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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