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Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

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Um “Hitler” iraniano

"Indicado ao Oscar pelo Irã, “Terceira Guerra Mundial” é uma parábola magnífica sobre a transformação de um Zé Ninguém em carrasco, tendo o cinema como vilão"

(Foto: Divulgação)

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Uma das maiores reviravoltas de gênero que já vi no cinema. Terceira Guerra Mundial (Jang-e jahani sevom), indicado pelo Irã ao Oscar de 2022, começa em tom de comédia: Shakib é um “Zé Ninguém”, peão analfabeto que luta para conseguir trabalhos eventuais. Acaba contratado por uma equipe de filmagem que prepara um filme sobre Hitler e campos de concentração. Do tabalho braçal ele é subitamente engajado como figurante judeu para morrer numa câmara de gás. Mas eis que o ator que vive Hitler passa mal no meio de uma cena e ele é arrastado para o seu lugar. O pobre homem tem a barba raspada, o bigode reduzido e recebe peruca e farda para caracterizar o Führer. Sua inadequação provoca risos. O filme todo soa ridículo aos próprios figurantes. Hitler só faz estender o braço e fazer execuções pessoalmente com tiros à queima-roupa.

As coisas começam a mudar quando Ladan, uma prostituta surda-muda com quem Shakib vinha se encontrando, pede ajuda para fugir de seus cafetões e se abriga clandestinamente na casa cenográfica de Hitler. Daí em diante, o suspense vai devorando o humor até extingui-lo totalmente. Para proteger Ladan, Shakib porá em risco sua oportunidade profissional e, mais adiante, a sua própria vida.

Como um Zé Ninguém se transforma em carrasco, de certa forma incorporando seu personagem. Numa cena definidora, o diretor do filme instrui Shakib a imaginar um trauma familiar violento para empenhar energia na cena em que Hitler deveria esbofetear uma pessoa. Shakib havia de fato perdido mulher e filhos num terremoto, tendo sido injustamente acusado de negligência. É então que ele parece incorporar o método Stanislavski em sua realidade, já então esfacelada pela perda da mulher amada.

Um paralelo interessante é a forma como os figurantes são tangidos como gado para as cenas, da mesma forma que os prisioneiros eram tratados pelos nazistas. Outro momento de grande ironia é quando Shakib leva Ladan para se banhar nos chuveiros da locação da câmara de gás.

Filme conciso, denso, extremamente bem interpretado, como sempre no cinema iraniano. O ator é magnífico em sua transformação de homem humilde em fera ferida e vingativa. Argumento poderoso, levado à tela sem enfeites, com uma garra de mise-en-scène admirável. Algumas pequenas implausibilidades perto do final não chegam a reduzir sua força. Foi premiado em Veneza, Istambul, Tóquio e Estocolmo.

A crítica Ivonete Pinto chama atenção para o fato de que, ao contrário do habitual em filmes iranianos, o cinema não aparece aqui como “lugar positivo da fantasia” (leia-se instância salvadora, humanista ou propagadora de sonhos), mas como vilão.

>>> Terceira Guerra Mundial está na plataforma gratuita Sesc Digital até 15/04/2024.

Trailer português:

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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