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    Laira Vieira

    Economista, tradutora e crítica cultural

    13 artigos

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    Uma comédia sombria atemporal que abraça as contradições da vida

    "Lançado em 1971, esta comédia de humor ácido navega entre humor e depressão de uma forma cativante. E é uma ótima opção para quem não é fã de comédias melosas"

    (Foto: Divulgação)

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    Certos filmes transcendem o tempo, deixando uma marca indelével no coração e na mente de seus espectadores. Ensina-me a Viver, dirigido por Hal Ashby (Amor sem barreiras, Muito Além do Jardim) e escrito por Colin Higgins (Como Eliminar Seu Chefe, O Expresso de Chicago), é um exemplo disso. Lançado em 1971, esta comédia de humor ácido navega entre humor e depressão de uma forma cativante. E é uma ótima opção para quem não é fã de comédias melosas e previsíveis.

    Ensina-me a Viver (1971) fracassou espetacularmente em seu lançamento inicial, chegando a ser chamado pela Variety de "tão divertido quanto um orfanato em chamas". No entanto, com o tempo - e sendo relançado, o filme fez sucesso e conquistou fãs pelo mundo, se tornando um clássico cult - inclusive muitos críticos o citam como um de seus filmes favoritos.

    Um fator que pode ter feito o público torcer o nariz para o filme é que na época em que foi lançado, os EUA estavam em guerra com o Vietnã, e o filme é contra a guerra. Em uma cena a mãe de Harold, interpretada por Vivian Pickles (Sob o Sol da África, Inferno no Deserto), desiste de tentar "consertar" seu filho e o manda conversar com seu tio (um veterano militar) que comunica à Harold que ele deve se alistar no exército. Harold escapa dessa, de uma forma hilária - e claro, com seu senso de humor sombrio. 

    Excentricidades de uma trama deliciosa - Ensina-me a Viver mostra uma união inusitada entre o jovem de 18 anos, Harold (Bud Cort) - obcecado com a morte e encenado seu próprio suicídio (múltiplas vezes), para chocar sua conservadora mãe - que já se acostumou com o senso de humor duvidoso do filho, e acha que a solução é achar uma esposa para ele - e Maude (RuthGordon), uma mulher septuagenária, excêntrica e de espírito livre, sobrevivente do holocausto, que valoriza cada momento da vida. Sua amizade - que evolui para amor - leva o público a uma montanha-russa emocional que alterna entre o riso e a melancolia.

    Baseado num roteiro que foi lançado como um livro por Collin Higgins, a obra teve adaptações para a TV, e para o teatro - inclusive, uma versão brasileira (em 2007) com a atriz Glória Menezes interpretando Maude.

    O humor ácido que permeia o filme está enraizado nas visões não convencionais dos personagens sobre a vida. As fascinações mórbidas de Harold se deparam com o entusiasmo inabalável de Maude pela vida, e suas interações muitas vezes evocam risadas e desconfortos simultaneamente. Esta justaposição tonal, executada por Ashby, convida-nos a contemplar os absurdos da existência, estimulando uma compreensão mais profunda da condição humana - que nos leva a refletir se estamos realmente vivendo ou apenas sobrevivendo. 

    É necessário fazer uma menção à trilha sonora - composta por Cat Stevens (também conhecido como Yusuf Islam) - pois encapsula com maestria a energia do filme. 

    Direção, roteiro e atores - Hal Ashby, conhecido por seus filmes socialmente relevantes e excêntricos, traz uma perspectiva única para, Ensina-me a Viver. Suas experiências moldam a histórias e o sentimento por trás delas - que sem dúvida desempenharam um papel importante na elaboração da narrativa do filme. Para Ashby, Ensina-me a Viver foi sua tentativa de mostrar a vitalidade e a beleza da vida, mesmo diante da morte. Ele reconheceu que o humor ácido do filme poderia não agradar a todos, mas era essencial para capturar a essência da vida, e da psique dos personagens, e do mundo que eles habitavam.

    Colin Higgins, a mente por trás do roteiro, inspirou-se em suas próprias lutas com a saúde. Como um homem gay - que eventualmente morreu em decorrência da AIDS - sua escrita refletiu uma visão pungente das complexidades da humanidade, e das pressões sociais enfrentadas por aqueles que ousam ser diferentes. Ele criou personagens que desafiavam a norma e vivessem a vida em seus termos. 

    Ele viu Ensina-me a Viver como um meio de desafiar as noções tradicionais de amor, companheirismo e felicidade. Ao explorar os extremos das idades dos protagonistas - e suas diferentes abordagens sobre a vida - ele pretendia celebrar os relacionamentos não convencionais que podem florescer entre indivíduos de diferentes gerações

    As interpretações de Bud Cort (A Vida Marinha com Steve Zissou, Bates Motel), e Ruth Gordon (O Bebê de Rosemary, À Procura do Destino); envolvem profundamente o público - bem como a estóica mãe de Harold, interpretada por Vivian Pickles. Vale ressaltar que Ruth Gordon recebeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante, por sua performance em O Bebê de Rosemary.

    Profundezas psicológicas dos personagens - Os protagonistas se conhecem em um funeral, ao qual Harold comparece para se sentir mais perto da morte, já Maude para se sentir mais perto da vida. Aos poucos os personagens vão se conhecendo, ficando íntimos, compartilhando seus sentimentos e desejos mais profundos, e aprendendo um com o outro - até se tornarem um casal enamorado.

    O filme mergulha em temas existenciais que ressoam com os telespectadores através das gerações, colocando questões profundas sobre a vida, a morte, e o propósito da existência. A preocupação de Harold com a morte - que é evidente através de seus frequentes suicídios encenados - reflete uma busca desesperada por significado em um mundo que lhe parece caótico e tedioso. 

    Maude incorpora um espírito existencial, abraçando a beleza da impermanência e a vitalidade do momento presente. Sua sabedoria vem de uma compreensão profunda da natureza fugaz da vida e do valor inerente de cada segundo que passa - afinal, ela sobreviveu ao holocausto. Através de sua visão não convencional, ela ensina a Harold o poder transformador de abraçar os absurdos da vida, de se divertir, e não se preocupar com o que as outras pessoas pensam.

    O vínculo entre Harold e Maude é uma prova das conexões profundas que podem ser formadas entre indivíduos com lutas emocionais compartilhadas. Sua amizade não convencional serve como um lembrete de que a conexão humana e a empatia têm o poder de curar feridas e transformar vidas.

    Uma jornada filosófica pela psique humana - Ensina-me a Viver apresenta diversos pensamentos filosóficos, habilmente entrelaçados na trama do filme. E assim, exorta os espectadores a questionar sua própria existência, confrontar o absurdo da vida e abraçar a beleza fugaz do ser. A história de amor não convencional do filme transcende o tempo, tocando o coração do público através das gerações.

    Ao explorar as atitudes e comportamentos contrastantes dos personagens, obtemos insights sobre existencialismo, absurdo, hedonismo, niilismo, romantismo, humanismo e a aceitação da mortalidade. Esses são alguns exemplos:

    Existencialismo: A fascinação macabra de Harold pela morte resume a noção existencial de confrontar o vazio e a falta de sentido da vida. Seus absurdos encenamentos de suicídios, com elaboradas performances fúnebres ecoam o dilema existencial de encontrar um propósito em um mundo caótico. Harold parece estar à parte dos valores convencionais da sociedade, refletindo o tema existencialista da alienação da mentalidade de rebanho.

    Absurdismo: Em sua busca por significado, Harold se encontra na interseção do absurdo, uma postura filosófica que reconhece o absurdo inerente à existência. Maude, com seu espírito não convencional e despreocupado, personifica uma musa, mostrando a Harold que a essência da vida está em viver desafiando todas as normas convencionais - com as quais estamos acostumados.

    Hedonismo: O entusiasmo de Maude pela vida e sua busca pelo prazer e alegria, demonstram a postura filosófica do hedonismo. Ela defende a importância de viver no presente, entregando-se à alegria e abraçando os prazeres simples da vida, independentemente das normas ou julgamentos sociais. 

    Niilismo: A obsessão de Harold com a morte e suas tendências autodestrutivas aludem ao niilismo, a posição filosófica de que a vida carece de significado ou valor inerente. Ao praticar atos considerados absurdos, Harold rejeita o significado da vida e questiona seu valor. 

    Romantismo: A história de amor entre Harold e Maude encapsula a essência do romantismo, onde a paixão e a espontaneidade prevalecem sobre as convenções sociais. O amor deles transcende a idade e as normas sociais, abraçando a beleza não corrompida da conexão humana. 

    Humanismo: O cuidado de Maude pelos outros e seu compromisso com as causas sociais ilustram os princípios do humanismo. Sua compaixão se estende a todos os seres vivos, enfatizando a interconexão de todas as formas de vida.

    O filme aborda o medo humano da mortalidade. A aceitação sem remorso de Maude de sua morte iminente - pois ela decidiu escolher quando e como morrer - desafia a preocupação de Harold com a morte, inspirando-o a abraçar a impermanência da vida. Harold e Maude são rebeldes e vão contra as normas sociais. Eles desconsideram as expectativas convencionais e traçam seus próprios destinos, encorajando os espectadores a questionar a rigidez das estruturas sociais. 

    Conscientização sobre saúde mental - Enquanto Ensina-me a Viver encanta e diverte, também serve como um lembrete comovente da importância do cuidado e da compreensão da saúde mental. A obsessão de Harold pela morte é um reflexo de sua turbulência interior, um pedido de ajuda que muitas vezes passa despercebido no filme.

    No mundo acelerado e muitas vezes indiferente de hoje, os problemas de saúde mental são muito comuns. O filme nos incentiva a prestar atenção às pessoas ao nosso redor, a prestar atenção e a promover um ambiente compassivo onde as pessoas possam buscar ajuda sem julgamento. 

    Esse filme peculiar de afirmação da vida, também toca na escuridão que espreita na psique humana. Os espectadores não apenas riem das excentricidades dos personagens, mas também vêem um reflexo de suas próprias lutas e vulnerabilidades.

    A mensagem sutil do filme - Por trás do humor negro está a mensagem profunda do filme – a celebração da beleza da vida e a aceitação da mortalidade. A perspectiva de Maude serve como um guia para Harold, permitindo-lhe encontrar consolo em meio à turbulência existencial. Sua sabedoria reside em valorizar a natureza efêmera da vida, enfatizando a importância de abraçar cada momento de forma completa e assumida.

    Por influência de Maude, Harold passa por uma transformação que culmina em seu novo apreço pela vida. Ele aprende que o significado da vida não está em escapar da morte, mas em reconhecer sua inevitabilidade e usar esse conhecimento para viver com paixão e autenticidade.

    Reflexões - Ensina-me a Viver é mais do que apenas um filme; é uma experiência que desafia nossas perspectivas sobre a vida, o amor e a mortalidade. Hal Ashby e Colin Higgins criaram uma obra-prima pungente e bem-humorada que resiste ao teste do tempo. A representação de dois personagens inesquecíveis nos lembra de abraçar as contradições da vida, celebrar a beleza da impermanência e estender a mão para aqueles que lutam com problemas de saúde mental.

    No espírito de espírito livre de Maude e resiliência de Harold, vemos a vida ser observada com curiosidade quase infantil. Ao revisitarmos este filme icônico ou descobri-lo pela primeira vez, podemos ser inspirados a valorizar cada momento fugaz e nutrir um mundo onde os cuidados de saúde mental sejam acessíveis a todos que precisam.

    Ensina-me a Viver é um testemunho poderoso da resiliência do espírito humano e nos convida a dançar ao ritmo da existência com alegria e compaixão.
    Nota: Se você ou alguém que você conhece tem pensamentos suicidas, entre em contato com o CVV, e procure ajuda imediatamente.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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