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Alex Solnik

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais "Porque não deu certo", "O Cofre do Adhemar", "A guerra do apagão" e "O domador de sonhos"

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Ustra incorporou o Esquadrão da Morte ao DOI-CODI

Execuções sumárias eram encobertas com o mesmo discurso: “resistiu à voz de prisão e morreu em cerrado tiroteio”

Carlos Alberto Brilhante Ustra (Foto: ABr)

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“No dia 06 de abril de 1973, por volta das 7h40min, na esquina da Rua Sergipe com a Avenida Angélica, Bairro de Higienópolis, em São Paulo, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, o denunciado Cláudio Antônio Guerra, juntamente com outros agentes da repressão identificados como “Sargento Jair”, e Adhemar Augusto de Oliveira (falecido), vulgo Fininho, assim como outras pessoas não totalmente identificadas, cumprindo ordens de Freddie Perdigão Pereira, todos sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra (já falecido), comandante responsável pelo Destacamento de Operações de Informações - DOI, de maneira consciente e voluntária e contando com a colaboração do denunciado João Henrique Ferreira de Carvalho, vulgo “Jota”, mataram a vítima Ronaldo Mouth Queiroz, por motivo torpe e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido”.

Este é o preâmbulo da denúncia apresentada pelo Procurador da República Andrey Borges de Mendonça, no dia 19 de janeiro de 2018, contra dois agentes do DOI-CODI, na qual se vê nitidamente a incorporação, por parte do chefe do DOI-CODI, Brilhante Ustra, de policiais e técnicas do Esquadrão da Morte, comandado pelo delegado Sérgio Fleury, ao aparato de repressão política, entre 1969 e 1973.   

Depois da execução de Ronaldo Mouth Queiroz, a cena do crime foi alterada, informa o procurador:

“O denunciado Cláudio Guerra e os demais agentes inovaram artificiosamente o estado de lugar, de coisa e de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito, com o intuito de produzir efeito em processo penal, ainda não iniciado. O homicídio de Ronaldo foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver. A ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido, vez que houve o emprego de pelo menos três agentes do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) que surpreenderam a vítima de inopino, executando-a enquanto se encontrava parada em um ponto de ônibus”. 

“A vítima Ronaldo Mouth Queiroz estava ligado à Aliança Libertadora Nacional - ALN desde 1969, organização que se opunha ao regime militar. Havia, na época, uma operação por parte dos agentes da repressão para “dizimar” a ALN, com uma sequência de prisões e mortes pelo regime ditatorial, em especial os dirigentes máximos da organização, sendo que quase nenhum sobreviveu”. 

“A partir do trabalho do ex-militante político, o denunciado João Henrique, conhecido como “Jota”, infiltrado na ALN, em 1972, Ronaldo passou a ter seus passos vigiados pelo DOI-CODI/SP. Em seguida, Freddie Perdigão Pereira determinou que Cláudio Guerra e outros agentes da repressão localizassem e executassem a vítima”. 

“O responsável por identificar a vítima e por conduzir o veículo Veraneio C 14 em que se encontravam era o agente Fininho”. 

“Ao encontrarem a vítima, os agentes da repressão desceram do veículo, oportunidade em que Cláudio Guerra, valendo-se de uma arma 45, efetuou dois disparos em Ronaldo, que se encontrava encostado no muro e desarmado. O primeiro disparo atingiu a vítima na altura do queixo, na região do mento – parte inferior e média da face, abaixo do lábio inferior. O segundo disparo foi efetuado contra a vítima, já caída, de cima para baixo, sem qualquer possibilidade de reação”. 

“Em seguida, os agentes colocaram uma arma de fogo nas mãos da vítima e outra arma em sua cintura, tendo colocado ainda, uma "agendinha" verde, pequena, do tipo de endereço, no bolso de sua camisa, visando simular um “confronto” e implantar provas”. 

“O corpo, em seguida, foi levado para o Instituto Médico Legal - IML, com requisição solicitada pelo DOPS em 06 de abril de 1973, indicando morte em tiroteio com órgãos de segurança nacional. Na requisição, consta a letra “T” manuscrita, indicando tratar-se de pessoa considerada “terrorista”. 

“No IML foi elaborado, em 12 de abril de 1973, o laudo necroscópico pelos médicos legistas Isaac Abramovitc e Orlando Brandão, ambos já falecidos, que indicaram duas lesões provocadas por arma de fogo, sendo uma “na face anterior do hemitórax esquerdo, seis centímetros abaixo, um centímetro para dentro do mamilo esquerdo: o projétil transfixou” e o outro projétil “no mento um centímetro abaixo da mucosa do lábio inferior”, sendo que o projétil “alojou-se na massa encefálica do hemisfério direito” 

“O laudo indicava como horário da morte às 7h45min do dia 06 de abril e omitia qualquer evidência de execução sumária, embora fosse nítida. Destaque-se que não foi encontrada fotografia da vítima acompanhando o laudo. Ademais, o corpo da vítima foi entregue para os familiares em caixão lacrado”. 

“A versão oficial, divulgada no dia seguinte, foi de que Ronaldo teria resistido à prisão, sendo morto em tiroteio”. 

Jornal do Brasil, 7 de abril de 1973:

“Mais um terrorista que participou do bando que assassinou o comerciante português Manoel Henrique de Oliveira, recentemente, na Móoca, morreu, ontem, ao reagir à voz de prisão no bairro de Vila Buarque e trocar tiros com agentes dos Órgãos de Segurança Interna. Trata-se do elemento do Grupo Tático Armado da autodenominada Aliança Libertadora Nacional, Ronaldo Mouth Queiroz, vulgo Papa, e que usava documentos falsos com o nome de Gandi Ferreira da Silva” 

“O relatório da autoridade militar, falecido coronel Flávio Hugo Lima da Rocha (que chefiou a 2a Secção do II Exército enquanto Brilhante Ustra chefiou o DOI-CODI) ao diretor do DOPS, enviado 20 dias após os fatos, confirma o noticiário da imprensa: 

 "No dia 06 de abril de 1973, às 7h40 horas aproximadamente, 'Papa' foi localizado na esquina da avenida Angélica com rua Sergipe. Ao ser dado voz de prisão, o mesmo sacou de um revólver calibre 38, reagiu a tiros, sendo então travado 'cerrado tiroteio', vindo a falecer em virtude dos ferimentos recebidos."

“No mesmo sentido, a informação n. 242/DISCOMZAE-4, de 24 de maio de 1973, do Ministério da Aeronáutica indica que “ao ser dada voz de prisão – este [Ronaldo] sacou um revólver calibre 38, reagiu a tiros, sendo, então, travado tiroteio, no qual o suspeito foi mortalmente ferido, vindo a falecer”. 

“Contudo, essa versão é falsa e foi definitivamente derrubada por uma testemunha ocular. Paulo Antônio Guerra também estudante de Geologia da USP, no dia dos fatos saiu de casa onde residia, na Rua Jaguaribe, para se dirigir ao escritório do Metrô (Companhia do Metropolitano), localizado na Rua Augusta, para realizar um teste para ser contratado pela referida empresa. Por volta de 8h00, iria pegar um ônibus e subiu a pé a Av. Angélica, em direção à Av. Paulista, parando em um ponto de ônibus na Av. Angélica. Neste momento, Paulo Antônio presenciou três homens, dois deles descritos como “um japonês, um homem branco forte e outro de barba e jaqueta de náilon azul [este o denunciado Cláudio Guerra]”, que estava com a arma na mão. Após descerem de um veículo Veraneio C-14 da Prefeitura – típico dos agentes de repressão da época -, o agente de barba e jaqueta de náilon – o denunciado Cláudio Guerra - disparou contra Ronaldo, que se encontrava encostado na parede. O primeiro disparo derrubou Ronaldo e o segundo foi dado quando ele já estava caído. Em seguida, um dos assassinos colocou uma arma nas mãos de Ronaldo e outra em sua cintura. Diante de protestos dos populares, um homem que reclamava foi preso e levado na viatura”.

“Outras circunstâncias do pós-morte evidenciam que Ronaldo foi executado à queima-roupa e que os agentes da repressão pretenderam dar aparência de confronto à situação, com vistas a legitimar o homicídio da vítima”. 

“De acordo com o relatório da autoridade militar dirigido ao diretor do DOPS/SP, os agentes teriam apreendido duas armas de fogo, uma em seu poder e outra no aparelho localizado nas imediações do local do tiroteio. Contudo, não há referência alguma sobre o exame pericial nas armas nem sobre a perícia no local. Ademais, as mãos da vítima não foram examinadas, em busca de resíduos de pólvora, o que, em caso positivo, poderia afastar uma suspeita de execução sumária”. 

“A versão oficial foi, finalmente, descaraterizada, após a confissão do denunciado Cláudio Antônio - reconhecendo que executou a vítima Ronaldo - versão que se harmoniza perfeitamente com a versão apresentada pela testemunha Paulo Antônio Guerra”. 

“Cláudio Antônio afirmou, em 2012, no livro Memórias de uma Guerra Suja, que recebeu ordens de executar uma pessoa num ponto de ônibus da Avenida Angélica em São Paulo. Afirmou que também participaram da ação junto com ele o “Sargento Jair”, o tenente “Paulo Jorge” (conhecido como Pejota) e “Fininho” (Adhemar Augusto de Oliveira) e que eles mataram Ronaldo Mouth Queiroz. Durante a narrativa, descreve que a função de “Fininho” era dirigir a Veraneio e mostrar o alvo”. 

 “Ele afirmou que “Fininho" colocou duas armas nas mãos da vítima, simulando que Ronaldo havia resistido”.

“O fato de o DOI-CODI desenvolver uma estrutura de tortura e morte com "teatro" também foi confirmada pelo ex-agente”. 

“Tais relatos constam às fls.40/41 do referido livro: “No caso da morte de Queiroz, Fininho ficou incumbido de dirigir a Veraneio e mostrar o alvo, seguindo a regra do agente local: apenas apontar e dar apoio. Chegamos, descemos, atiramos e saímos, com Fininho na direção. O que ocorreu depois foi coordenado por oficiais do Exército e da Marinha. Eles distorceram a perícia e criaram cenários. Normalmente isso era feito também plantando-se uma `vela´(jargão policial usado para a técnica de colocar a arma na mão do cadáver, o que sustentaria a versão de que houve troca de tiros). Nesse caso também houve o esforço adicional para confundir os populares que estavam presentes no momento da execução, no ponto de ônibus. Soube depois que, nesse esforço para confundir as investigações, um popular que assistiu a tudo foi levado pela equipe de apoio e pode ter sido eliminado como queima de arquivo”. 

Em 2000, entrevistei Fininho num quartel da PM, em São Paulo, onde cumpria pena pelo assassinato de Mauricio Barbeiro. Nesse dia, ele garantiu que recusou o convite de Sérgio Fleury para atuar no DOPS e depois no DOI-CODI.

Ele mentiu. 

O procurador da República Andrey  Mascarenhas afirma, na denúncia acerca de Fininho que “foi identificado seu envolvimento com a prática de detenção ilegal e execução. Torturou presos políticos no DEOPS/SP, em 1971, quando lá se encontrava oficialmente preso. É tido como membro do Esquadrão da Morte”.    

“Fininho, como começou essa história de Esquadrão da Morte”?

“Esse negócio de Esquadrão quem denominou isso aí foi a imprensa. Tinha um grupo atuante. Em 1968, havia em São Paulo um índice de criminalidade tão alto quanto hoje. Ou pior. Até viaturas eram assaltadas. Delegado foi estuprado pelos crioulos doidos”...

“Delegado homem”?

“Delegado homem! Mais de um! Mataram vários policiais… então, tinha que ter um grupo atuante. E havia corrupção na polícia. Então, o que o secretário da Segurança Pública determinou? Que arrumasse um grupo de elite, que não fosse corrupto pra combater o crime 24 horas”.

“O Secretário era o Hely Lopes Meirelles”?

“Sim. Então, tinha aquele grupo que não tinha acerto com vagabundo! Ia buscar! Não tendo acerto, os caras reagiam e morriam”!

“Então foi uma decisão oficial. O governador Abreu Sodré sabia de tudo”?

“Com certeza”.

“Quantos vocês eram, chefiados pelo Fleury”?

“Éramos dez. Mas na delegacia eram 47 ou 57”.

“Quem determinava que bandido deveria ser eliminado”?

“Não era eliminação. Você ia buscar o elemento… o cara sabia que não tinha acerto, não tinha acerto mesmo… cana é cana”!

“A execução ocorria quando o cara se recusava a se entregar”?

“Não tenho nada com execução! Não sou justiceiro. Geralmente era assim. Geralmente, não - era notório. O cara sabendo que ia preso, não queria ir pra cadeia, ele reagia. O Boca de Traíra… o Brechó… o Alemão… o China 45… Caveirinha… o Zé Bernardo, que era o rei do tráfico… o Horácio Fidalgo… o Fidalguinho… não tinha acerto”!

“Como foi a morte de Boca de Traíra”?

“Isso aí tá no livro (*). É uma história em que o Fleury tava junto. Teve um tiroteio. Depois de cinco horas, tinha dois mortos e… onze detidos procurados pela polícia. Homem… mulher… uma faxina que nós fomos fazer em São Miguel Paulista”.

“Quando o cara se recusava a aceitar a voz de prisão, o que acontecia? Um tiroteio”?

“Se ele reagisse a bala, ele morria. Se ele reagisse na mão, nós pegaríamos na mão. Como foi no caso do Caveirinha que nós pegamos ele na mão duas vezes. Israel Marcelo de Assis”.

“Esses caras que reagiam levavam muitos tiros. Pra quê tanto tiro? Era raiva deles”?

“Não. Apareceu muito morto por aí que não era coisa da equipe nossa”.

“Mas tinha aquela coisa… o Lírio Branco avisou que tem mais um presunto… levou 40 tiros”...

“A imprensa tinha uma sala no DEIC antigo, não tinha? Todo cara que aparecia morto era comunicado na sala de imprensa. Por alguém. Então, quem ligava era o ‘Lírio Branco’”.

“Você aprovaria esse tipo de coisa? Matar com 40 tiros”?

“Tudo depende do momento. Às vezes o elemento faz uma cagada aí na vida… Eu não faria isso”.

“Você matava como”?

“Com um tiro só”.

“Esses cadáveres que apareciam crivados de balas, com muitos tiros… o que você achava disso”?

“Eu não achava nada. Em um ano só tentaram me matar nove vezes”!

“Bandidos”?

“Bandidos contratados de outros estados vieram me matar”.

“E como você escapou”?

“Atirando neles”!

“Quem, por exemplo, tentou matar você”?

“O Horácio Fidalgo e o Fidalguinho. O rei da maconha em São Paulo. Que agia ali no Carrão. Naquela época ele já vendia cocaína, coisa que poucas pessoas na época tinham. Maconha e cocaína. E anfetamina também. Ele sentiu-se prejudicado e contratou várias pessoas no Mato Grosso pra me matar.”           

“Quando você era pequeno, pensava em ser polícia”?

“Meu pai era polícia. Investigador. Tenho um irmão que é investigador há quarenta e tantos anos. Meu tio foi polícia”.

“E você queria ser como teu pai”?

“Não! Porque meu pai morreu matado, em Santos. Uma briga de dois, ele morreu matado. Então a polícia… quando eu fiz dezoito anos, eu trabalhava com carro de praça e eu jogava bola bem. E os caras do futebol me convidaram: entra na guarda que você ganha sem trabalhar”.   

“Você já sabia atirar”?

“Já sabia. Comecei com 14 anos. Meu pai me ensinou”.

“Com rifle? Pistola”?

“Com pistola. Nunca atirei com rifle. Fui trabalhar na rádio patrulha e na rádio patrulha eu me destaquei. Foi mais pelas iniciativas que tive nos locais de ocorrência. O Fleury eu conheci muito depois. Na RUDI. Eram cinco homens no carro, armamento super pesado… metralhadora, winchester, bomba… eram as ocorrências mais difíceis que tinha… e eu fui convidado pra trabalhar nesses carros também. Foi aí que eu conheci o Fleury. Trabalhamos juntos uns seis, sete anos”.

“Você matou o Mauricio Barbeiro”?

“Eu mandei ele pra cadeia”.

“Ele era barbeiro do DEIC”?

“Era barbeiro do DEIC e traficante. Eu prendi ele e mandei ele pra cadeia! E ele achou que eu tinha mandado ele pra cadeia por causa da mulher. Uma mulher que era uma puta que se virava. E quando ele saiu da cadeia ele veio falar comigo. Eu ia trabalhar naquela noite. Era sábado de carnaval. E eu era o encarregado geral da RONE. Eu tava na noite. Era quando o carnaval ainda era na avenida São João, lembra”?

“Lembro”.

“Então, eu tinha acabado de comer uma feijoada no ‘Papai’, tava com meu canivete, descascando uma laranja pra digerir a feijoada. Ele vem: ‘ó, porque você me encanou por causa da minha mulher’... eu falei: ‘essa mulher não serve nem pra chupar buceta de mulher, essa mulher é pé-de-chinelo, só pode ser faxineira… você sabe quantas mulheres eu tenho, seu otário?!’ Ele me deu uma pernada. Saí fora. Deu outra, eu caí. Quando eu caí já caí com o canivete na mão. E já meti na bunda dele”!

“E ele morreu”?

“Não! Não! Não! Eu saí de um lado, e ele saiu do outro. E eu só vim a saber que eu tinha ferido ele porque eu tava de calça branca, sapato branco e uma camisa azul, igual àquelas estampadas havaiana e com o revólver na cinta. Aí eu fui ali pra rua Aurora(**), essa que é minha mulher hoje tinha 15 anos e eu já namorava com ela. O que acontece? Ela falou pra mim assim: ‘olha o que tem no teu sapato’. Vou ver o sapato, tudo cheio de sangue…  

(**) zona de prostituição conhecida como Boca do Lixo 

pensei: ‘estranho né’. E a calça branca tava suja de sangue. Naquela noite, eu vou trabalhar. Quando foi de madrugada, um carro da RUDI me chama e diz ‘você teve uma treta com alguém na praça Júlio Mesquita’? Eu falei: ‘não’. ‘O barbeiro… o Saponga… tá morto’. Ele tinha o apelido, também, de Saponga. Peguei a viatura, fui até à Santa Casa. Cheguei na Santa Casa, você vai procurar morto aonde”? 

“No necrotério”.

“No necrotério. Falei com o investigador de plantão e ele falou: ‘tô aqui há umas 20 horas e não tem ninguém em óbito. E não aconteceu nada’. Mesmo assim eu fui no necrotério. Não achei. Trabalhei até às seis horas da manhã, recolhi o pessoal todo, aí eu deixei um recado para o delegado Hélio Tavares e fui pra Santos, fui viajar. Fiquei dois dias. No terceiro dia que eu volto, meu Deus, os jornais só falavam nisso. Mas ninguém tinha visto. Ninguém sabia que fui eu. O que que eu fiz? Ninguém viu, passei pra negativa. Erradamente.  E aí começaram a apresentar provas… que era por causa de mulher… que era porque eu tinha outra mulher…E o Richetti, o delegado Richetti, faz o quê? O Richetti não gosta do Fleury, que ele tinha tido uma treta com o Fleury feia… o que aconteceu? Ele pegou e fez tudo aquilo pra me sacanear. Arrumou prova, pegou um investigador… Murinelli… esse moço eu trabalhava com ele… o Richetti ofereceu a chefia do 3o. D.P. pra ele se ele dissesse que estava junto comigo e que viu que eu matei o Saponga. Eu tava partindo pra negativa! A primeira prova foi o Murinelli. E ele pegou e falou que fui eu. Quer dizer, fui eu mesmo! Tanto é que eu me apresentei depois e falei: fui eu que matei! Agora, os outros três não foi! Não foi! E eu vou brigar até o fim para provar! Procurei o Fleury pra me ajudar. Ele falou: ‘você não quis vir comigo pro DOPS… vire-se com o Hélio Tavares’.

“Você atuou no DOPS”?

“Me convidaram pra ir, mas eu não aceitei. No DOPS eu estive preso. E de lá eu fugi. Eu fui exonerado pelo AI-5. Como político”. 

“Por que você não aceitou”?

 “Porque eu não tenho ideologia política. Não posso falar mais. No livro eu falo” (*).

“Você fugiu também de outro presídio, né”?

 “Tiraram um soldado do Romão Gomes, da cela forte, pra colocar eu. Pô, eu não matei polícia! Eu não roubei ninguém! Tudo bem. Três meses depois, fugi”.

“Foi fácil fugir”?

“Foi nada. Deixei todo mundo amarradinho lá. É no livro que eu conto esse detalhe. Pulei o muro, saí por fora, tomei a arma de uma sentinela, amarrei ele, enfrentei mais três pessoas e fui embora”.

“E você estava desarmado”?

“Estava. Peguei o mosquetão no braço”.  

“Você não tinha medo de enfrentar bandido”?

“Não. Nem de brigar com ninguém”.

“Chegou a pegar bandido no braço”?

“Cheguei. Várias vezes”.

“Quem por exemplo”?

“O Caveirinha, que era o Israel, quebrei ele na mão… peguei o Xodó, que era lutador de boxe… peguei o Gibi, que era lutador de boxe”.

“Eles estavam armados? Você também? Por que sair na mão”?

“É cana! O cara diz que não vai, e você diz: vai”! 

“Você chegou a levar algum tiro ou sempre escapou”?

“Sempre escapei. Eu tenho cinco tiros no corpo, mas não é de… é de mulher… dois na cabeça… mulher”.

“Mulher? Você enfrentou bandida”?

“Mulher, não bandida. Mulher. Do meu relacionamento. Você tá dormindo com a mulher, ela desafora e você tá dormindo”...

“Foi com tua arma mesmo”?

“Com minha arma mesmo”.

“Pegou de raspão”?

“Eu tenho uma bala ainda aqui na cabeça”.

“Bala na cabeça”???

“Eu olhei no visor, bati no apartamento… mas você não vai falar que é minha mulher, né?... eu olhei no visor, falei ‘a luz tá acesa’... quando fui no visor… tau, tau…um - pá - saiu, e o outro ficou. Fiz um monte de plásticas na testa”.

“Você vivia em perigo constante? 24 horas”?

“Nunca sentei de costas pra rua num restaurante. Nem por brincadeira. Não entrava em casa sem dar uma volta no quarteirão antes. Nunca entrava no meu carro se primeiro não olhasse bem no meu porta-malas ou embaixo do carro pra ver se não tinha bomba”.

“Você deve ter matado gente que você nem sabe que matou, né”?

“Com certeza”.

“Quando você saía para uma diligência, era para matar ou morrer”?

“Com certeza”.

“O que era a morte pra você”?

“Rotina. Consequência de um trabalho”.

“Você não ficava com dor na consciência”?

“Não”.    

Fininho morreu cinco anos depois dessa entrevista, em 2005, aos 67 anos.

(*) O livro prometido por Fininho nunca foi publicado.

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