Está na hora de unidade para resistir e defender a democracia, diz antropólogo
"Lideranças, eu apelo, digam o que têm a dizer, com franqueza, enfrentem o contraditório, disponham-se ao desgaste natural, ponham dedos em feridas, arrisquem suas posições confortáveis, liderem para merecer nosso respeito", diz Luiz Eduardo Soares
247 - O antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares afirma que é preciso unidade para defender o Estado Democrático de Direito ainda em vigência no Brasil.
Ele cobra que das autoridades liderança: "digam o que têm a dizer, com franqueza, enfrentem o contraditório, disponham-se ao desgaste natural, ponham dedos em feridas, arrisquem suas posições confortáveis, liderem para merecer nosso respeito".
Luiz Eduardo Soares diz ainda ser preciso união entre as lideranças da esquerda para que, juntamente com o povo brasileiro, consigam defender a democracia. "Se o governo fascista não governa, só destrói e investe no caos, preparando o golpe, é urgente que as lideranças das esquerdas se entendam e governem, politicamente, a multidão de brasileiras e brasileiros que estão dispostos a resistir e defender a democracia".
Leia a íntegra do texto escrito por Luiz Eduardo Soares:
Sinto tristeza e um profundo desânimo com a despolitização, a visão rasa, estreita de vários amigos meus, companheiros valorosos de luta, segunda a qual a democracia nunca existiu para as periferias.
Citam Agambem, falam em estado de exceção, etc. Sim, claro, e poucos têm sido como eu tão enfáticos e insistentes quanto a isso: a democracia efetivamente não chegou às periferias.
Nada mais verdadeiro: os territórios mais vulneráveis e as comunidades têm sido sistematicamente subtraídos da vigência do Estado democrático de direito. Ali, a exceção é a regra. Ali, na prática, substantivamente, vigora o Estado de exceção, sim.
Esse fato é incontestável. Mas dizê-lo não basta, e aqui está o busilis.
É necessário também dizer que faz, sim, toda a diferença experimentar a não vigência do Estado democrático como transgressão à Constituição ou como confirmação do status quo constitucional, isto é, como afirmação da legalidade - conforme ocorre na ditadura.
O impacto político de uma acusação aos governos por transgressão à lei, por crime, portanto, é inteiramente diferente da acusação a práticas que apenas aplicam a lei (como na ditadura), pois, neste último caso, a crítica tem por alvo a lei e implicaria demanda por sua mudança ou revogação (o que sequer é viável, sob ditadura), enquanto, quando o regime é formalmente democrático, a acusação tem por alvo o descumprimento da lei por parte de instituições e governos. Essa distinção tem óbvias consequências.
A forma, mesmo desprovida de substância, faz diferença, embora, evidentemente, não baste portanto, negar essa evidente insuficiência da forma significaria mistificar consciências.
Em segundo lugar, quando o regime é democrático, estão abertos canais de expressão, participação e organização.
E mais: tornam-se possíveis políticas públicas de interesse popular, cujos efeitos fortalecem as lutas populares, por mais precárias e parciais que essas políticas sejam.
Basta examinar o que houve nos governos Lula, os quais não podem ser reduzidos a mera continuidade das práticas seculares de exclusão, por mais que, nas periferias, as ações policiais e a desigualdade no acesso à Justiça tivessem permanecido inalteradas, reproduzindo o racismo estrutural e a dominação de classe, a misoginia e a LGBTQIfobia.
Em terceiro lugar, se o regime é variável insignificante, por que Bolsonaro seria pior do que Lula, e por que haveria o temor de um fechamento ditatorial?
Se nada faz diferença, se apenas a revolução salva, resta-nos somente esta última solução, a qual, entretanto, não está no horizonte.
Portanto, a conclusão do discurso despolitizado que se quer radical - e nada tem de radical, é apenas sectário - acaba sendo o imobilismo e a impotência, cúmplices da reprodução do status quo.
Triste, muito triste, porque as intenções são boas e as denúncias, verdadeiras.
Há tantos anos chamo a atenção para esse equívoco, mas seria preciso que os partidos de esquerda que pretendessem se tornar atores significativos assumissem essa perspectiva crítica, ajudando a educar a militância.
Ou vamos perder as melhores energias.
Partidos e movimentos educam.
A militância é uma constante pedagogia, um aprendizado coletivo interminável.
O que tenho visto, ao longo dos anos, ressalvadas honrosas exceções, é o silêncio acuado de lideranças, que não ousam criticar posturas formuladas à sua esquerda, como se quem estivesse mais à esquerda do que elas nunca estivessem erradas ou mobilizassem culpas suas inconscientes.
Essa omissão conciliadora evita o constrangimento de serem chamadas de reformistas ou não-suficientemente-revolucionárias, hesitantes, quando não contrarrevolucionárias, lacaias da burguesia, a serviço do capitalismo, etc.
Líderes costumam enfrentar com vigor críticas de vozes que se posicionam à sua direita, mesmo que sejam internas a seu partido. Mas se as vozes vêm da esquerda, a tendência é a indulgente conciliação ideológico-política. E há vários modos de performar posições à esquerda, no interior de um mesmo partido de esquerda.
Uma delas, infalível, é perguntar ao orador ou à oradora a ser criticada: “Você sabe com quem está falando? Quem é você, que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz.”
O orador ou a oradora criticada pela autoridade auto-conferida de quem critica com o coração, emocionando a audiência, adotando uma postura supostamente mais à esquerda do que a criticada ou o criticado, dificilmente encontra suporte psicológico ou segurança intelectual e política para assumir o desgaste, sem recuar.
Mas é dessa militante, desse militante, que mais precisamos, num país arruinado pela pusilanimidade. Enfrentar vaias e imprecações é difícil, mas um preço por vezes necessário para construir uma linha política consistente. O mundo não acaba naquela assembleia.
A experiência histórica prossegue e pode, na próxima volta do parafuso, demonstrar que nem sempre o discurso mais efusivo e contagiante, mais aparentemente radical, representava efetivamente a radicalidade, isto é, o compromisso mais rigoroso com o conhecimento e os valores comuns.
Perdoem o truísmo: mesmo nos mais legítimos movimentos sociais e no interior dos mais promissores partidos do campo progressista, erros podem ocorrer, erros ocorrem com frequência. Quando Lenin escreveu sobre o esquerdismo como doença infantil do comunismo, foi tão certeiro e contundente como quando criticou a miopia dos mencheviques.
Ninguém está livre do erro (nem Lenin, por óbvio), mesmo quem carrega consigo a mais rica e valiosa das experiências e dos saberes. Portanto, ninguém deve estar imune à crítica.
E, não nos esqueçamos, é do diálogo respeitoso e aberto que se nutrem os avanços.
As lideranças que permanecerão serão aquelas que tiverem coragem de expressar suas posições, com clareza, lealdade e destemor, sem demagogia e conciliações oportunistas.
Pode ser difícil enfrentar a emoção das assembleias e soar como estraga-prazer, mas os grupos não amadurecem apenas ouvindo o que desejam para confirmar suas próprias convicções. Trata-se, hoje mais do que nunca, de abalar convicções com a radicalidade do pensamento informado e crítico, livre de chavões e dogmatismos.
Tenho visto muitas cobranças ao PT por falta de auto-crítica, muitas das quais me parecem bastante apropriadas, inclusive.
Mas não tenho visto auto-críticas daqueles e daquelas que ajudaram a construir a geleia geral ideológico-política em que nos metemos, e nos perdemos, no campo das esquerdas.
Atire a primeira pedra quem não se calou diante de alguma declaração - ou refrão, ou cartaz, ou ato - “esquerdista” (no sentido leninista) para não ferir etiquetas ou para não atrapalhar táticas carreiristas ou eleitoreiras suas próprias ou de seus candidatos? Ou até mesmo para não se aborrecer?
A complacência já ultrapassou os limites da razoabilidade política, ditada por exigências do convívio solidário, e se degradou em franca pusilanimidade.
Lideranças, eu apelo, digam o que têm a dizer, com franqueza, enfrentem o contraditório, disponham-se ao desgaste natural, ponham dedos em feridas, arrisquem suas posições confortáveis, liderem para merecer nosso respeito.
Por outro lado, não raro vejo, no campo das esquerdas, atitudes, entre militantes, que parecem o espelho da tibieza conciliadora das lideranças. Por discordarem de um parlamentar ou de uma liderança, cuja trajetória pode ser admirável, atiram pedras verbais com violência desmedida, fazendo eco ao estilo repugnante adotado pela direita, regida pelo gabinete do ódio.
De um lado, pusilanimidade, de outro, arrogância, prepotência, descompromisso, narcisismo que submete a política e o juízo sobre a política à gramática moral e aos impulsos libidinais recalcados. Assim, com frequência, a crítica descamba para a acusação e a desqualificação.
Resultado: vazio e silêncio. Vazio de liderança e ausência de diálogo. No pódium, a condescendência, na planície -nas ruas ou atrás de computadores-, a veemência derrogatória.
Por favor, entendam: exceções há, exceções há.
Se o governo fascista não governa, só destrói e investe no caos, preparando o golpe, é urgente que as lideranças das esquerdas se entendam e governem, politicamente, a multidão de brasileiras e brasileiros que estão dispostos a resistir e defender a democracia.
Se, para se entenderem e se unirem, tiverem de desagradar setores de seus partidos, que o façam, para que essa mesma militância que não reconhece virtudes na democracia - e não aceita alianças - não seja assassinada e torturada depois que as fichas caírem, e já for muito tarde.
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