Medida do governo Bolsonaro coloca em risco assentamento Irmã Dorothy, no Rio
Desmonte do Incra pelo governo Jair Bolsonaro e novas regras de distribuição de lotes por edital ameaçam despejar mais de 50 familias que vivem no assentamento Irmã Dorothy, em Quatis, no Rio de Janeiro
Eduardo Miranda, Brasil de Fato - A ação constante de desmonte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) vem gerando um impacto muito negativo para os assentamentos em todo o Brasil. O assentamento Irmã Dorothy, construído desde 2004 em Quatis, no sul do estado do Rio de Janeiro, é um caso exemplar: as famílias estão sentindo na pele o não cumprimento de políticas públicas determinadas pela Constituição Federal.
Lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se queixam que o Incra e o governo federal estão atropelando regras, como a que permitiu a partir de 2015 que o Irmã Dorothy fosse, enfim, destinado à reforma agrária. O presidente Bolsonaro priorizou uma lei aprovada posteriormente, a 13.465/2017, que regulariza as terras por meio de editais.
A medida é motivo de insegurança para as mais de 50 famílias assentadas no local, já que com ela o assentamento deixa de existir na prática para ter os lotes sorteados com concorrência aberta.
"Em dezembro passado, o Incra chegou ao assentamento com a notícia de que ele seria regularizado através de edital, mas isso pode trazer conflitos para a área. Para fazer um edital, a área precisa estar livre, sobretudo porque ele vai ser destinado a cinco cidades vizinhas e qualquer um que tiver interesse pode concorrer a um lote dentro do Irmã Dorothy, mesmo sem nunca ter estado e lutado ali", afirma Edneia Pinto Araújo, dirigente regional do MST do Sul Fluminense.
Insegurança
A dirigente afirma, contudo, que o problema por trás dos editais é muito mais agudo e cruel para as famílias que estão há 15 anos esperando pela regularização da terra. A seleção via edital é feita por pontuação e leva em conta, na ordem de prioridade, famílias mais numerosas e com mais força de trabalho. Edneia aponta a injustiça do Incra com a medida.
"Todo mundo aqui tem sua história, são muitos anos de lona preta no assentamento. Hoje, temos pessoas idosas, pessoas sozinhas que, com a demora da reforma [agrária] perderam seus companheiros e companheiras nesses últimos anos, mães solteiras, mas que tocam sozinhas suas produções, trabalham na roça, construíram a vida aqui. Para o Incra, isso não vai contar nada. Eles vêm aqui e dizem que não reconhecem nenhum de nós como morador", conta a dirigente.
A insegurança das famílias também decorre do fato de que, após as visitas de dezembro passado, representantes do Incra prometeram apresentar o edital em 2021. Edneia relatou que, durante a visita, um superintendente do Incra chegou usando colete à prova de balas.
"Ficamos constrangidos. Era como se fossemos terroristas, quando, na verdade, só queríamos escutar palavras boas dele como parceiro. Estamos tentando intervir no edital porque o Incra não tem palavra, era para estar junto com a gente como parceiro, mas vai no sentido contrário. Ajudamos o Incra no 'piqueteamento' da área, na demarcação de cada lote. Aquela ajuda dada a eles foi invisível?", questiona.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Incra e a assessoria da autarquia informou que a exigência do edital de seleção para o assentamento de novas famílias é uma determinação imposta pelo Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão TCU 775/2016, e que o Incra não possui autonomia para descumprir.
Segundo o órgão, além do tamanho da família e força de trabalho, o tempo no local também é critério de classificação. "Em relação à reclamação de que o edital desfavorece pessoas acampadas há 15 anos, é importante destacar que o tempo de residência no município assegura maior pontuação e a família ou indivíduo integrante de acampamento recebe pontuação específica", afirma.
O Incra sustenta ainda que nas regras do edital mulheres chefes de família possuem pontuação específica e não há vedação para participação de idosos, que podem ser contemplados com maior pontuação pelo critério de tempo de atividade agrícola. Contudo, lembra que "as unidades familiares com jovens podem receber pontuação maior pelo critério de classificação do tamanho da família e força de trabalho".
Obstáculo
Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) Luiza Mahin, a advogada Fernanda Vieira vê a Lei 13.465 como uma "provocação do setor do agronegócio" e defende que houve, por parte do TCU, na ocasião, a tentativa de criar obstáculos para a manutenção da reforma agrária. Ela afirma que a lei é "nociva" por diferentes razões, mas destaca o fato de que a União entregou a decisão aos poderes locais, nos municípios.
"É a lei do capital sobre territórios urbanos e rurais, complexa porque ela é a dimensão da monetarização das cidades e busca retomar a mercantilização da terra. Por isso, ela é extremamente nociva para os assentamentos. Esses editais do Incra serão publicizados na relação com os municípios, com o poder político local. Eles avançam sobre o Irmã Dorothy, que instaura sua luta em 2004 e só dez anos depois tem decisão judicial que autoriza a emissão de posse provisória pelo Incra, o que não foi feito", explica.
A advogada critica a ordem das ações do Incra. Segundo ela, a emissão de posse provisória dada por decisão judicial ao Incra teria permitido regulamentar o assentamento no Sul Fluminense e seria uma opção ao edital, aprovado depois.
"Se o Incra tivesse feito aquilo que ele é obrigado a fazer, as famílias do Irmã Dorothy já estariam estabelecidas. Mas não. O Incra, apesar da emissão provisória dada por decisão judicial, não regulariza. Não faz isso em 2014, em 2015, em 2016 e, então, em 2017 vem a nova lei. Em 2018, ele não faz nada. E em 2019, Bolsonaro faz uma ação ofensiva contra os movimentos sociais que lutam pela democratização do acesso à terra", argumenta.
Frente à instrumentalização do Incra, "que acaba envergado pela ação de Bolsonaro", segundo Fernanda Vieira, e à perda de orçamento da autarquia federal, o espaço de ação se tornou ainda mais reduzido e contaminado por guerras ideológicas de Bolsonaro. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, na lei orçamentária para 2021 que o governo federal enviou ao Congresso Nacional, 66% do orçamento estava destinado a indenizar fazendeiros que tiveram terras desapropriadas por improdutividade.
Mobilização
No comunicado enviado ao Brasil de Fato, o Incra também informou que vinha realizando o cadastro das famílias até abril de 2016, quando o TCU determinou a suspensão de todos os processos de seleção em curso. Em setembro de 2017, ao julgar o mérito da matéria, o Acórdão nº 1976/2017 autorizou a retomada dos processos de seleção, desde que fossem atendidas algumas condições.
No Ministério Público Federal (MPF), um Grupo de Trabalho (GT) da Reforma Agrária tem cobrado do Incra respostas sobre os assentamentos, que não vêm ocorrendo. Segundo Fernanda Vieira, que acompanha de perto as conversas, a autarquia responde que não tem compromisso com "invasores", sem levar em conta que as famílias aguardam há 15 anos, no caso do Irmã Dorothy, pelo direito à terra.
Paralelo a isso, movimentos populares, partidos políticos e organizações sociais têm se mobilizado em torno da questão em outras instâncias, com o objetivo de questionar as ações do governo Bolsonaro. No Supremo Tribunal Federal (STF), foi ajuizada no final de 2020 uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que sustenta a intencionalidade do governo em acabar com uma política constitucional.
"A Lei 13.465 é coroada com o completo esvaziamento da pauta agrária no país, obrigando, inclusive, a um processo de judicialização pelo reconhecimento da importância da reforma como mecanismo de produção de dignidade e de igualdade econômica, que são pilares trazidos pela nossa Constituição", argumenta a advogada.
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