Os filmes do Cinema Lula
Marcius Cortez relata seus pensamentos sobre o livro "Lula", escrito por Fernando Morais, e conta sobre a grandeza do escritor e do personagem
Marcius Cortez (*)
“As coisas não estão no espaço, leitor, as coisas estão é no tempo”. (“O Amanuense Belmiro”, Cyro dos Anjos, 1937).
Atenção, caro leitor/a: Fernando Morais significa fortes emoções. Com licença da palavra, esse mineirim é padeiro espiritual, é o pesquisador espertim que flagra provas concretas e ao escrever tempera a iguaria com aquela pitada que fundiu a cabeça do cineasta Stanley Kubrick logo depois de assistir “Pulp Fiction”, de Quentin Tarantino. Ainda nocauteado pelo impacto só conseguiu falar uma palavra para o roteirista Frederic Raphael (“De olhos bem fechados”,1999): “Olhe o ritmo, o ritmo!” Pois é, o moço de Mariana construiu uma continuidade literária que caiu no gosto do leitor e que vende que nem pãozinho quente. Autor de doze livros, o seu assunto preferido é a terra brasilis. Então indo para os primórdios da nossa formação literária, o professor Antônio Cândido o chamaria de nativista. (Só recentemente, em entrevista ao Juca Kfouri, soube que o autor de “Olga” se declara brasileirista).
Que fique logo claro que o seu intuito não é a erudição. Sua pena opta pela interpretação polida na coragem e na forma de escrever narrativas refinadas servindo-se de uma característica própria: Fernando Morais se pauta pela fidelidade documentária. Seria errado atribuir seu sucesso ao fato dele ter formação jornalística e ser dono de três prêmios Esso. Ocorre que o premiado jornalista não arrega e se atira fundo em busca do furo. Tem trazido à tona até altos segredos da segurança nacional como a célebre arriada de calça do ditador Ernesto Geisel perante as águias do Pentágono. Voltaremos a esse assunto mais adiante, por enquanto, quero chamar a atenção para a evolução de Fernando Morais nas operações de estilo e eis aí o “Lula 1”, carimbando sua maestria no domínio do ritmo.
Não sei se é o caso de etiquetar sua literatura como engagée, empenhada, comprometida. O autor não pertence a nenhum partido político por prezar a liberdade de falar o que lhe dá na telha. (É no mínimo desconcertante quando torna público que considera Toninho Malvadeza um ser fascinante). Sua trajetória passa longe do patrulhamento e do proselitismo. De repente incursiona pela toca dos leões de Cannes ou pelo castelo suíço da alquimia onde morou um tempo para escrever sobre Paulo Coelho (“O Mago”, 2008) e, em seguida, engatou marcha para a terra dos soldados da guerra fria festejando os agentes cubanos infiltrados nos serviços de segurança dos Estados Unidos. (“Os últimos soldados da Guerra Fria”, 2011).
Posso chamá-lo também de heterodoxo, pois tem voz própria. Ortodoxias à parte, o que deve ser levado em conta é que o escritor se inclui no projeto de trabalhar por um país livre. Ele escreve para todo mundo entender, permanecendo fiel a sua encarnação literária de espírito nacional. Aprecio o artesão adepto da clareza e do diferencial de interpretar o homem e a pátria, testemunhando exaltado nacionalismo crítico e a sua afetiva missão de esmiuçar vultos famosos como Chatô, Olga, Marechal Montenegro, Paulo Coelho e o ex-presidente Lula.
Fernando Morais, a exemplo de outros biógrafos, incorporou subjetividades à narrativa da memória. Suas personagens são pessoas inseridas na brutalidade da vida real. Quando descreve a penúria da infância de Lula até parece que um oráculo o presenteou com um talismã capaz de hipnotizar leitores ao conduzi-los por parágrafos curtos, longos, detalhados. Por vezes, se detém em coisas corriqueiras que depois, se revelam fundamentais. O autor, para usar um termo antigo, nos abastece com informações de “cocheira”. Assim, de forma admirável, ele nos serve a versão verdadeira da Lava Jato fatiada pelo juiz suspeito. Outro dom do mago Fernando é transformar riso em gargalhada e de repente, lágrimas invasoras acontecem.
Ler a obra de Fernando Morais é um mapa para entender o nosso país. Ao longo de sua obra, ele desenha algumas certezas. Haveremos de ser uma nação livre, respeitada no exterior, democrática, emancipada, sem a vergonhosa distribuição de renda, sem a praga do preconceito, sem fome física, sem fome cultural, sem as nossas riquezas nas mãos dos espoliadores do planeta e principalmente sem a máfia da Lei a serviço do Estado podre.
A todo instante quando o lemos somos surpreendidos por closes dramáticos, planos abertos, fusões onírico-dialéticas. Destaco o texto sobre os incidentes no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo, na primeira semana de abril de 2018, antes da Polícia Federal vir buscar Lula para levá-lo à Curitiba. O autor é perito em descolar informações inéditas. Por exemplo, os nomes dos policiais que eram seguranças do ex-presidente. Ou então quando detalha a “guerra” entre apoiadores e opositores do ponto de vista de quem lutava nas trincheiras. Admiro sua capacidade de escolher fatos especiais e de montar um texto eletrizante que me faz dizer: “olhe aí o Fernando passageiro da agonia porque é só suspense”. Suspense recheado de notificações atentas quando, por exemplo, confirma que a Polícia Federal com apenas um disparo do fuzil HK417 mataria meia dúzia de “ptelhos” que se aglomeravam defronte do sindicato prometendo morrer, mas jamais entregar o seu líder.
Clarice Lispector afirma que criar é correr o risco de chegar à realidade. Fernando Morais teve a oportunidade de pôr esse desafio na prática. A fama e o respeito que conquistou são resultados de sua visão humanista e libertadora. É impossível separar o timbre individual do seu estilo da sua condição de recordista de vendas. (Mais de 5 milhões de exemplares vendidos em quarenta países, traduzido em dezenas de idiomas). Convoco mais uma vez o gigante Cyro dos Anjos que assegurava que a escrita é coisa dura que se transforma em afirmação de vida. O autor de “Cem quilos de ouro” (2003) não se julga sociólogo, político ou psicanalista. Então o que ele quer? O avô da bolivariana quer superar etapas, pois ainda vivemos num país carente de necessidades urgentes e habitado por um povo manipulado pela escravidão capitalista.
No nervo da vida
Se me pedirem para dizer o que Fernando Morais faz eu diria que ele pesquisa a vida. Seu trabalho se caracteriza pela luta política e sonhos possíveis. O filho do “seu” Morais será lembrado pela eloquência de seus sentimentos e por entregar-se ao exercício diário do texto desde o tempo de “foca” batucando naquelas velhas e enormes máquinas de datilografia até aos dias de hoje enfurnado no seu iglu digital. O “Lula 1” me parece o mais esperançoso dos seus livros. Suas páginas pulsam fé na melhoria da sociedade. A meu ver, o livro é o ápice do seu estilo. Esbanja lógica, coloquialismo, discussão política de alto nível e informação, muita informação. Ouvi uma pessoa comentando que mergulhou no livro e devorou 447 páginas de um fôlego só. Não estranhei. O ritmo desliza. Mas cabe uma observação: o autor deve muito a Lula, um dos homens mais inteligentes do Brasil, segundo o economista Antônio Delfim Netto, que também exaltava o ex-presidente por nunca ter cursado a USP.
Tenho cá comigo que a obra de Fernando Morais é uma extensão do nervo da vida. Seus livros são eruditos em sua concepção. Pois não é fácil decifrar a nossa mutante “real politique”. Digo que se trata de uma obra sentimental. O autor deve muito ao seu irmão Carlos Wagner Gomes de Morais, o melhor texto que conheci e o meu maior amigo com o qual dividi o melhor da vida. Faz sentido citar o homem culto que era Wagner porque além de escrever discursos para um certo Deputado Estadual e Secretário de Cultura de São Paulo, Carlinhos era um cinéfilo de mão cheia. Nos “filmes” de Fernando Gomes de Morais costumam acontecer cenas radicais, entre elas, algumas de extrema violência protagonizadas pela lei e pelo crime. A referência que me ocorre é a sequência mais porrada do cinema moderno. O leitor pode vê-la em “Cães de Aluguel”, o primeiro filme de Quentin Tarantino (1992). Trata-se de uma brutal sessão de torturas quando um dos assaltantes é preso por um policial que o espanca barbaramente, porém o bandido consegue fugir e num golpe de sorte prender o torturador. Aí o jogo se inverte: o criminoso, com requintes de crueldade, surra o rato de farda. Vejo a Lava Jato assim. Na minha imaginação, subitamente, Marisa, a segunda esposa de Lula, vítima de repulsiva campanha de ódio, cruza com o tal torturador e é ela quem passa a interrogá-lo. Seguem cenas idênticas ao filme. Ela dança enquanto dá o troco: tapas na cara, puxa-lhe os cabelos até se sentir vingada. Nas chamas do inferno a irracionalidade humana é banal, antes de sair do pesadelo, a mulher do Lula escuta o marido lhe dizendo: “Não é fácil o que sofreu Marisa. E eu quero dizer que a antecipação da morte da Marisa foi por causa da safadeza e da sacanagem que a imprensa e o Ministério Público fizeram contra ela”. Não há entendimento possível quando se lida com as sanhas do Mal. Ou você acha que a hedionda difamação cometida contra Marisa Letícia Lula da Silva se resolveria com uma boa conversa? Seguramente a Lava Jato foi um dos maiores crimes da nossa história, uma eterna vergonha. Orgulho-me de ter escrito esse calvário para Marisa. O culpado desse horror é o país injusto onde vivemos. Portanto que Padim Ciço abençoe meu bornal de peixeiras, fico fulo da vida porque toda essa infecta patifaria foi armada e executada por uma quadrilha de fardados e togados financiados pela elite nacional e pelo imperialismo internacional.
Durante 581 dias acompanhei os passos dessa gente que veio de todos os pontos do mapa do Brasil. Eles cumprimentavam o prisioneiro três vezes ao dia, 9h, 14h30 e 19h. “Bom Dia, Presidente. Boa Tarde, Presidente. Boa Noite, Presidente”. Lula não via seus eleitores porque ocupava um canil de 25 metros que as ‘otoridades’ chamavam de Estado Maior de Curitiba. Janelas gradeadas e vidro opaco no alto das paredes. Ainda bem que se trata de uma minoria, mas como são cínicos e canalhas certos juízes, ministros, delegados e milicos.
Há dois momentos em que Luiz Inácio comprou a ideia de presidir o Brasil. Essa decisão está representada por Hélio de Almeida, autor do projeto gráfico do “Lula 1” que não vacilou em reproduzir a gigantesca foto em página dupla do Jararaca, de pé, em primeiro plano, no comando da assembleia geral da greve de 1970 para uma multidão de trabalhadores no Euclidão, em São Bernardo. Pronto, eis devidamente documentado o nascimento do maior líder do povo brasileiro e o fim da ditadura militar. Foram vários “Euclidão” lotados. Tive o prazer de estar na maioria deles. Lá eu fui feliz e sabia porquê. Presenciei Lula enterrando a redentora no lixo da história. Eu vi quando os helicópteros da Polícia Militar começaram a voar baixinho dando voltas no estádio com as armas apontadas para o povaréu em assembleia no Euclidão. Presenciei Lula puxando uma Ave Maria para conter o pânico. O outro momento em que o sapo barbudo resolveu se lançar candidato é esse que estamos assistindo. A decisão foi tomada no silêncio da cadeia. Penso que o isolamento foi útil para Lula. Hoje é visível a onda de esperança que ele lidera.
A pocilga medieval é nacional
De repente as letras sumiram e as páginas do “Lula 1” se converteram em tela de cinema. Ora para vender o tantão de livro que vende, é óbvio que Fernando Morais tem os seus segredos. Digo que o autor de “Chatô, o rei do Brasil” arrancou um pedaço da receita de outros escritores de sucesso. O autor prioriza o interessante e o respeito. Flagro em “Lula 1” trechos enxertados pela doçura. Não apenas no conteúdo, mas ele conhece a importância de “esquentar” a edição. Refiro-me às fotos que ilustram o livro: as cartas e os bilhetes escritos por Lula, fotos antigas, fotos recentes, o menu completo que mostra o jeito de Lula ser Lula. Certamente a foto cinematográfica do beijo de Lula e Janja ocupa lugar de destaque. Chamo atenção para o momento que Lula se despede dos carcereiros e dos agentes de Polícia, um daqueles trechos onde as lágrimas invasoras inundam os zoios.
As fotos que ilustram as páginas de “Lula 1” são dignas de figurar numa antologia de bom jornalismo. O arquivo de Lula recebendo pessoas ilustres quando preso em Curitiba é consagrador. Lula falando em público há várias, inclusive a minha preferida: na greve de 1979, “Lula improvisara um palanque com mesas de plástico e discursava frase por frase (a Polícia havia cortado o som), que eram repetidas pelos mais próximos e retransmitidas pelo povaréu até chegar às beiras entupidas de gente no estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo”. Entre as fotos há algumas de péssima memória. Aquela de Lula no enterro do neto Arthur prima pela crueldade. Na legenda, Fernando comenta o ex-presidente cercado de policiais portando armamento pesado, como se custeassem um traficante internacional. O autor cita o procurador Januário Paludo, debochando da dor de Lula: “O safado está querendo é passear”. E tome mais uma dúzia de fotos de autoridades, governadores, generais, políticos, ministros. Uma porção de fotos sociais: casamento, lua de mel, Lula e Marisa, Lula e seus amigos famosos, Lula menino, Lula jogando futebol com Chico Buarque, Lula com Boulos, Haddad, Ana Estela, FHC, João Pedro Stédile, Frei Betto, Petrônio Portela, aquela dele em reunião com o Comandante Fidel. Tem também Lula no enterro da Dona Lindu, a foto do João Ferrador e do seu criador, Laerte Coutinho, foto do Henfil, recortes de jornais, Lula beijoqueiro, documentos pessoais de Lula e que coisa maravilhosa há só uma fotinha do juiz federal Sergio Moro, de terno preto, camisa preta, gravata preta, a plumagem apropriada para os marrecos fraudulentos. Peço licença para um recadinho ao Fernando, foto sua de moto, por via das dúvidas, é melhor falar antes com Polé Lafer de Jesus, o Polezinho. Deixo, por fim, meu comentário sobre a foto mais sacana cujo responsável foi o execrável Governador do Paraná, Ratinho Júnior, filho do Ratão. A foto mostra um pelotão da PM do Estado que viera evacuar o terreno que a Vigília Lula Livre alugara nas imediações do prédio da Policia Federal onde Lula ficara preso. Foi quando um homem de barba e cabelos grisalhos perguntou se eles tinham a ordem judicial autorizando o despejo. O militar que comandava a ação respondeu que não precisava de ordem, “eu sou oficial da PM do Paraná”. Incrível, mas isso aconteceu. A foto é prova definitiva. Definitivamente somos uma pocilga medieval. (No “Lula 2” gostaria de ver a foto de Olaf Scholsz que viajara da Alemanha para visitar Lula na prisão em Curitiba. Logo após ser libertado, o ex-presidente encontrou-se com o mesmo senhor Olaf Scholsz que hoje é simplesmente o Primeiro-Ministro, o chanceler da poderosa Deutschland).
Diz um amigo que a sorte que nós temos é que nossos adversários são chucros. Ele me deu uma versão formidável para o caso do Rogério Favreto do TRF4 de Porto Alegre. A ação do Desembargador foi premeditada. Concedeu habeas-corpus a Lula quando o juiz federal Sergio Moro acabara de tirar férias, viajando para o exterior. Pasmem, o picareta assinou recibo. No dia seguinte, aterrissou no Brasil e em rápidos contatos com as suas flores de relacionamento anulou a sentença do Favreto que é tida por entendidos como uma peça jurídica de alto nível quando comparado ao texto de Moro ao decretar a prisão do Jararaca. Nossa Senhora do Pitu da Barra, o ex-juiz começa o texto com um “Relativamente”... Nesse episódio, a sacada de mestre foi obra do discreto Favreto que mostrou para o Brasil que o ex-juiz é parcial. Caro leitor, a bandeira foi tanto grande que o combalido STF, mesmo depois de deixar passar oito meses, terminou reconhecendo que Sergio Moro é suspeito. Ou seja, o marido da conja teve a fala calada na forma da lei. Encerro com uma questão: somos uma pocilga medieval ou somos um país idiota que se deixa enganar por um juiz suspeito de quatro patas?
Quando o autor fala do garoto Lula, sou personagem
Sou um nordestino de raízes. Nasci em João Pessoa, me criei em Natal e me formei no Recife. Graças ao balancê da ciranda e do cantador de feira tornei-me um setentonto danado de esperançoso. Venho de lá donde o menino da Lindu se apareceu. Das selvas dos mandacarus, dos tabuleiros de sol pegando fogo, do amanhecer com o astro-rei já mordendo a nuca. Não tem jeito, caro leitor/a, declaro que meu guia é o imaginário nordestino. Damos risada mesmo quando é preciso meter a peixeira. (Não existe brasileiro mais engraçado do que o cumpádi Ariano Suassuna, lá da Parayba). Aprecio os “causos” de Virgulino, cangaceiro ruim que nem carne de carniça, mas que se doutorou em Nordeste e ganhou dos comandados do Duque de Caxias o honroso título de capitão do Exército brasileiro só para prender o comunista e assim ver se esse tal de Prestes prestava. O Brasil é para quem tem a cabeça no incêndio. A diferença é que eu era menino rico e Lula vivia num miserê lascado em Caetés, encostado em Garanhuns donde mestre Vitalino esculpiu meus irmãos paus-de-arara, os retirantes, os camponeses, os seres da natureza, calango, cobra coral, a cadela Baleia e a passarada. Nordestino é povo proseador e se o cába da peste não souber contar causos pra se adivirti tá mais lascado ainda. Descontando uns particulares, é do nosso jeito levar a vida no alto astral, pois precisa ser de ferro para não perder a cabeça lidando com a degradante mistura do polígono da seca e mais a maldade dos coronés cachorros da moléstia. Ainda sobre o pernambucano, não há povo que ame tanto o carnaval. Se alguma otoridade cismar de proibir a frevança, nossa te garanto, é revolução no dia seguinte.
Implico com o Brasil engomadinho trajado de ridículo e fantasiado de aloprado. Dos militares que já tiveram muitas oportunidades, mas que primaram por governos de absoluto desamor à pátria, espero o habitual cinismo. Não se trata de incentivar a desobediência, trata-se de alertar que o batalhão do biscate deve explicações à sociedade civil. Ora, pelos malditos anzóis da infertilidade, torço para que os medalhados dos carnavais passados escutem a voz da história e partam para outra, afinal o comunismo de hoje quer mesmo é fazer negócio, senhor! No golpe de 64, os golpistas enjaularam gente que estava estudando russo. Muito já se escreveu sobre o ódio que o fascismo nutre pelo conhecimento e cultura. Ler e escrever é como o amor, uma droga pesada. O que me manteve vivo todos esses anos foi minha agonia e minha esperança. Felizmente, o primeiro lugar do “Lula 1” na relação dos lançamentos mais vendidos do ano de 2021 lavou a alma. Portanto, salve, salve o Bébé, pai de santo que aparecia para mamãe agarantindo que o marreco vai pagar o pato.
Quando resolvo matar as saudades do lugar donde vim, declamo os versos de um ex-prefeito de Poço Redondo, Sergipe, onde os sordados mandaram Lampião, Maria Bonita e a cangaceirada para o quinto dos infernos. Em Piranhas, Alagoas, na beira do rio São Francisco, conversei com um véio que dizia ter participado da caçada. Pois ele me agarantiu que prenderam Maria Bonita e depois deram uma gravata na muié, cortando o pescoço com facão tinindo de afiado. No Nordeste a toada é outra, a mundice não tem medo da puliça. Isso logo aparece em “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos. O retirante Fabiano podia ter matado o amarelo, mas teve pena e facilitou a fuga do soldado que se borrou no mato. Então dá licença que vou recitar: “Me chamo Virgulino Ferreira Lampião. Manso como um cordeiro. Bravo como um leão. Trago o mundo em reboliço. Tenho a cabeça no trovão”.
Um minutinho para um “causo” que ouvi de um dos admiradores do “rei do cangaço”. Dizem que num dia de maus bofes, Virgulino invadiu uma fazenda e foi logo obrigando todo mundo a tirar a roupa. Nossa, meu santo Deus, aquele bando de pelados morrendo de vergonha. Então Lampião berrou que era pra todo mundo começar a dançar. Coitada da tigrada logo se pôs a arrastar as sandáias. Não satisfeito, o Capitão mandou todo mundo enfiar o dedo no cu e chupar. Um cába reclamou: “Danado!”. Aí Virgolino mostrou o punhal e vermeio de raiva, deu o bote: Danado o quê? Danado de bom, corrigiu o matuto se avexando no xaxado.
Geisel, quem diria, era o chefe do bando
Começamos por um grito de revolta preso na garganta. Vá na página 291, ali, no meu modo de ver, está a mais preciosa informação do livro. O pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas, garimpando um material da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos encontrou um relatório datado de 1974 dando conta que o ex-ditador Ernesto Geisel afirmara para o ditador sucessor, general João Batista Figueiredo, que “a política deve continuar, mas deve-se tomar muito cuidado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados”. Ou seja, não critiquem Ivan Lessa por chamar o Brasil de bananão. Geisel era nosso vice-rei, fiel ao rei dos Estados Unidos que nos encaravam como se fossemos uma república banana.
Fernando Morais conhece o segredo de fazer obras para serem amadas. O autor se esmera na ação positiva de marcar posição no processo de transformação e renovação do Brasil. O brasileirista formou uma tradição de linguagem própria que expressa sua desobediência e sua ativa participação política. Reconheço seu mérito por obter informações desestabilizadoras. Ele fala para públicos diversos. É lido e considerado pela nata dos formadores de opinião. Por certo a pérola que Matias Spektor pescou é ouro para fundamentar críticas e teses.
A cada página, o autor vai rompendo com a moeda corrente da hipocrisia. De fotograma em fotograma, o escritor Fernando Morais irrompe em estocadas desenhando a grandeza e sabedoria de Lula. Digo isso baseado em uma decisão de Lula diante da avalanche de imoralidades do PIG: “Vou governar sem ver a Globo, sem ler a Folha, o Estadão, a revista Veja”. Previsão gloriosa: Lula deixou o governo com 87% de aprovação.
Lembro da declaração atribuída a Roberto Marinho, dono da Globo, que certa vez teria dito que há notícias que não devem ser divulgadas para evitar pânico, afinal há crimes que a História Oficial precisa ocultar. Injeto uma primeira e me transporto ao Recife para abraçar o famigerado filósofo e cineasta Jomard Muniz de Britto que em 2000 quando o Brasil comemorava 500 anos de descobrimento inventou um mote delicioso: “Brasil: 500 anos de encobrimento”.
Ao avançar no longa-metragem impresso no papel, fui rindo tanto que peço um pequeno intervalo para falar do humor que habita as 447 páginas do livro. A minha favorita é quando Fernando Morais descreve o indefectível José Dilermando, o “Ratinho”, fresador da Ford. O dito Ratinho era conhecido por sua valentia. Baixinho, franzino e criador de caso. Numa de suas muitas detenções, Ratinho se recusou a ser conduzido ao camburão por um soldado da PM. “Para me prender tem que vir um cabo! – gritava – Não sou vagabundo para ser preso por soldado!”.
Pessoalmente acredito no teste dos caranguejos. Dizem que certo dia, um pesquisador foi colocando num cesto vários casais de caranguejos provenientes da Bahia, Paraíba, Ceará, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Piauí. Os crustáceos deviam ficar presos no cesto vinte e quatro horas. Ao acabar a jornada, destamparam o balaio. O primeiro casal a sair era do Ceará. Depois o de Sergipe e assim por diante. O último a sair, já tarde da noite, foi o casal de caranguejos de Pernambuco porque ficaram um tempão brigando entre si. Agora, caro leitor, me aresponda adonde nasceu o fresador? Bingo! O peste é pernambucano, sim senhor. E o slogan do Ratinho era enfezado: “O Brasil só vai consertar quando o sangue estiver batendo nas nossas canelas”.
Esta terra é mais minha do que deles
Em 2010 aresolvi flanar por pequenas cidades do Nordeste brasileiro pro mode ver as minhas amadas velhinhas espremidas naqueles ônibus fubica carregando uma porção de galinhas que as lindinhas vendiam na feira. A viagem durou o ano todo. Fui conferir in loco o que o governo Lula fez pelo povo da minha terra. Claro fui conferir também o forró, a canjica, o quentão, a alegria do povão. Andei em ônibus, na boleia dos caminhões, no lombo das mulas, em carro alugado, em carro de boi e tomei centenas de mototáxi, salve os motoqueiros loucos por uma conversa com gente que avive em Sum Paulo. Tenho o coração chorão, a pobreza me aperta o peito. Em Canudos desabei, mas não foi pela penúria, foi pela alma grande da gente de lá. Assim que cheguei me dirigi ao centro e estacionei na praça principal onde vi o que buscava. Minha experiência de viajante curioso me empurrou para o primeiro salão de beleza que apareceu no meu caminho. Salão cheio, ora que maravilha, fiquei a prosear com o pessoal de rosto sorridente e olhos conversadores. A moça bonita disse que no dia seguinte ia ter a procissão dos descendentes dos mortos do Belo Monte de Antônio Conselheiro. Eles ocupam as ruas da cidade cantando as preces de Conselheiro e até os gritos de guerra. Que belo Brasil existe em Canudos. Fui ficando, fiquei mais de uma semana. Um dia voltarei a Canudos. Povo antecipador. Na última eleição para Presidente, o Haddad teve 6.890 votos, Jair apenas 954. Canudos possui uma população de 16 mil habitantes. No dia da minha despedida ganhei uma lista de lugares onde estava correndo muita fartura e muita festa no céu. Prossegui no meu on the road caipira. Além de Canudos, arribei por Piranhas, Paulo Afonso, Serra Talhada, Areia, Buíque, Sapé, Canindé de São Francisco, Poço Redondo, São Cristóvão, Nova Cruz, Arcoverde, Caruaru, Bezerros, Angicos, Baía Formosa, Caicó, Lajes do Cabugi (Bom dia, Professor Canindé), Ceará Mirim, Floresta, Igarassu, Petrolina, Juazeiro do Norte. Para mim foram dias tão festivos que a toda hora, eu batia no coração exclamando que ver minha gente feliz valeu minha passagem por esse mundo perigoso de defeituoso.
Em Poço Redondo conjuguei o verbo cangaçar. Peguei uma moto, fui costeando o Velho Chico e logo cheguei na pedreira onde atocairam Lampião e seu bando. Eita lugar para se falar de Virgulino. Metade fala mal, metade meio que disfarçando tece loas ao rei do cangaço. O cordel retrata bonito a festa que houve no céu desses pequenos lugares onde o povo se juntou na fartura e no forró, abrindo os braços e soltando a voz: Lula, viva Lula, salve Lula!
Angicos foi exceção. Gente encantadora, mas me olhava envergonhada. A elite dominante, a família Alves, estava levando escracho. O assassinato de Expedito Alves, prefeito de Angicos, galista, amigo do pessoal lá de casa, esculhambara as forças locais. Então eu me enturmei com os jovens universitários, a beleza do pôr-do-sol, o orgulho de ter sido sede dos primeiros cursos de alfabetização de adultos do método Paulo Freire, porém logo chegou a hora de seguir viagem. Comparado a maioria das pequenas cidades em vez de festa, o angicano piscava luz baixa.
Fernando Morais e Lula combinaram o jogo. Depois de virar a última página do livro ficou para mim a alegria de ver biógrafo e biografado rumo à estação esperança. A rigor quem não muda de estação é o Brasil. Permanecemos o país da dependência e do atraso, recuamos para o ralo entupido de colonialismo. Escrevo essas linhas em concordância com o diagnóstico estampado no livro. A ideia de Lula é libertar-se da tutela do imperialismo. Olhei para o horizonte e vi um facho de soberania brilhando nas águas do Velho Chico. Para mim, o autor pegou o melhor Lula que existe: o Lula do isopor na cabeça durante o piquenique com a patroa, noras, fios e fias. Meu estimado José Roberto Filippelli, ex-diretor internacional da Rede Globo, mandou fazer uma ampliação gigante e entronizou o cartaz numa das paredes do apartamento onde mora em São Paulo.
Fernando Morais deu casa e comida ao pernambucano que foi duas vezes Presidente. Naquelas 477 páginas mora o maior líder da História do país. O autor capta flagrantes que demonstram que no meio do povo, a grandeza de Lula se agiganta. Cito um momento especial. No dia que Lula estava deixando a prisão ele foi se despedindo de todo mundo. “Ô Paranaguá, tira essa merda do rosto, rapaz! Quero ver sua cara! Ô Polaco, obrigado por tudo! Adeus, fulano, muito obrigado! Tchau, sicrano, fique com Deus e dê um abraço na patroa”. Ora, cara leitora, os carcereiros e os agentes policiais até que tentaram, mas não conseguiram esconder o chororô.
Viver é muito perigoso sim. Mas “quando tudo for escuro/ e nada iluminar/ quando tudo for incerto/ e você só duvidar.../ É hora de recomeçar/ recomece a ACREDITAR”. Trago aqui o jovem Bráulio Bessa, poeta e cordelista lá do Alto Santo, do Ceará. O nordestino é antes de tudo um forte, quem disse essa verdade foi Euclides da Cunha na obra-prima chamada “Os Sertões”. Que forte seja também o Brasil ambicionado pelos simpatizantes da ideologia onírico-dialética, não é mesmo caro Fernando?
Finalizando esse capítulo de testagem da popularidade do Lula, vivi um episódio artístico na terra do Padim Ciço, Juazeiro do Norte, Ceará. Tava na mão um endereço de um atelier onde uma galera pintara cartazes retratando Padim e Luiz Inácio. Pela Nossa Senhora da minha barba branca era como se eu estivesse no Museu do Vaticano em transe estético. Era como se Lula e o padre milagreiro do Cariri fabricassem a felicidade em série para os bailarinos do forró.
Paulo freire leu a mão de lula
Certa vez escrevi sobre o patrono da educação brasileira: “Paulo Freire era uma personalidade calorosa, temperada pelo valor das emoções mais verdadeiras, um cara sensível e bem-humorado. Ele era o líder inconteste da equipe do Serviço de Educação Cultural da Universidade do Recife – o SEC – da qual eu fazia parte aos dezessete anos durante o período de 1961 até março de 1964” (“O Golpe na Alma”, pg.13, Pé-de-Chinelo Editorial, São Paulo, 2008).
Certa vez li sobre a importância do sindicato na vida do ex-presidente Lula: “Aqui foi minha escola. Aqui eu aprendi sociologia, aprendi economia, aprendi física, química. E aqui aprendi a fazer muita política, porque no tempo que eu era presidente deste sindicato, as fábricas tinham 140 mil professores que me ensinaram como fazer as coisas. (“Lula 1” pg.58, Companhia das Letras, 2021).
O que mais me impressionava em Paulo Freire era seu envolvimento com o futuro e com a esperança em relação à aplicação do seu sistema de educação para adultos. Paulo sonhava que um dia ainda viveria num país onde todos lessem livros e poemas. Em 1961, o professor tinha 40 anos. A primeira imagem que me vem à lembrança é a foto do Paulo pela lente do fotógrafo Ajax Pereira: o cigarrinho na mão e aquela sua expressão pensativa que transmitia amável empatia. Partilho do valor que o gigante Cyro dos Anjos dava ao tempo. Me sinto à vontade para alimentar a ilusão de que Paulo está entre nós. E digo mais: prolongo esse sonho acrescentando na cena, outro pernambucano. Certamente Lula assinaria embaixo quando Paulo proclamou seu credo: “A vida na sua totalidade me ensinou como grande lição que é impossível assumi-la sem risco. E é assim que eu vivo”.
Tive a sorte de fazer a última entrevista de Paulo antes dele partir para o exílio. Foi para o programa “Campanha de Alfabetização” que eu redigia e apresentava na Rádio Universitária, um dos braços do Serviço de Extensão Cultural cujo diretor era o Professor Doutor Paulo Freire, como dizia o assistente administrativo Plácido Mendes de Lima, figura ímpar das proezas paulofreirianas. Claro que estou influenciado pelo coração, porém a cada dia que passa mais ganha força dentro de mim a miragem que Paulo Freire e Luiz Inácio Lula da Silva são a mesma pessoa.
Escrevo este texto com muita saudade. Hoje é 19 de janeiro de 2022, aniversário de um dos meus netos. Não tenho a menor ideia do que pode acontecer. Previsão é tolice, o mineiro Tancredo Neves dizia que política é como bumbum de nenê. A entrevista com Paulo foi pouco antes do 31 de março de 1964, no auditório do SEC, na Rua Gervásio Pires, bem pertinho do quartel do IV Exército onde foi humilhado já que a tática dos golpistas consistia em prender e soltar, prender e soltar. Esse pesadelo foi tão perturbador que Elza Freire me jurou que seu marido haveria de partir para o exílio nem que fosse vestido de baiana. Durante a entrevista, Paulo fumou muito. O golpe já estava escancarado. Quando acabou a gravação, ele pediu para Hugo Martins, o técnico de som, passar de novo a fita. Enquanto fumava, escutava suas respostas atentamente. Paulo nos abraçou e perguntou a nossa opinião. Nós também o abraçamos. Ele nos acenou com a mão e saiu bruscamente. O professor doutor preferiu que Hugo e eu não o víssemos chorando.
Do Recife eu não me separo. Viajava para lá com relativa frequência, porém em tempos de pandemia preferi me recolher no isolamento do sítio das cachoeiras. Outrora, em certa viagem à terrinha, o avião fez escala em Brasília onde embarcou uma dúzia de políticos, entre eles, o ex-vice-Presidente Marco Maciel. Quando a aeronave se aproximava do Recife, me levantei do banco do fundo e fazendo de conta que estava falando ao microfone soltei a voz: “Marco Maciel é da Arena, Marco Maciel é da Arena”. Estimado leitor/a, o avião bombou numa interminável gargalhada. Claro, como o Brasil é uma pocilga medieval fui agredido em terra. Os assessores de Marco Maciel foram logo tirando meus óculos e um deles armou um soco. Mas para minha sorte surgiu o pessoal do “deixa disso”. Nessa mesma viagem encontrei uma amiga de velhas lutas. Ela trabalhara no Movimento de Cultura Popular e na época se distinguia por seu radicalismo. Lembro que enchemos a cara bebendo potes do saboroso leite maltado no Recife Antigo. (Falam que a receita é coisa do Pernambuco Holandês). Na hora da despedida, ela deu uma bela risada e me falou ao pé do ouvido: “Marcius, pouca coisa mudou, pouca coisa mudou”. Em parte, ela tem razão. Soltando a imaginação vejo Paulo lendo a mão de Lula. Isso era uma visão, claro. Mas também era uma nova lição do patrono da educação brasileira. Paulo nos dizia que o mais importante é conhecer essa realidade que é, simplesmente a vida.
Sítio das Cachoeiras, SP. Janeiro, 2022.
(*) Marcius Cortez é escritor
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