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    Situação irregular

    Continuam acontecendo no Rio de Janeiro operações nas quais crianças e adolescentes que vivem nas ruas são conduzidos para o que a Prefeitura chama de “sistema de abrigamento (sic) compulsório”

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    Continuam acontecendo no Rio de Janeiro operações nas quais crianças e adolescentes que vivem nas ruas são conduzidos para o que a Prefeitura chama de “sistema de abrigamento (sic) compulsório”. A resolução nº 20 de 27 de maio de 2011 da Secretaria Municipal de Assistência Social determina a internação compulsória de crianças e adolescentes que “na avaliação de especialistas estiverem comprometidas com o uso do crack e outras drogas psicoativas”. Esse “sistema de abrigamento (sic) compulsório” foi anunciado como mais uma medida de suposta "proteção" à infância, ao estilo da antiga "doutrina da situação irregular", já afastada da lei brasileira, mas ainda ilegitimamente presente na cartilha de muitas autoridades.

    A lei brasileira determina a municipalização da política de atendimento às crianças, e, portanto, a existência de programas comunitários e oficiais de orientação e apoio às famílias dessas crianças (art. 88 e 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente). A lei brasileira determina que as prefeituras promovam programas oficiais de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos (art. 101, VI do Estatuto da Criança e do Adolescente). Tais programas, no entanto, não existem. As unidades ditas de “acolhimento” não são clínicas de tratamento de dependentes de drogas. Não há tratamento. O que há é apenas a privação da liberdade.

    Crianças e adolescentes pobres são perseguidos e “recolhidos” porque as autoridades insistem em dizer que eles estariam em "situação irregular". Mas, na verdade, quem está em situação irregular são os governos que não garantem os direitos fundamentais dessas crianças e adolescentes. Por que crianças e adolescentes permanecem perambulando pelas ruas? Onde estão as escolas de qualidade e de horário integral? Onde está a política que deve garantir que todas as pessoas tenham condições materiais para poder viver com dignidade?

    Em uma democracia, todos têm direitos assegurados na Constituição e nas leis. Crianças e adolescentes, vivendo em lares ou em situação de rua, dependentes de drogas ou não, são sujeitos de direitos, devendo ser respeitados como cidadãos e não recolhidos como lixos humanos em “situação irregular”. O pânico criado em torno do crack serve de pretexto para a concretização do indisfarçável objetivo de “limpeza” das ruas, afastando-se das vistas “sensíveis” dos auto-intitulados “cidadãos de bem” e dos tão esperados turistas os “incômodos” miseráveis que, sem condições mínimas de sobrevivência, sem amparo, sem assistência, sem moradia, sem formação educacional, sem lazer, perambulam pelas ruas sem destino e encontram nas drogas – crack ou outras – um dos poucos alívios para suas privações e sofrimentos.

    A proibição às drogas tornadas ilícitas não impede que crianças e adolescentes tenham fácil acesso a essas substâncias. Ao contrário. Em todos esses anos de “guerra às drogas”, as substâncias proibidas foram se tornando mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e mais acessíveis. A ilegalidade torna as drogas proibidas mais perigosas. A política de “guerra às drogas” ilegitimamente trata crianças e adolescentes pobres como criminosos, submetendo-os à humilhação, à perseguição e ao recolhimento a instituições em tudo semelhantes a prisões, acrescentando às suas miseráveis e traumáticas condições de vida a violência da privação de sua liberdade.

    Já é tempo de pôr fim a essa violenta, ilegítima, danosa e dolorosa política. Já é tempo de legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a afastar medidas repressivas violadoras de direitos fundamentais, pôr fim à enorme parcela de violência e corrupção provocada pela proibição, tirar do mercado os descontrolados agentes que agem na clandestinidade e verdadeiramente proteger a saúde.

    Maria Lucia Karam é juíza aposentada e membro da direção da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), organização internacional formada por policiais, juízes e promotores que, compreendendo os danos causados pela proibição, apontam a necessidade da legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.

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